• Nenhum resultado encontrado

4 APROXIMAÇÕES EPISTÊMICO-METODOLÓGICAS

4.3 ALGUNS DIÁLOGOS ENTRE A PSICOLOGIA DISCURSIVA E A VISÃO

Ao refletirmos sobre as duas perspectivas que influenciaram as escolhas teórico- metodológicas da presente pesquisa, a visão de discurso de Michel Foucault e a Psicologia Discursiva, observamos que ambas apresentam aproximações e distinções que, sob nosso ponto de vista, auxiliaram-nos a ampliar o olhar sobre nosso objeto de pesquisa, o risco no contexto das emergências e desastres e seus efeitos sobre profissionais e usuários(as) do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC). Buscamos no presente tópico enfatizar algumas dessas características, ressaltando, contudo, que não é possível, no espaço da presente tese de doutorado, dar conta de todas as confluências e distanciamentos entre as duas teorias.

Para Jorgensen e Phillps (2002), a utilização de múltiplas perspectivas é positivamente valorizada em grande parte das propostas de análise do discurso, uma vez que diferentes abordagens permitem uma ampliação do olhar frente aos objetos de estudo. Contudo, as autoras alertam para a necessidade de se fundamentar e justificar as escolhas teóricas realizadas para não se cair num ecletismo sem propósito.

Foucault foi um filósofo que não primou pelos rótulos, tendo múltiplas formações acadêmicas, não se apresenta como um teórico construcionista ou mesmo um pós- estruturalistas, e muitas das tentativas para defini-lo foram empreendidas por seus interlocutores. Para Dreyfus e Rabinow (2013), Foucault, ao longo de sua obra, tentou evitar análises estruturalistas que se distanciavam da noção de sentido; procurou evitar também o projeto fenomenológico de "ligar todo sentido à atividade de dar sentido de um sujeito autônomo e transcendental" (p. XXIII); e por fim, Foucault evitou ainda "(...) a tentativa do comentário de ler o sentido implícito das práticas sociais, assim como o desvelar feito pela

hermenêutica de um sentido diferente e mais profundo do qual os atores sociais têm mais uma vaga consciência" (DREYFUS E RABINOW, 2013, p.XXIII).

No que toca àPsicologia Discursiva de orientação inglesa, observamos um surgimento bastante situado e uma frequente explicitação de suas origens e influências. Grande parte dos textos que tratam sobre o tema descrevem a Psicologia Discursiva como um modo de análise de discurso que se situa no interior do movimento construcionista, com foco na linguagem, situada ainda em vertentes pós-modernistas e pós-estruturalistas. (DAVIES E HARRÉ, 2001; KENNETH GERGEN, 1985 e 1999; MICHAEL BILLIG,1991; POTTER E WETHERELL, 1987).

Observamos que tanto a perspectiva Foucaultiana quanto a Psicologia Discursiva foram alvos de críticas severas por parte de seus interlocutores, fator que não deve ser compreendido como uma depreciação, mas como reiteração de que nenhuma teoria pode ser considerada completa.

Com relação a Michel Foucault, algumas das críticas a sua teoria estão voltadas para a pouca estruturação de seu método de pesquisa, ou mesmo para as mudanças conceituais que o autor faz ao longo de sua obra. Alguns críticos das ideias de Foucault, como por exemplo, Spivak (2010), apontam ainda que o pesquisador produz uma visão de mundo eurocêntrica, tendo sempre o sujeito ocidental como referência, e pouco refletindo a respeito disso ao longo de seus trabalhos. Contudo, é possível identificar na obra de Foucault (2006) uma proposta emancipatória quando ele pontua que não cabe ao pesquisador falar pelos outros, ou mesmo decidir o que deve ser feito nas situações de desigualdade, sendo o papel dele trabalhar contra formas de poder, em espaços onde este é objeto e instrumento desses mecanismos "na ordem do 'saber', da 'verdade', da 'consciência', do 'discurso'" (FOUCAULT, 2006, p. 39).

No que se refere à Psicologia Discursiva, uma das críticas mais frequentes diz respeito ao caráter relativista do termo construção social, essa crítica é também dirigida ao próprio construcionismo - do qual a perspectiva se origina.Algumas reflexões sobre esse debate podem ser encontradas nos textos de Rasera e Japur (2005) e Weatherall (2012). Jorgensen e Phillps (2002) criticam ainda a Psicologia Discursiva pela pouca reflexão que seus teóricos realizam sobre as diferentes possibilidades de acesso das pessoas aos discursos. Assim como pela falta de detalhamento de suas análises com relação à produção, reprodução e transformação dos discursos através das particularidades linguísticas.

Uma primeira aproximação que pode ser feita com relação àPsicologia Discursiva e à perspectiva foucaultiana é a primazia pela leitura do discurso em si, não buscando nada para

além do texto. As duas perspectivas não buscam identificar quais discursos são verdadeiros e quais discursos são falsos, estão focadas na compreensão de como determinados discursos são construídos para se apresentarem como verdadeiros ou como falsos. As perspectivas também concordam que o discurso tem papel central na construção do social, contudo, abordam a questão em dimensões distintas (JORGENSEN E PHILLPS, 2002).

Michel Foucault deu ao discurso, ao longo de sua obra, um tratamento epistemológico,ele pensa o discurso como aquilo que produz uma episteme, uma forma de pensamento que vai ser própria a um determinado momento histórico; assinala alguns dispositivos, mas não se compromete com uma análise discursiva propriamente dita. O discurso é central na obra de Foucault, mas é central numa pergunta sobre esquemas de produção de conhecimento de um determinado tema, aspectos históricos de uma produção discursiva que surgem e têm funcionalidade num período e não em outro. Na Psicologia Discursiva, observa-se uma centralidade do discurso que se desdobra em técnicas, em perguntas específicas para o texto que podem ser respondidas a partir da observação do modo como o discurso é construído e apresentado. Enquanto a Psicologia discursiva irá perguntar ao discurso como ele funciona para operacionalizar as coisas, a perspectiva foucaultiana irá perguntar pela via do discurso sobre a produção de uma episteme.

A visão de discurso proposta por Foucault se distancia da Psicologia Discursiva ainda no que compete aos aspectos ideológicos. Enquanto a primeira rejeita o conceito de ideologia e nega que o contexto social no qual o sujeito está inserido condiciona ideologicamente o surgimento do discurso, a segunda apresenta um interesse sobre os efeitos ideológicos das práticas discursivas. A Psicologia Discursiva aproxima-se das propostas marxistas também no que se refere aos padrões de dominação que algumas classes sociais exercem sobre as outras. Contudo, tal aproximação com o marxismo não faz com que a teoria discursiva se afaste das ideias de poder desenvolvidas por Foucault, tendo seus teóricos também discutido sobre a questão do poder enquanto relação (JORGENSEN E PHILLPS, 2002).

Jorgensen e Phillps (2002) afirmam que muitos dos psicólogos que se utilizam da Psicologia Discursiva não apresentam um interesse particular pela forma como certos discursos que circulam na sociedade constroem os sujeitos, sendo os discursos considerados como recursos que estão disponíveis e podem ser livremente utilizados pelas pessoas na construção de suas identidades. As autoras pontuam também que a Psicologia Discursiva subestima os acessos ou restrições que determinados grupos apresentam com relação aos discursos. Para Foucault, o discurso faz parte do mundo constitutivo dos sujeitos, não sendo possível posicionamento fora dele; o discurso é apresentado ainda como fazendo parte dos

regimes de verdade que atuam nas relações saber/poder e que possibilitam os processos de subjetivação. (VEIGA-NETO, 2007).

Nesse sentido, observamos que ambas as perspectivas, foucaultiana e Psicologia Discursiva, veem o sujeito como criado a partir dos discursos. No entanto, observamos um grau de diferenciação quanto à liberdade de ação que cada abordagem permite ao sujeito dentro do discurso. Correndo o risco de sermos simplistas, podemos dizer que enquanto para Foucault o sujeito é formado pelas estruturas e efeitos do discurso, para a Psicologia Discursiva,as pessoas são mestres e escravas dele.

Na Psicologia Discursiva, os repertórios interpretativos são encarados como ferramentas presentes no contexto social e utilizadas pelos indivíduos. Quando são identificadas consistências ou inconsistências nos discursos produzidos, essas características não estariam nas pessoas, mas nos repertórios - um recurso social pertencente a todos que partilham uma dada cultura. A análise desse processo de utilização dos repertórios pelas pessoas é considerada uma análise do microdiscurso (NOGUEIRA, 2001). A interpretação foucaultiana dos discursos, por sua vez, está interessada nas suas condições de existência - institucionais, históricas- e na posição que o sujeito ocupa no interior desses discursos(FOUCAULT, 2014). Podendo ser, desse modo, considerada uma análise do macrodiscurso.

Outro ponto de diálogo entre as duas perspectivas teóricas se refere ao debate sobre os atos de fala ou speech act. Foucault (2014), ao debater sobre as funções do enunciado, afirma que estes não seriam iguais aos atos de fala dos analistas ingleses. Contudo, em momento posterior, o autor, ao se corresponder por meio de cartas com John Searle - sistematizador da teoria dos atos de fala descobertos por John Austin-, admite a proximidade entre os enunciados e os atos de fala. Searle e Foucault concordam com a existência de um sentido literal para os atos de fala e para os enunciados, fator que os isentaria da busca por um sentido profundo no discurso (DRAYFUS & RABINOW, 2013).

No entanto, para Dreyfus e Rabinow (2013), a principal questão que faria Foucault "negligenciar" as aproximações entre enunciados e atos discursivos seria a diferença de interesses entre o autor e os pesquisadores ingleses. O foco das pesquisas do primeiro, diferentemente das propostas destes últimos, não seriam os atos discursivos cotidianos e sim os:

(...) atos discursivos separados da situação local de asserção e do fundamento cotidiano comum a fim de constituir um campo relativamente autônomo. (...) Tais atos discursivos ganham sua autonomia depois de serem aprovados em uma espécie de teste institucional, como regras do argumento dialético, interrogação inquisitória ou confirmação empírica. (DRAYFUS & RABINOW, 2013,p. 62)

Um último ponto que destacamos, com relação às fronteiras entre as duas perspectivas teóricas, refere-se ao papel e implicações do pesquisador diante do ato de pesquisar. A Psicologia Discursiva, afastando-se de ideais positivistas, defende a impossibilidade de uma neutralidade no ato de pesquisar. Nesse contexto, situar as correntes teóricas e visão de mundo do pesquisador é um modo de alcançar uma objetividade possível no ato de produzir conhecimentos. Outra postura adotada por esses teóricos é a inclusão das ações do pesquisador durante a construção da pesquisa, tal postura implica, por exemplo, considerar as entrevistas um processo dialógico, recomendando a transcrição e estudo também das falas do entrevistador na análise dos dados (POTTER E WETHERELL, 1987).

Com relação à perspectiva foucaultiana, como mencionado anteriormente, não encontramos um passo a passo metodológico ao longo de suas obras, mas várias reflexões que nos auxiliam a construir questionamentos e nos inspiram a atuar junto à produção de conhecimentos. Foucault (2010) enfatiza que muitas das escolhas metodológicas precisam ser realizadas após o delineamento do objeto de estudos. Hüning (2014) afirma que um estudo construído dentro da proposta foucaultiana deve centrar-se na reflexão sobre como "determinadas questões são formuladas e se constituem como problema no campo das práticas, no campo político e no campo do conhecimento" (p. 125). Para a autora, destaca-se na obra de Foucault a busca de "uma análise da complexidade da relação entre discurso e as instituições que o instauram e legitimam" (p. 141).

Tendo considerado alguns dos principais limites e aproximações entre a Psicologia Discursiva e a leitura de Foucault com relação aos discursos, esperamos que nossos interlocutores possam compreender o percurso epistêmico-metodológico que buscamos desenvolver ao longo da elaboração do presente estudo. Ratificamos que não partimos de uma visão do conhecimento como totalizante, pois não acreditamos que uma única teoria possa contemplar um objeto em sua complexidade.Defendemos a utilização de mais de uma vertente teórica como forma de ampliar o olhar sobre os fenômenos, sem pretensões de dar conta de todas as suas facetas. Nesse sentido, pretendemoscontribuir para a compreensão das relações entre micro e macro discursos nas distintas formas de nomear o risco no contexto das emergências e desastres e os efeitos que essas noções produzem sobre seus(suas) interlocutores(as)/autores(as).