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Alguns quantitativos não somam o total de indivíduos identificados porque nem sempre foi conseguida a informação total sobre cada um deles; para alguns não há

O SABER POPULAR E OS CURANDEIROS

2. Alguns quantitativos não somam o total de indivíduos identificados porque nem sempre foi conseguida a informação total sobre cada um deles; para alguns não há

É importante destacar que os médicos do século XIX sabiam que a população pertencente aos estratos menos favorecidos era a maior vítima da cólera. Assim, eles buscavam e apresentavam justificativas para que tal fato acontecesse. Para o membro da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro, o médico José Pereira do Rego, os escravos e os homens de cor eram as maiores vítimas da cólera, e justificava esse fenômeno pelo fato de eles se dedicarem a serviços mais árduos, por desprezarem os preceitos higiêni- cos, pelo consumo de uma dieta pobre em proteína e em pequena quantida- de e, por fim, pelo local onde habitavam, que era insalubre e infecto.

Se há consenso de que os mais empobrecidos eram as maiores vítimas da cólera, quando levamos em consideração a condição social dos mortos pela cólera, observamos que foram escravos ou livres as maiores vítimas. Tomando como referência Hebert Klein, a pesquisadora Keith Barbosa (2009) diz que a taxa de mortalidade de escravos na América Latina, assim como no Caribe, foi muito semelhante, se comparada com a dos livres. David (1996) e Alexandre (2010) afirmam que, na Bahia e no Ceará, res-

indicação de cor, idade ou estado civil. Informações contidas na seguinte documentação: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo Governadoria. Série 383. Livro 202. Relação de pessoas falecidas de cólera na Serra realizada pelo subdelegado de polícia, datada do ano de 1855; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo Governadoria. Série 383. Livro 202. Lista de convalescentes, doentes e mortos realizado pelo médico de Guarapari, Cândido Joaquim da Silva, datada de dezembro de 1855; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo Governadoria. Série 383. Livro 202. Lista nominal das pessoas falecidas nos meses de janeiro e fevereiro de 1856; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Livro 383. Série Governadoria. Correspondência dos membros da Comissão Sanitária de Itabapoana ao vice-presidente da Província do Espírito Santo, datada de 26 de dezembro de 1855; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Fundo Governadoria. Série 383. Livro 202. Relação de pessoas que se enfermaram, realizada pelo médico Manoel Gomes Bittencourt em Itabapoana, 1855; Correio da Victoria, 9 de janeiro de 1856.

pectivamente, foram os negros escravos a maioria dos mortos pela cólera. No que concerne ao Espírito Santo, a deficiência de dados muito nos difi- culta precisar se os escravos foram as maiores vítimas. Dos 506 mortos cuja condição social conseguimos apurar, 301 eram livres e 205 escravos, dados que se aproximam mais dos que Keith Barbosa aponta.

Muito se tem discutido quanto aos fatores que teriam contribuído para a mortalidade de escravos pela epidemia de cólera. Um importante médico do Rio de Janeiro, no século XIX, João José da Silva, imputava a maior mor- talidade entre os escravos ao fato habitarem em “lugares baixos, mal are- jados pouco espaçosos e de alta concentração humana” (SILVA, 1857, p. 20). Para Mirko D. Grmek (1995), um só fator não é capaz de dar conta de explicar o grande número de mortos de uma população por um surto epi- dêmico. Necessário se faz, então, que se busque um conjunto de variáveis para explicar como tal fenômeno aconteceu. No caso do Brasil, além das causas apontadas pelo médico carioca, podemos dizer que maus-tratos, dieta inadequada e cansaço físico associados a fatores biológicos e sociais podem ter sido as razões desse fato.

A brasilianista Mary Karasch, uma das primeiras historiadoras a enfocar a questão da morte dos escravos por surtos epidêmicos, afirma que as doenças tinham por motivação:

A falta de alimentação, roupas e moradias inapropriadas, em combinação com os castigos, enfraqueciam-nos e preparavam- nos para serem liquidados por vírus, bacilos, bactérias e parasi- tas que floresciam na população densa do Rio urbano. As ações intencionais ou não dos senhores contribuíam diretamente para o impacto de doenças específicas ou criavam indiretamente as condições nas quais uma moléstia contagiosa espalhava-se rapi- damente pela população escrava (KARASCH, 2000, p. p. 207).

Alguns estudiosos apontam ainda outros fatores que teriam contribu- ído para a mortalidade de escravos, como subnutrição, insalubridade e ausência de assistência médica, conforme assevera Stuart Schwartz (1988).

Acreditamos que, como a cólera era transmitida de um paciente para outro por meio de restos de comida, ou secreção das fezes, os escravos que viviam nas fazendas e que pertenciam ao mesmo plantel tinham maiores chances de contrair a doença, muitas vezes sem se apercebe- rem. Nas fazendas onde estavam os maiores plantéis, a chance de a cólera se reproduzir era bem elevada. Conforme tabela a seguir, foi na fazenda do Barão de Itapemirim – grande produtor de café e importan- te político da província, dono do maior plantel de escravos do Espírito Santo – onde morreram mais escravos de uma só vez.

Local Quantitativo

Engenho Vermelho de Tavares de Brum e Silva 09 Engenho Boa Vista da Viúva Bello em 15 dias 19 Engenho Coroa da Onça do Cel. Bittencourt 03 Engenho Limão do Major Dias da Silva 03 Engenho Poço Grande do Senhor Povoas 15 Engenho Cotia de Rodrigues Barboza 09

Engenho Colheres de Firmino 02

Engenho Moqui do Barão de Itapemirim 40

Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo Governadoria. Série 383. Livro 202. Relação de escravos mortos em fazendas no Município de Itapemirim, datada de 9 de janeiro de 1856.

Tabela 3 – Escravos mortos no mês de dezembro de 1855

Pessoas de estrato social mais privilegiado também foram vítimas da epidemia da cólera. Elas, se não eram tão endinheiradas, desfrutavam de

algum prestígio social, afinal encontramos referências sobre a morte des- sas pessoas na imprensa local, como a do professor de Primeiras Letras da freguesia de Carapina:

Um dos bons filhos, dos bons cidadãos e dos bons amigos… morreu Joaquim Ribeiro Lima […] nosso presado, e especial amigo já não mais existe […]. Seu corpo confunde-se hoje com o nada; mas só a alma cremos que subio à eternidade, sem culpas, que o afeiassem na presença do Suprem Julgador. Atacada da epidemia reinante, a moléstia zombou de todos os soccorrros da medicina, de que foi possível lançar-se mão! (CV, 26 jan. 1856)

A morte por cólera do primeiro escriturário da Contadoria da Tesou- raria da Fazenda Provincial, Luiz das Neves Paiva, um funcionário gradu- ado na administração provincial, também foi noticiada (CV, 12 abr. 1856). Da mesma forma, noticiou-se a morte do negociante Thimóteo de Toledo Leite (CV, 5 dez. 1855).

A cólera agiu, como dissemos, em todos os estratos sociais e todas as faixas etárias. Ao atingir a população adulta, em plena fase de reprodu- ção, provocou um grande problema para os administradores provinciais com o crescimento do número de órfãos que tinham que ser assistidos pelo Estado. Em março de 1856, o subdelegado de Mangaraí fez alusão ao mísero estado em que se encontravam muitas crianças naquela loca- lidade, após a morte de seus pais, pedindo do Governo Provincial solu- ção para esse problema (APEES, 3 jan. 1856). Tomando conhecimento do grande número de órfãos, em razão da cólera, o ministro dos Negócios do Império pede ao vice-presidente da Província do Espírito Santo que ampare e proteja essas crianças, garantindo-lhes meios de sobrevivência

e educação (CV, 1 mar. 1856). Os membros da Comissão Sanitária de Vitó- ria, Domingos Roiz Souto (APEES, 28 jan. 1856) e Manoel Pereira dos San- tos (APEES, 20 jan. 1856), de São Mateus, alegam idade avançada e saúde frágil para deixarem o cargo para os quais tinham sido designados.

TRANSFORMAÇÕES DA VIDA COTIDIANA: