• Nenhum resultado encontrado

Alguns resultados de geometria hiperbólica

No documento Geometrias não euclidianas (páginas 118-134)

No que se vai seguir, utilizaremos o sistema de axiomas de Hilbert para a geometria absoluta apresentado no primeiro capítulo, e obteremos o sistema axiomático da geometria hiperbólica plana acrescentando uma das seguintes proposições equivalentes236

(1) Axioma das paralelas de Lobachevsky, versão forte:

“Dados um ponto e uma recta não incidentes, com o ponto incide sempre mais que uma recta paralela à recta dada”

(2) Axioma das paralelas de Lobachevsky, versão fraca:

“Existem um ponto e uma recta não incidentes tais que com o ponto incide sempre mais que uma recta paralela à recta dada”

(3) Há um triângulo em que os ângulos internos têm soma inferior a dois rectos. (4) Em qualquer triângulo os ângulos internos têm soma inferior a dois rectos.

A equivalência destas proposições (supostos, bem entendido, os restantes axiomas da geometria absoluta) é um resultado não trivial e de demonstração longa e morosa; por esses motivos, não a apresentamos, remetendo o leitor para a referência [Dio2].

Para simplificar a exposição, adoptaremos como axioma a versão forte do axioma das paralelas de Lobachvesky, na linha de [Car] ou [Som].237 Passamos então a provar alguns resultados típicos da geometria hiperbólica.238

O resultado fundamental sobre paralelismo no plano hiperbólico é o seguinte:

Teorema 79: Teorema do ângulo de paralelismo

Sejam P um ponto e r uma recta não incidentes. Então existem duas semi-rectas a e 1

2

a , de origem P, fazendo ângulos agudos e congruentes com a semi-recta PP0, onde

0

P é o pé da perpendicular baixada de P sobre r e tais que uma semi-recta h, de origem

236 O leitor reconhecerá imediatamente que são negações de alguns dos enunciados geométricos referidos

no primeiro capítulo; na verdade, podemos obter um axioma para a geometria hiperbólica negando qualquer um desses enunciados.

237A título de curiosidade, refira-se que o próprio Hilbert preferiu uma versão do axioma (1) ainda mais reforçada (veja-se [DHi], página 152).

238 Para não sobrecarregar a exposição, admitiremos nas demonstrações alguns resultados de geometria

absoluta, como, por exemplo, os casos de congruência de triângulos, sem apresentar as respectivas demonstrações; indicaremos em cada caso as referências pertinentes.

P e fazendo ângulo agudo com PP0 intersecta a recta r se e só se está contida no interior do ângulo de lados a e 1 a (ver a figura seguinte). 2

Chamando ângulo de paralelismo Π

(

P,r

)

239 do par

(

P,r

)

a qualquer dos

ângulos (congruentes)       ∠ PP0, a1 ou       ∠ PP0, a2 , tem-se que

(

,

)

(

,' '

)

' ' 0 0 P P P r P r PP = ⇔Π =Π

para quaisquer pares

(

P,r

)

e

(

P,' r'

)

240.

Antes de procedermos à demonstração, daremos algumas definições:

Definição 51: As duas semi-rectas a1 e a2 dizem-sesemi-rectas assintóticas para o par

(

P,r

)

.

Definição 52: As rectas suportes das semi-rectas assintóticas a1 e a2 dizem-se paralelas de Lobachevsky para o par

(

P,r

)

.

Definição 53: Duas rectas paralelas que não sejam paralelas de Lobachevsky dizem-se divergentes ou ultra-paralelas.

Para uma boa compreensão destas noções, considere-se o seguinte esquema, no qual utilizámos a notação do enunciado.

Figura 34

239 Notação atribuída ao próprio Lobachevsky.

240 Assim, o ângulo de paralelismo depende apenas do comprimento do segmento da perpendicular e não

da recta ou do ponto dados; a obtenção de uma fórmula explícita para o ângulo de paralelismo será um dos principais resultados deste capítulo. Refira-se ainda que existem construções, descobertas por Bolyai e Lobachevsky para obter o ângulo de paralelismo a partir do segmento da perpendicular e vice-versa (ver [Car], páginas 71 a 77).

O ângulo de paralelismo é qualquer dos dois ângulos a cinzento; o arco a traçado grosso e a recta r são ultra-paralelas.

Não deixa de ser curioso e elucidativo ver a situação no modelo projectivo:

Figura 35

Nesta figura, r e s são ultra-paralelas; r e l1 (recta suporte de a1) são paralelas de

Lobachevski.

Após estas observações, passemos à demonstração do Teorema do ângulo de paralelismo.

Demonstração:

Por uma questão de brevidade, não vamos apresentar uma demonstração completa do teorema a partir da axiomática de Hilbert; preferimos em vez disso mostrar uma demonstração baseada em propriedades do corpo dos números reais.241

Sejam então P um ponto e r uma recta não incidentes e P0 o pé da perpendicular baixada de P sobre r. Pelo axioma das paralelas de Lobachevsky, existem duas linhas distintas, l e 'l incidentes com P e paralelas a r. Das quatro semi-rectas de origem no ponto P que elas determinam, pelo menos uma delas, digamos a, faz um ângulo agudo

0

θ com a semi-recta PP0 (ver a figura seguinte).

241 Para uma prova na linha da axiomática de Hilbert, veja-se [Dio2], páginas 179 a 181; a prova que

vamos apresentar é mais fácil em virtude de se basear no axioma do supremo, uma proposição de mais fácil aplicação que a versão do axioma de Cantor usada na prova de Hilbert.

Figura 36

Se uma semi-recta de origem em P e fazendo um ângulo θ com a semi-recta 1

0

P

P• intersectar a semi-recta r, qualquer outra semi-recta de origem P e fazendo com

0

P

P• um ângulo θ inferior a 2 θ , também vai intersectar a semi-recta 1 r , pelo

Teorema da barra transversal242 (ver a figura seguinte).

Figura 37

Seja então Π

(

P,r

)

o supremo das medidas dos ângulos tais que as semi-rectas fazendo ângulos θ com PP0 intersectam r (este supremo existe, já que a medida do

ângulo recto é obviamente um majorante das medidas dos ângulos em causa); a Π

(

P,r

)

chamaremos ângulo de paralelismo do par

(

P,r

)

.

A semi-recta a1 com origem em P e fazendo ângulo Π

(

P,r

)

com PP0 “separa” portanto a família das semi-rectas com origem em P e contidas no semi-plano de aresta

0

PP e ao qual pertence a semi-recta r em duas classes disjuntas:

242 O Teorema da barra transversal (Crossbar Theorem) é um teorema de geometria absoluta que é

consequência do Axioma de Pasch. O seu enunciado é o seguinte: Dado um triângulo [ABC] e uma semi-

recta de origem em A passando no interior do triângulo, essa semi-recta incide com o lado [BC]. Para uma prova, veja-se [PAV], página 12.

1) as que fazem ângulo com PP0 inferior a Π

(

P,r

)

e que portanto intersectam r ;

2) as que fazem ângulo com PP0 superior a Π

(

P,r

)

e que portanto não intersectam

r .

É fácil de ver que a semi-recta a1 também não intersecta r−243. Com efeito, se

estas duas semi-rectas tivessem um ponto em comum C, bastaria tomar um ponto D em

r tal que DCP0 para se chegar a uma contradição: a semi-recta DP

intersectaria

r em D e faria com PP0 um ângulo α superior a Π=Π

(

P,r

)

, o que contradiz a definição de supremo, conforme se ilustra na próxima figura.

Figura 38

Consideremos agora um outro segmento

[

P'P0'

]

do plano hiperbólico, congruente com

[ ]

PP0 (logo P'P0'=PP0) e seja 'r uma recta incidente com P0' e perpendicular a

[

P'P0'

]

. Seja r'+ uma das duas semi-rectas de origem '

0

P e suporte 'r (ver a figura seguinte).

Figura 39

Se C for um ponto qualquer incidente com a recta r e 'C o ponto de r tal que '+

' '

0 0C P C

P = , então, pelo caso LAL, os triângulos

[

PP0C

]

e

[

P'P0'C'

]

são congruentes e portanto os ângulos ∠P0PC e ∠P0'P'C' são também congruentes. Assim, uma semi-

recta de origem P e fazendo um ângulo θ com PP0 •

intersecta r se e só se a semi-recta

correspondente, de origem P' e fazendo um ângulo θ com a semi-recta P'P0'

intersecta, r . Concluímos assim que os ângulos de paralelismo para os dois pares têm '+

de ser iguais, isto é, que Π

(

P,r

)

(

P,' r'

)

.

Para concluir, suponhamos que os segmentos

[ ]

PP e 0

[

P'P0'

]

coincidem e que as semi-rectas r e r'+ são opostas; resulta que os dois ângulos marcados na figura abaixo

são iguais, concluindo-se assim a prova do teorema. ■

Corolário:

Se duas linhas r e s são perpendiculares a uma terceira, r e s são ultra-paralelas.244

Demonstração:

É consequência imediata do teorema. ■

Figura 40

O nosso próximo objectivo é provar um dos mais famosos resultados da geometria hiperbólica: A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é inferior a dois ângulos rectos245. Para tanto, começaremos por apresentar algumas definições e estabelecer diversos resultados auxiliares interessantes. Vamos encontrar um novo tipo de “triângulos”, típicos da geometria hiperbólica, os chamados triângulos assintóticos.

Informalmente, seja

[ ]

AB um segmento e consideremos duas semi-rectas “assintóticas” CA• e BD, contidas ambas num dos semiplanos de aresta AB (ver a figura seguinte). Convencionamos que as duas se intersectam num ponto ideal Ω e chamaremos triângulo (simplesmente) assintótico ou trilateral à figura ABΩ; nesta figura, os vértices são os pontos “normais” A e B e o ponto “ideal” Ω, o segmento [AB]

244 A recíproca também é válida, conforme veremos mais adiante.

é a base, as duas semi-rectas são os lados e há ainda a considerar os ângulos (usuais) BAC

e ABD∠ .

Figura 41

Veremos mais adiante que os triângulos assintóticos têm muitas propriedades em comum com os triângulos “normais”246.

Da mesma maneira que considerámos os triângulos assintóticos, podemos considerar triângulos duplamente assintóticos, nos quais dois dos vértices são pontos ideais e até triplamente assintóticos (todos os vértices são pontos ideais). A figura seguinte mostra como estes “triângulos” aparecem naturalmente no modelo projectivo: o “triângulo 1” é assintótico, o “2” é duplamente assintótico e o “3” triplamente assintótico. C CC C 2 3 1 Figura 42

Antes de começarmos a utilizar os triângulos assintóticos no estudo da geometria hiperbólica, convém fazer um parênteses para esclarecer uma dúvida natural: no sistema axiomático de Hilbert, existem apenas pontos, não se fazendo qualquer menção de pontos ideais, pontos no infinito, etc. Será possível “enquadrar” formalmente estes novos objectos geométricos (e outros do mesmo género que venham eventualmente a surgir) no sistema?

246 Há também notáveis diferenças: se chamarmos perímetro de um triângulo à soma dos comprimentos

dos seus lados, é óbvio que o perímetro de um triângulo “normal” é um número real positivo, ao passo que o perímetro de um triângulo assintótico é infinito.

A resposta é afirmativa e a maneira de o fazer é sugerida pela naturalidade com que estes objectos surgem no modelo projectivo; na verdade, a partir de um plano hiperbólico é sempre possível construir uma “completação projectiva” na qual surgem os objectos desejados.

O processo é semelhante à construção do plano projectivo a partir do plano afim (por adjunção de uma recta de “pontos no infinito”) mas é bastante mais complicado e tem detalhes técnicos algo enfadonhos; por este motivo, apenas daremos algumas indicações gerais sobre a construção, remetendo o leitor para [Moi] ou [Gre] para justificações detalhadas.

Seja então [AB] um segmento (em geometria absoluta) e consideremos duas semi-rectas CA e DB, contidas ambas num dos semiplanos de aresta AB e cujas rectas suporte AC e BD são paralelas.

Definição 54: O triângulo aberto247 CABD é a figura BD

[ ]

AB AC (a

nomenclatura a utilizar para referir os seus diversos elementos coincide com a apresentada anteriormente).

Se estivermos a trabalhar em geometria euclidiana, não se obtém nada de especialmente interessante: um triângulo aberto reduz-se a uma semi-faixa do plano, como mostra a figura seguinte.

BBBB

AAAA

DDDD

CCCC

Figura 43

Em geometria hiperbólica há possibilidades muito mais interessantes, já que existem várias paralelas à recta AC incidindo com o ponto B. Concretamente, suponhamos que o triângulo aberto goza da propriedade seguinte: qualquer semi-recta de origem B e contida no interior248 do triângulo intersecta a semi-recta CA; temos

então a seguinte definição:

247 Ou biângulo.

Definição 55: Nestas condições, diz-se que a semi-recta BD é uma paralela assintótica à semi-recta CA (ou paralela limite; trata-se de uma óbvia generalização da definição encontrada no Teorema do ângulo de paralelismo, em que o ângulo de vértice em A era recto) e escreve-se BD | CA. O triângulo aberto CABD diz-se então um triângulo assintótico249.

Passemos à introdução dos pontos no infinito, motivados pela conveniência de encontrar um terceiro vértice Ω para o triângulo assintótico CABD. No conjunto de todas as semi-rectas do plano hiperbólico, introduzimos uma relação ~ pondo

s r r s s r s r~ ⇔ ⊂ ou ⊂ ou | .

Tem-se o seguinte resultado importante:

Teorema 80: A relação ~ é uma relação de equivalência. Demonstração:

Apenas a reflexividade é evidente; a prova da simetria é algo complicada (não é nada óbvio que de DB | CA se deduza CA | DB• ) e a da transitividade é ainda pior250, pelo que remetemos o leitor para a referência [Moi], páginas 317 a 323. ■

Definição 56: Um ponto ideal é uma classe de equivalência da relação anteriormente definida; convenciona-se que as rectas com que um ponto ideal incide são exactamente os suportes das semi-rectas da classe de equivalência que o define.

Definição 57: Chama-se Absoluto ao conjunto dos pontos ideais.

Até este ponto, a construção é muito semelhante à do plano projectivo a partir do plano afim por adjunção dos pontos no infinito; o Absoluto corresponde à recta no infinito. No entanto, a necessidade (derivada do Teorema do ângulo de paralelismo) de trabalharmos com semi-rectas em vez de rectas, tem um preço. Com efeito, resulta imediatamente das definições anteriores que qualquer recta r corta o Absoluto em dois pontos e portanto este não pode ter estrutura de recta (senão coincidiria com r…). Ao desenvolver-se a construção, verifica-se que o Absoluto tem estrutura de cónica, definida por uma polaridade conveniente e que há conveniência em introduzir um segundo tipo de ponto no infinito, a que chamaremos pontos ultra-ideais, obtendo-se finalmente o plano projectivo; a geometria hiperbólica surge então como a geometria

249 Há autores que preferem a designação triângulo fechado, só usando a expressão triângulo assintótico

depois da introdução dos pontos no infinito; não teremos necessidade de fazer uma distinção tão fina.

250 A título de curiosidade, o próprio Gauss deu uma prova incompleta de um lema necessário para a

dos pontos interiores à cónica, exactamente como no modelo projectivo. Não vamos estudar esta construção com mais detalhe, já que o nosso objectivo é muito mais modesto; pretendemos apenas referir que a introdução dos pontos no infinito a propósito dos triângulos assintóticos pode ser justificada de forma rigorosa. Assim, dadas duas semi-rectas r e s, lados de um triângulo assintótico de vértices R e S, seja Ω o ponto no infinito251 que elas determinam; Ω será considerado como o “terceiro vértice do triângulo” e falaremos nos “lados” RΩ e SΩ. Do mesmo modo, consideraremos triângulos duplamente e triplamente assintóticos.

Após este interlúdio, voltemos ao estudo dos triângulos assintóticos, concentrando-nos nas semelhanças com os triângulos “normais”.

Teorema 81: Sejam ABΩ e A' ΩB' ' dois triângulos assintóticos tais que

[ ] [

ABA'B'

]

e ∠ABΩ≅∠A' ΩB' '. Então ∠BAΩ≅∠B' ΩA' ' (diz-se então, naturalmente, que os triângulos ABΩ e A'B'Ω' são congruentes).

Demonstração:

Faz-se a partir dos casos de congruência usuais.

Se os ângulos ∠BA e ∠ AB' 'Ω' fossem diferentes, um deles, digamos o primeiro, seria o maior. Tracemos uma semi-recta DA• de modo que ∠BAD≅∠B' ΩA' ' e seja D o ponto em que esta semi-recta intersecta BΩ (ver a figura seguinte). Na semi-recta

' 'Ω

B tome-se um ponto 'D tal que

[

B'D'

] [ ]

BD . Pelo caso ALA de congruência de triângulos, segue-se que os triângulos

[

ABD

] [

e A'B'D'

]

são congruentes. Portanto, vem que ∠B'A'D'≅∠BAD≅∠B'A'Ω', o que é absurdo. Tem pois de ser ∠BAΩ≅∠B' ΩA' ', como queríamos. ■

Figura 44

Em geometria absoluta (logo nas geometria euclidiana e hiperbólica) é válido o conhecido Teorema do ângulo externo252: “Ângulo externo de um triângulo é maior que qualquer dos ângulos internos não adjacentes”. O próximo teorema mostra que é também verdadeiro um resultado semelhante para triângulos assintóticos.

251 Representaremos os vértices no infinito por letras gregas maiúsculas. 252 Ver [Dio2], páginas 71 e 72.

Teorema 82: Num triângulo assintótico

[

AB

]

, o ângulo externo em A é maior que o ângulo interno em B.

Demonstração:

Consideremos um ponto G na semi-recta BA e trace-se a recta AF de modo que BA

FAG≅∠Ω

∠ (ver figura).

Figura 45

A perpendicular à recta BΩ passando pelo ponto médio C do segmento [AB] é também perpendicular à recta AF. Pelo corolário do Teorema do ângulo de paralelismo, segue-se que AF e BΩ são ultra-paralelas e que FAG<∠ΩAG, ou seja, que

BA AG>∠Ω Ω

∠ , como queríamos. ■

Para chegar ao resultado sobre a soma dos ângulos internos de um triângulo, falta-nos examinar as propriedades de um quadrilátero muito importante em geometria absoluta, o chamado quadrilátero de Saccheri.253

Definição 58: Um quadrilátero convexo [ABED] diz-se um quadrilátero de Saccheri se: 1. Os ângulos em dois vértices consecutivos são rectos.

2. Os dois lados adjacentes a esses ângulos são congruentes.

253 No primeiro capítulo fizemos uma breve referência ao padre jesuíta Gerolamo Saccheri, talvez o mais

notável (a par de Lambert) dos precursores da geometria não euclidiana; o leitor interessado em detalhes sobre a sua obra pode consultar [Bon], páginas 22 a 44.

BBBB AAAA EEEE b a s e DDDD t o p o U m q u a d r i l á t e r o d e S a c c h e r i â n g u l o r e c t o ? ? â n g u l o r e c t o Figura 46

Sobre estes quadriláteros, Saccheri provou diversos resultados; demonstraremos apenas os dois primeiros254, pois são os que mais interesse têm para o nosso estudo.

Teorema 83: Primeiro teorema de Saccheri

Os ângulos no topo de um quadrilátero de Saccheri são congruentes. Demonstração:

Consideremos a figura anterior. Se considerarmos os triângulos [DEB] e [EAD] (congruentes pelo caso LAL), segue-se que as diagonais [BD] e [AE] são congruentes; aplicando então o caso LLL, vem que os triângulos [EBA] e [BAD] são também congruentes, e então o resultado é imediato. ■

Teorema 84: Segundo teorema de Saccheri

Em quadrilátero de Saccheri, a recta dos bissectores da base e do topo é perpendicular aos suportes desses segmentos.

Demonstração:

Sejam O e 'O os pontos médios da base [ED] e do topo [AB], como na figura anterior. Pelo caso LAL, os triângulos [BEO] e [DOA] são congruentes, donde se segue o mesmo para os triângulos

[

BO'O

]

e

[

AO'O

]

(caso LLL). O resultado é então imediato, por definição de ângulo recto. ■

Tem-se o seguinte resultado, característico da geometria hiperbólica255:

254

Veja-se, no entanto, o teorema 85. A título de curiosidade, os outros resultados são:

• Terceiro teorema de Saccheri – Em qualquer quadrilátero de Saccheri, os ângulos no topo são agudos ou rectos;

• Quarto teorema de Saccheri – Em quadrilátero de Saccheri, o topo é congruente com ou maior que a base, consoante os ângulos no topo sejam rectos ou agudos.

As demonstrações destes resultados de geometria absoluta podem ser vistas em [Dio2].

255 Em geometria euclidiana, um quadrilátero de Saccheri é simplesmente um rectângulo; compare-se com

Teorema 85: Os ângulos no topo de um quadrilátero de Saccheri são agudos. Demonstração:

Considere-se a figura seguinte

Figura 47

Pelo primeiro teorema de Saccheri, os ângulos internos do quadrilátero em A e B são congruentes; vejamos que são agudos.

Para tanto, tracemos as rectas AΩ e BΩ, paralelas a DE e apliquemos o Teorema 81 aos triângulos assintóticos [BEΩ] e [ADΩ] (o que é possível, pois os ângulos em E e D são rectos e os segmentos [BE] e [AD] são congruentes); concluímos que

Ω ∠ ≅ Ω

EB DA . Pelo Teorema 82, vem que ∠ΩBA<ΩAG para qualquer ponto G em A

B• . Resulta então que ∠BAD≅∠EBA<∠DAG e portanto o ângulo BAD∠ é agudo, como queríamos. ■

Podemos finalmente provar o teorema sobre a soma dos ângulos internos de um triângulo.

Teorema 86: A soma dos ângulos internos de um triângulo é inferior a dois rectos. Demonstração:

Sabe-se que dois dos ângulos internos do triângulo, pelo menos, têm de ser agudos256. Seja então [ABC] um triângulo com os ângulos de vértice em A e B agudos. Sejam I e J os pontos médios dos lados [BC] e [AC] (ver a figura seguinte). Tracem-se as rectas AD, BE e CF, perpendiculares à recta IJ. Resulta então que os dois triângulos rectângulos [ADJ] e [CFJ] são congruentes257; analogamente, os triângulos [BEI] e [CFI] são congruentes. Construímos assim um quadrilátero de Saccheri [EDBA], já que

BE CF

AD= = . Por outro lado, ∠ACB=∠JCF+∠FCI =∠JAD+∠EBI. Podemos finalmente proceder à soma dos ângulos internos do triângulo [ABC]:

256 É a proposição 17 do livro I de Euclides, que é consequência da Proposição 16 (o Teorema do ângulo

externo); refira-se, a título de curiosidade, que a prova de Euclides desta última proposição tem uma pequena falha (ver [Gre], página 119).

EBA BAD IBA EBI JAD BAJ BCA ACB BAC+∠ +∠ =∠ +∠ +∠ +∠ =∠ +∠ ∠ .

Pelo teorema anterior, a soma das amplitudes dos ângulos BAD e EBA∠ é inferior a dois rectos, já que são ângulos do topo de um quadrilátero de Saccheri, o que conclui a prova. ■ CCCC JJJJ AAAA DDDD EEEE BBBB IIII FFFF Figura 48 Corolário 1:

A soma dos ângulos internos de um quadrilátero convexo é inferior a quatro rectos. Demonstração:

Basta dividir o quadrilátero em dois triângulos por meio de uma diagonal e aplicar o teorema. ■

Corolário 2:

Duas rectas não podem ter duas perpendiculares comuns (em particular, não existem rectângulos em geometria hiperbólica258).

Demonstração: É imediata. ■

Vimos anteriormente (corolário do Teorema do ângulo de paralelismo) que, se duas linhas r e s são perpendiculares a uma terceira, então elas são ultra-paralelas.

258 Este corolário, de aspecto tão inocente, implica que a teoria das áreas no plano hiperbólico seja

consideravelmente diferente da sua correspondente no plano euclidiano, uma vez que esta se baseia na existência de rectângulos.

Provaremos em seguida a recíproca, mostrando como se pode traçar uma perpendicular comum a duas rectas ultra-paralelas, uma construção famosa que se deve a Hilbert.

Teorema 87: Duas rectas ultra-paralelas admitem sempre uma perpendicular comum. Demonstração:

Sejam r e s as duas rectas ultra-paralelas. Tomem-se dois pontos A e C incidentes com s e tracem-se duas rectas AB e CB , perpendiculares a r. No caso particular em que '

[ ] [ ]

ABCB', basta considerar a recta que passa pelos pontos médios da base

[ ]

BB e do ' topo

[ ]

AC do quadrilátero de Saccheri

[

ACB'B

]

, em virtude do segundo teorema de Saccheri (Teorema 84). Vamos ver que é possível reduzir o caso geral a este caso particular.

Se não se verificar que

[ ] [ ]

ABCB' , podemos supor que AB<CB'. Considere- se um ponto 'A incidente com CB tal que '

[

A'B'

] [ ]

AB e trace-se por 'A uma recta 's tal que ∠

(

s,' A'B'

)

≅∠

(

s, AB

)

(ver figura a seguir). Se conseguirmos mostrar que se s' incidem com um mesmo ponto259 D, bastará tomar um ponto 'D tal que

[

AD' ≅

] [

A'D

]

e

que seja incidente com a semi-recta com suporte s, origem em A e que não contém o ponto C para se obter o resultado, já que D e 'D serão os vértices do topo de um quadrilátero de Saccheri com base sobre a recta r, pelo que se pode aplicar a parte já provada do resultado.

Temos pois de provar que se s' incidem com um ponto não ideal D. Sejam

No documento Geometrias não euclidianas (páginas 118-134)

Documentos relacionados