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2 ESTRUTURA MILITAR NICARAGUENSE

2.2 Governo sandinista

2.2.2 Alistamento militar

Uma das medidas que mais trouxe efeitos e desdobramentos para o processo não somente militar, mas também sócio-político da Nicarágua na década de 1980 foi a implementação do serviço militar obrigatório. Criado em 1983, o Serviço Militar Patriótico (SMP) foi uma resposta às necessidades decorrentes do conflito armado com a

110 NICARAGUA. Ley de Organización de la Auditoría Militar y Procedimiento Penal Militar Provisional.

Decreto n. 591 (aprobado dia 2 de dezembro de 1980). Publicado em La Gaceta n. 292 de 18 de dezembro de 1980.

111 NICARAGUA. Ley Provisional de los Delitos Militares. Decreto n. 600 (aprovado dia 12 de dezembro de

contrarrevolução. Pela legislação112, era dever patriótico do cidadão nicaraguense participar da defesa de seu país, “defender con las armas la Soberanía e Independencia de la Patria y la Revolución Popular Sandinista113”. Nesse sentido, para a Junta de Governo (que nada mais era do que uma representação das vontades da Direção Nacional da FSLN, principalmente após as saídas de Alfonso Robelo e Violeta Chamorro), o SMP era a institucionalização do serviço militar voluntário já prestado por milicianos e reservistas desde o triunfo insurrecional e um esforço para a organização da participação popular na defesa do projeto revolucionário. O SMP foi estruturado em duas formas: o Serviço Militar Ativo, para jovens entre 18 e 24 anos, cumprindo dois anos de prestação de serviços, e o Serviço Militar de Reserva, para homens de 25 a 40 anos. Desses dois eixos saíram a base da defesa armada do país. Com a convocação de um grande contingente de jovens e adultos, o EPS conseguiu superar a correlação de forças e meios da Contra, o que permitiu distribuir e organizar de maneira quantitativa e qualitativa as tropas e dar início à etapa de ofensiva contra seus opositores armados, introduzindo novos dispositivos e elementos de combate.

Dentre as novas unidades possibilitadas pelo alistamento militar destacavam-se os Batalhões de Luta Irregular (Batallones de Lucha Irregular – BLI). Criados no mesmo ano da instauração do SMP, 1983, eram unidades de alta capacidade de manobra e poder de fogo114, aptos a enfrentarem os métodos de combate da Contra. Em cumprimento do plano “De Pomares a Fonseca115” – iniciado em 1984 e alicerce do desenvolvimento estrutural do EPS, com ajustes nos órgãos de mando, quadros, armamentos, logística etc., bem como criação de novas unidades operacionais visando uma autonomia tático-operativa e maior capacidade de fogo – foram formados doze BLI (no período de 1983 a 1985) que atuaram ativamente até o fim da década de 1980116.

Além dos BLI, foram também criados Batalhões Ligeiros Caçadores (Batallones Ligeros Cazadores – BLC), pequenas unidades de luta irregular formadas por três companhias e pessoal de apoio e serviços. Entre 1984 e 1986 foram criados vinte e um BLI, todos subordinados às Brigadas de Infantaria do EPS. Outra unidade institucionalizada foram os Batalhões de Infantaria de Reserva (Batallones de Infantería de Reserva – BIR),

112 NICARAGUA. Ley del Servicio Militar Patriótico. Decreto n. 1327 (aprovado dia 13 de setembro de 1983).

Publicado em La Gaceta n. 228 de 6 de outubro de 1983.

113 Idem. Capítulo II. Artigo 2. Tradução livre: “defender com armas a soberania e independência da pátria e a

Revolução Popular Sandinista”.

114 EJÉRCITO DE NICARAGUA. Op. cit. p. 101.

115 Em referência a dois dos fundadores da FSLN: Germán ‘El Danto’ Pomares e Carlos Fonseca.

116 Os nomes dos doze Batalhões de Luta Irregular eram: Simón Bolívar, Germán Pomares Ordóñez, Sócrates

Sandino, Pedro Altamirano, Farabundo Martí, Francisco Estrada, Ramón Raudales, Santos López, Juan Gregoria Colindres, Rufo Marín, Miguel Ángel Ortez e Juan Pablo Umanzor.

organizados desde 1980, porém somente estabelecidos legalmente após a incorporação do SMP às Forças Armadas. Os BIR também eram unidades pequenas, assim com os BLC, contudo, com uma estrutura um pouco mais preparada e fortalecida117. Na primeira metade da década de 1980 foram utilizados para o combate com a Contra, posteriormente, assumiram missões de proteção e segurança a objetivos estratégicos. No total, foram criados cento e trinta e seis BIR em todo o território nicaraguense.

Em associação com os BIR, organizaram-se Grupos Táticos, unidades de infantaria formadas por pessoal da reserva e permanentes, com três BIR em cada Grupo. Nove Grupos Táticos foram criados para cumprirem missões de combate regular e irregular. E as Brigadas de Infantaria de Reserva, unidades de tropas gerais para ações semirregulares e irregulares conformadas por três ou quatro BIR e grupos de artilharia terrestre e antiaérea. Durante os anos 80, vinte e seis Brigadas foram criadas. Por fim, as Companhias Permanentes Territoriais (Compañías Permanentes Territoriales – COPETE); unidades de luta irregular subordinadas aos BIR e/ou as Brigadas de Infantaria de Reserva. De 1984 a 1986 se formaram oitenta COPETE para atuarem nas diversas Regiões Militares nicaraguenses.

Com o lema “Un solo ejército” (Um só exército), os “Cachorros de Sandino”, como eram conhecidos os combatentes sandinistas provenientes do SMP, formaram a base do EPS em sua totalidade. Conforme a agressão armada da Contra aumentava, mais homens eram convocados pelo SMP a cumprirem seu “dever patriótico”. Se em 1980 o efetivo do EPS era em torno de vinte mil homens, em 1983, ano de implementação do serviço militar obrigatório, cerca de cinquenta mil nicaraguenses compunham as tropas de defesa. Quanto ao SMP, de 1983 a 1989, quase cento e cinquenta mil jovens foram mobilizados para o serviço ativo, e pouco mais de cento e setenta e cinco mil homens para o serviço de reserva118. Desse modo, o próprio desenvolvimento quantitativo do EPS exigiu um aperfeiçoamento da estrutura militar do país, para que o incremento qualitativo fosse uma consequência direta do aumento de efetivos. O apoio soviético em referido campo foi decisivo para a preparação de quadros: a criação de Centros de Treinamento Militar (Centros de Entrenamiento Militar – CEM) e de Centros de Preparação de Oficiais (CPO) no mesmo ano de 1983 cumpriu uma etapa imprescindível para o sucesso operativo das Forças Armadas da Nicarágua.

117 Cada BIR contava com três companhias de infantaria, uma bateria de morteiros, uma bateria de Grap-1P

(lança-foguetes de fabricação soviética) e pequenas unidades de segurança. Ver: EJÉRCITO DE NICARAGUA. Op. cit. p. 100.

118 Dados de BARBOSA MIRANDA, Francisco. Historia Militar de Nicaragua – antes del siglo XV al XXI.

Sem dúvida, uma das principais conquistas do regime sandinista foi assegurar os fundamentos da defesa do processo e do poder revolucionário, ainda que à custa do deterioramento econômico e social, bem como do desgaste político, moral e material. E o uso sistemático do serviço militar foi um elemento central para a derrota estratégica da Contra, visto que permitiu de maneira eficiente a reposição periódica do complemento militar. Contudo, os efeitos políticos foram opostos: o descontentamento popular com a manutenção de uma situação de guerra permanente minava o apoio ao projeto sandinista, principalmente nas regiões rurais, onde os jovens eram importantes figuras na produção familiar. E foi justamente nessa debilidade política e social do regime sandinista que a contrarrevolução se apoiou para tentar pôr fim ao governo de Daniel Ortega; grupos políticos opositores nicaraguenses faziam propagandas defendendo o fim do SMP, buscando ressaltar como era maléfico e prejudicial para a população.

Nessa questão, expôs Roberto Cajina119:

Suspender el SMP cuando la guerra aún no cesaba, por la continua negativa de la Contra a cumplir con los acuerdos de los presidentes de Centroamérica (Esquipulas II, Alajuela, Costa del Sol y Tela), hubiera sido el suicidio de la revolución. Es posible que el Frente Sandinista ganara las elecciones por un estrecho margen, pero ello hubiera significado perder todo lo que hasta entonces se había ganado en el teatro de operaciones militares.

No fim da década, quase um terço dos efetivos do EPS eram provenientes do SMP, o que evidenciava a importância do alistamento militar para o triunfo sandinista sobre as forças contrarrevolucionárias. Para a FSLN, tal mobilização obrigatória de jovens e adultos era parte essencial de um projeto de institucionalização das Forças Armadas. O que não significava apoliticismo. Para os dirigentes sandinistas, a profissionalização do Exército não implicava a separação do projeto político vigente, como ressaltou Tomás Borge120: “Yo afirmo que no hay ejército apolítico en el mundo. […] Por cierto el Ejército Popular Sandinista no es un ejército apolítico”. Nesse pensamento, o SMP era uma forma de canalizar ordenadamente a vontade patriótica e revolucionária da população, garantindo uma maior efetividade defensiva.

119 CAJINA, Roberto. Transición política y reconversión militar en Nicaragua, 1990-1995. Managua: CRIES,

1996. p. 25. Tradução livre: “Suspender o SMP quando a guerra ainda não cessava, pela contínua negativa da Contra em cumprir os acordos dos presidentes da América Central (Esquipulas II, Alajuela, Costa del Sol e Tela), teria sido o suicídio da revolução. É possível que a Frente Sandinista ganhasse as eleições por uma estreita margem, mas isso teria significado perder tudo o que até então se havia ganhado no teatro de operações militares”.

120 BORGE, Tomás apud BACCHETTA, Víctor L. Op. cit. p. 35. Tradução livre: “Eu afirmo que não existe

Interligado à tal noção tinha-se a ordenação geral castrense do regime sandinista: a Doutrina Militar da Revolução Popular Sandinista. Elaborada entre os anos de 1984 e 1985, possuía como eixo a ideia da defesa da Revolução como uma guerra nacional, patriótica e popular (“guerra de todo el pueblo”). Permeavam referida doutrina operações estratégicas defensivas regulares e guerrilheiras, levando-se em consideração oposições armadas de forças irregulares e o perigo de uma eventual intervenção de tropas estadunidenses. Por meio desta resistência ativa e total contra possíveis “invasores”, evitava-se um triunfo relâmpago desses últimos, detendo-os e logo os vencendo. Três pilares estratégicos fundamentavam a Doutrina Militar Sandinista: as massas populares, o Estado e o partido (FSLN). O Exército, eixo central, era entendido como uma instituição do Estado, como instrumento das massas e do partido, “arma” principal, ao redor do qual se organizava a defesa da nação121.

Com o SMP, a Frente Sandinista estabeleceu uma capacidade mobilizadora massiva, incluindo também aqueles que voluntariamente aderiam ao EPS e às suas unidades. Mas ainda assim, o EPS carecia de especialização, seja nas unidades operacionais combativas ou no sistema logístico, por exemplo. Faltava uma capacidade efetiva para vencer estrategicamente as forças contrarrevolucionárias122. O crescimento acelerado das forças sandinistas

mobilizadas a partir de 1984 correspondia a uma etapa de adequação às capacidades econômicas e demográficas do país. A perspectiva militar era a de que com o SMP seria possível criar as condições para, em um curto prazo, dispor de um eixo especializado que seria combinado com a mobilização massiva das milícias e dos reservistas. Dito de outra maneira, com o crescimento das tropas era possível preparar determinado número de integrantes do EPS em cursos de especialização e treinamento, isso sem perder a capacidade combativa para os enfrentamentos com a Contra.

Não é errôneo afirmar que a implementação do SMP foi passo decisivo na etapa evolutiva do EPS, possibilitando a criação de novas unidades e especializando as tropas permanentes já existentes. Porém, como já ressaltado, as consequências sociais foram uma das debilidades do regime sandinista. É claro que a guerra foi o principal fator para a derrocada política do sandinismo, mas o uso massivo do serviço militar obrigatório também foi um dos elementos relevantes nesse processo.