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3 EXÉRCITO POPULAR SANDINISTA (EPS)

3.3 Função e papel do EPS

A Doutrina Militar sandinista determinava que a defesa do país e do projeto revolucionário era uma prioridade e necessidade premente. O Exército Popular Sandinista teve suas atribuições em consonância com tais preceitos. Em sua lei de criação, apenas foi mencionado que o EPS seria a única força armada do país, e que todos os demais corpos armados mantidos e organizados estariam sob sua administração e regência. O Estatuto Fundamental, como primeira norma criada pela Revolução Sandinista em 20 de julho de 1979, tem um título específico destinado às Forças Armadas e, de acordo com o mesmo, seria estabelecido “un nuevo Ejército Nacional de carácter patriótico dedicado a la defensa del proceso Democrático y de la Soberanía e Independencia de la Nación, así como la integridad de su territorio 152”.

150 BARBOSA MIRANDA, Francisco. Historia militar de Nicaragua – antes del siglo XV al XXI. Managua:

Francisco Barbosa, 2009. p. 345.

151 FRENTE SANDINISTA DE LIBERACIÓN NACIONAL. Op. cit. p. 31.

152 NICARAGUA. Estatuto Fundamental de la República de Nicaragua (20 de julho de 1979). Publicado em La

Gaceta n. 1 de 22 de agosto de 1979. Título IV. Artigo 24. Tradução livre: “um novo Exército Nacional de caráter patriótico dedicado à defesa do processo democrático e da soberania e independência da nação, assim como da integridade de seu território”.

O conceito de soberania era um dos mais utilizados pelo sandinismo. Em seu léxico político, soberania estaria próxima da ideia de nacionalismo, como uma afirmação da capacidade do país em tomar suas decisões com completa independência153. Na doutrina clássica, soberania é tratada como um poder absoluto, total, indivisível e ilimitado, com manifestações internas e externas. Internamente, implica uma autoridade que não pode ser sobrepujada; externamente, relaciona-se com a independência de decisões, sem qualquer tipo de interferência. Interligar os conceitos e significados de soberania e nacionalismo foi uma estratégia eficiente da FSLN, permitindo que símbolos e personagens associados ao aspecto pátrio nicaraguense fossem remontados e interpretados conforme as estratégias necessárias para a manutenção do sandinismo. Daí explica-se as constantes associações com figuras como Benjamín Zeledón154, Ramón Montoya Acevedo155 e principalmente Augusto C. Sandino e seu Exército Defensor da Soberania Nacional da Nicarágua (EDSNN)156. Sabemos que, na Nicarágua, os exércitos institucionais não tiveram uma continuidade orgânica ou política; dessa forma, o EPS fundamentou sua identificação política e militar com o EDSNN, visando retomar uma ideia central de nacionalidade e não de partidarismo.

Outro ponto mencionado era a defesa da integridade territorial, uma missão na qual o EPS permaneceu ativo ante uma iminente (ao menos para a direção da FSLN) intervenção estrangeira. Mas a ameaça poderia igualmente ser interna, com possíveis regiões de influência da Contra (regiões rurais, de maneira específica, por motivos já tratados anteriormente), o que poderia ocasionar uma divisão no país. Diante de tais potenciais ameaças, Daniel Ortega chegou a afirmar que, se preciso, a radicalização ocorreria157. Apesar disso, as forças armadas nicaraguenses nos anos 80 não poderiam ser percebidas como agressivas; uma vez que a

153 GUZMÁN, Luis Humberto. Políticos en uniforme: un balance del poder del EPS. Managua: Instituto

Nicaragüense de Estudios Socio-Políticos, 1992. p. 44.

154 Benjamín Zeledón foi um político e militar nicaraguense. Principal símbolo da resistência ao governo

conservador de Adolfo Díaz, que era apoiado pelo governo estadunidense. O conflito entre opositores de Díaz e tropas de marines ficou conhecido como Guerra de Mena (julho-outubro de 1912). Zeledón foi capturado e morto, existindo inúmeras versões de tal fato. A intervenção estadunidense de 1912 perdurou até 1925. Para os líderes da FSLN, o general Benjamín Zeledón contribuiu diretamente para a formulação do conceito de pátria, de forma pertinente, contextualizada e desde uma perspectiva nicaraguense.

155 Jovem soldado nicaraguense de 14 anos morto na guerra contra Honduras e El Salvador (1907), destacando-

se na Batalha de Namasigüe (16 a 23 de março de 1907), quando saiu de sua trincheira para encorajar seus companheiros a uma carga final contra o inimigo. Em 1909 um monumento ao soldado foi criado com os dizeres “El Niño Héroe de Nicaragua” e é mantido até hoje na cidade de Managua.

156 Fundado em setembro de 1927 por Sandino a partir de sua coluna que participou da Guerra Constitucionalista

(1926-27). Não era uma facção partidária, mas sim um exército de patriotas, opostos à intervenção estadunidense na Nicarágua. Era um exército irregular com características regulares, combinando guerra de movimentos com guerra de posições. Iniciou a chamada “guerra de guerrilhas” no país, chegando a ganhar repercussão internacional. Após tentativas de paz, dissipou-se com o assassinato de Sandino em fevereiro de 1934.

157 ORTEGA, Daniel apud ARANA, Roberto González. Nicaragua. Dictadura y revolución. In: Memorias, ano

própria carência de armamentos e meios materiais ofensivos (um grande exemplo era o setor de aviação, em que praticamente inexistiam as aeronaves de combate), bem como a situação econômica nicaraguense, excluía a possibilidade de estabelecimento de um exército de caráter ofensivo.

A defesa da Constituição e das leis também era tarefa do EPS, conferida ao mesmo pelo texto constitucional e por sua lei orgânica. Este foi um dos pontos mais discutidos na bibliografia consultada e em entrevistas com pesquisadores. De maneira geral, apontou-se que seria absurdo pensar uma resolução pela maneira coercitiva de disputas, por exemplo, entre o poder executivo e o judiciário. Interessante ressaltar que pesquisadores influenciados pela própria Frente Sandinista criticaram a pretensão de defesa da democracia e do funcionamento do governo através de medidas de força158, argumentando-se que a proteção desses últimos deve recair nas instituições políticas devidamente cimentadas159. A história nicaraguense presenciou o persistente uso da violência armada para relevo das forças políticas, mas esse vazio de instrumentos pacíficos apenas agravou a situação política do país.

O principal objetivo do EPS declarado por dirigentes da FSLN residia na defesa das conquistas do projeto revolucionário. De acordo com o artigo 93 da Constituição Política de 1987, era direito do povo nicaraguense armar-se para defender suas conquistas: “El pueblo nicaragüense tiene derecho de armarse para defender su soberanía, su independencia y sus conquistas revolucionarias. Es deber del Estado dirigir, organizar y armar al pueblo para garantizar este derecho160”. Porém, não existia uma definição legal das “conquistas” e a Constituição também não conferia claramente ao EPS este papel. Antes mesmo da elaboração da Carta Magna de 1987 tal preceito foi inferido pela FSLN, recaindo na ideia da autopercepção da Frente Sandinista como vanguarda e única herdeira dos antigos ideais de Sandino. O EPS, entendido e declarado pela direção sandinista como “braço armado do povo e herdeiro direto do Exército Defensor da Soberania Nacional”, teria então participação fundamental nesse objetivo. Ainda segundo a Constituição de 1987, “el Estado prepara, organiza y dirige la participación popular en la defensa armada de la patria, por medio del Ejercito Popular Sandinista161”. A partir dessas considerações podemos questionar dois

158 MARÍN, Raúl; O’KANE, Trish. El reverso de la medalla. In: Pensamiento Propio, n. 88. Managua, março

1992.

159 GUZMÁN, Luis Humberto. Op. cit. p. 50.

160 NICARAGUA. Constitución Política (aprovada dia 19 de novembro de 1986). Publicada em La Gaceta n. 5

de 09 de janeiro de 1987. Título V, artigo 93. Tradução livre: “O povo nicaraguense tem o direito de se armar para defender sua soberania, sua independência e suas conquistas revolucionárias. É dever do Estado dirigir, organizar e armar o povo para garantir esse direito”.

161 Ibid. Título V, artigo 95. Tradução livre: “o Estado prepara, organiza e dirige a participação popular na defesa

aspectos: quais eram as conquistas da revolução? E, o EPS era instrumento idôneo para defendê-las162? Brevemente podemos indicar como legado importante do regime sandinista a participação cidadã na vida social e política, assim como o desenvolvimento de uma consciência crítica (consequência da ativa participação popular); além da reforma da estrutura agrária do país e da recuperação da dignidade popular163. Contudo, materialmente foram evidenciados grandes retrocessos, especialmente pela frágil situação econômica nicaraguense durante toda a década de 1980. Quanto ao segundo ponto, Luis Humberto Guzmán164 indicou um ponto de vista interessante. Para o autor, ditas “conquistas” sandinistas só poderiam ser anuladas pela força, por uma forte repressão. E tal capacidade estava presente exclusivamente no EPS. Assim, principalmente após 1990, o EPS era potencialmente mais uma ameaça do que um símbolo da defesa das conquistas revolucionárias. Por outro lado, a despeito da quase permanente situação de guerra que envolvia a Nicarágua, durante os anos 80 o EPS era visto pela FSLN e por grande parte da população como instrumento central na defesa do país e do projeto revolucionário.

A dualidade de opiniões acerca do papel desempenhado pelo EPS e suas funções (então presentes ou futuras) era visível na segunda metade da década de 1980, e justamente aí se percebe o quão relevante era o mesmo no cenário nacional.