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Alogismo às avessas

No documento O áspero humor de Lobo Antunes (páginas 164-171)

2. O HUMOR EM LOBO ANTUNES

2.1. Faces do humor: comicidade e riso

2.1.6. Alogismo às avessas

Nem mesmo a couraça das ideologias mais impenetrável consegue ficar imune ao riso sincero, verdadeiro, provocado pelos vários “parvos” criados por Lobo Antunes e pelos quais o autor parece ter certo carinho, “porque os produz de montão”. Só na Trilogia há dois: Rui, de O Esplendor e Romeu, de O Manual. Este aparece, sugestivamente, na parte do livro denominada “da existência dos anjos”. Há ainda Simone, a última narradora de Exortação, cuja estultícia a aproxima de personagens abobalhadas. São únicos a receberem certa condescendência do autor.

Uma passagem de O esplendor de Portugal expõe lapidarmente o absurdo das convenções impostas a uma sociedade formada sobre bases capitalistas para questionar clichês e arquétipos, pelo humor lúcido de Rui, filho epilético de Isilda:

na secretária do escritório havia um pisa-papéis que era uma esfera de vidro com renas a puxarem trenó e sentado no trenó um senhor gordo de barba, fato de lã e carapuço encarnado. Virava-se a esfera ao contrário, punha-se direita outra vez, um torvelinho de neve cercava o trenó e o senhor de barba, depositando uma poeira de gelo no carapuço, nas renas, no pinheirinho microscópico ao fundo, a minha mãe colocava o pisa-papéis na secretária entre fotografia nossa em Durban e um avestruz de pau-santo cujos olhos eram pedras transparentes, explicava

— É o Pai Natal!

e eu não entendia como aquela criatura de plástico lograva sair de sua prisão de vidro, repleta de água com uma bolha de ar em cima, para nos oferecer as prendas que apareciam de manhã na sala de jantar com nossos nomes em rótulos colados aos embrulhos, e ainda menos entendia que o Pai Natal os comprasse nos estabelecimentos de Luanda.

(e a sua unha não conseguia raspar por inteiro nem o preço nem a etiqueta das lojas) (EAC, p. 37)

Pela voz de Rui — devido às “correntes desordenadas” no cérebro, é internado quando adulto em um asilo da Damaia pelos irmãos — são contestados alguns valores que há muito perderam a capacidade de fazer sonhar o homem moderno. Rui derruba um por um os arquétipos, cujo único objetivo, por trás da camada emotiva, parece ser de aferir lucros, aumentar vendas, instigar o consumo. Rui questiona o fato de o Pai Natal descer pela chaminé e acabar no fogão “a fazer companhia ao pato e ao arroz no forno” e de como “um cavalheiro gordo caberia num tubo estreito e sujo”(EAC, p.38),

a minha mãe garantia que o Pai Natal, cheio de manhas e experiência

(era-me difícil associar a bondade e a manha numa mesma pessoa, características do meu ponto de vista incompatíveis)

possuía truques secretos capazes de resolverem problemas para ele simplicíssimos de chaminés estreitas e fogões perversos, ansiosos por assarem com batatas coradas quem lhes tombasse no bojo, truques que a minha mãe, a avaliar pelo sorriso de conhecedora, partilhava sem dúvida mas se recusou a explicar como estávamos em novembro. [...]

Passávamos o resto da tarde contemplando o pisa- papéis na esperança que o Pai Natal decidisse treinar-se com embrulhos e renas e neve, abandonando a esfera de trenó, subindo no telhado, introduzindo uma polaina habilidosa e depois a barba e todo o corpo rechonchudo por onde o fumo saía.(OEP, p. 38;grifo nosso)

A oposição entre o pensamento adulto, manifesto no “sorriso de conhecedora” e a suposta inocência do “parvo” deveria construir aquilo que Propp chama de alogismo.

Propp afirma que “ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causa externas ou internas, há casos em que o fracasso se deve à falta de inteligência. A estultícia, incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e

efeitos, desperta o riso”.179 Segundo Propp, o tolo emociona quando atinge um

coração piedoso. No entanto, nas passagens acima, a estultícia fica por conta da mãe que ludibria e infantiliza fatos na tentativa de emocionar a criança.

Rui rompe com as características próprias do alogismo imputado aos “parvos” por Propp: à falta de lógica aparente em suas manifestações sobrepõe-se a denúncia de relações defeituosas, pensamentos distorcidos, manipulações impostas à sociedade e pela sociedade. Rui é a única personagem realmente feliz de O

esplendor; mesmo consciente de sua doença, encena uma inconsciência

“estudada”, que lhe possibilita uma visão clara de si e dos outros. Isso denuncia um estado psicológico incompatível com seu estado mental, o que confere sentido destoante à narrativa “... sentia-me importante por estar doente e ir morrer.”(OEP, p.144). O que acontece também na manifestação de bem-estar que a doença proporciona à avó que se sente “radiante de desgosto” enquanto “eu sem vontade nenhuma de me levantar interessado num mundo feito de sapatos e tornozelo com vozes, fios soltos de passadeira, cheiro de cera e lama ressequida, falhas de sobrado, galope de baratas, um universo ao rés do chão” .(OEP, p. 166)

Os modos de condensação do mundo adulto no mundo infantil resultam do adensamento do alógico no lógico, da estultícia na esperteza. O confronto adulto/criança coloca em cheque a validade de imposições de adultos e do

nonsense dos que se consideram capazes de ordenar o mundo:

...as pessoas crescidas não sabem prova dos nove nem a capital da Albânia nem conjugam verbos e não lhes ralham por isso, gostam de sopa de nabiças, detestam cágados e rãs, não mastigam estearina, usam sapatos à media e não três medidas acima, não ligam a guarda-chuvas de chocolate, no caso de existirem irmãos não se vestem de igual, podem tossir á vontade sem tomar xarope, deixar batatas e salada no prato sem escandalizar o mundo. (EAC, p.192)

Essa forma de manifestação lingüística mescla parataxe conjuntiva (crítica) com parataxe de seriação simples (forma de escrever infantil), que

preferimos apontar no texto como manifestação da condensação de vários sentidos em uma única manifestação lingüística. Assim, a intencionalidade da felicidade desfocada, que permeia a maldade e a inconsciência, é resultado do poder de manipulação e responsável pela condução do humor:

gostava de desmaiar também para receber mais sobremesa, viajar todas as semanas a Malanje, poder ficar á pé até ás onze, com as pessoas crescidas, e fazer desenhos com a caneta nova de meu pai, a escutar a música do rádio e a girar os botões de noticiário em noticiário sem que ninguém se zangasse

— Pobre criança

Enternecido comigo (OEP, p. 167)

Por sua vez, para apontar a visão equivocada do povo português em relação a seu passado “glorioso”, véu colocado sobre o presente miserável para encobrir a realidade, surge Romeu e sua denúncia, que opõe sonho e realidade no jogo de contrários que conduz à irrisão:

— Ás vezes de manhã quando abro as cortinas vejo[...] as caravelas do Infante, homens barbudos de gibão a carregarem sacos e tonéis, e o rei sentado de cachucho no indicador sentado numa cadeira de veludo a abanar-se[...] é um conde de joelhos a desdobrar um mapa e a explicar-lhe a Índia[...] a minha mãe a espreitar pelas cortinas só lado errado em que só havia cabanas de pescadores, uma forca e o povo descalço. Minha mãe dá corda ao papagaio que grita durante cinco minutos numa felicidade complicada

— Quem manda?

Salazar Salazar Salazar

(OMI, p.210-213)

A ‘loucura’ de Romeu é controlada com remédios para as “caravelas”, como diz sua mãe. Mesmo assim, continua a mencionar a corte de bufões: um rei “espanejando seus calores com um leque de avestruz” paparicado por uma multidão de “pajens, aias, astrólogos e catatuas e anões e cadelas” em analogia ao país

comandado por Salazar e seus ascetas, enquanto o povo “anda descalço e arrasta o canhão para a bordo” para lutar em guerras que não provocou. (OMI, p.216)

No plano diegético, há sempre, segundo Propp, a maldade dos que se divertem à custa do tolo, tal como ocorre a Romeu, quando embrigado na festa de Santo António, “o dono da taberna [...]ordenou que o filho da dona me abaixasse as calças e apontou-me a taverna para mangarem comigo, os dois contemplando-me com o entusiasmo do vinho — Tens uma razão de viver que mete inveja Romeu”(OMI, p.224). A mãe sempre disposta a defendê-lo

E um quartel em (Setúbal) onde fui com a minha mãe há sete anos á inspeção para a tropa, a minha mãe me proibiu despir- me

— Quieto Romeu,

quando eu ia despir-me como os outros e exigiu, a discutir com um soldado de bata, entrar comigo no ginásio cheio de rapazes nus a taparem com as mãos encavacados de vergonha dela”

A minha mãe pronta ameaça os, a gritar por socorro, a defender-me, se me tentasse fazer mal. (OMI, p.225).

O artifício de atribuir a verdade a um tolo tem antecedentes históricos. A verdade dita por néscios ou pelos simples de espírito foi valorizada pelo cristianismo. Nos primeiro séculos da Idade Média, a loucura foi apontada como um dos caminhos que conduziam a Deus. Conforme refere José Rivair Macedo, no medievo o louco era tratado com desprezo e violência, por simbolizar a “desordem, a desagregação e as pulsões destruidoras”, resultado de estar possuído pelo demônio, embora, concomitantemente a isso, simbolizava “a pureza original, a ingenuidade e a humildade”, resultado da simplicidade de espírito.180 Identificado com as crianças, o tolo afirma “verdades universais, inatingíveis ao homem comum”.181 Os tolos estão na Epístola aos Coríntios, (I Coríntios 3, 180,) em que São Paulo diz que Deus escolhera os tolos para confundir os sábios: “Ninguém se engane a si mesmo; se algum entre vós e tem por sábio segundo este mundo, faça-

180 In Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média, op.cit., p.132-138.

181 GUGLIELMI, Nida. Status del loco y a locura em el siglo XII, a propósito de dos cenas

românticas,in Anales de Historia Antiga y medieval. Cf. op. cit. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média.

se insensato para ser sábio. Porque sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito: “Eu apanharei o sábio na sua própria astúcia”. Há uma passagem em O esplendor em que a cena de linchamento de um louco remete aos procedimentos medievais “Assisti ao linchamento do louco da vila de Nisa. Os gaiatos tinham medo dele, os cachorros fugiam se calhava passar, roubava tangerinas, ovos farinha, plantava-se no altar-mor insultando a Virgem, um dia abriu a barriga de um vitelo do pescoço ás virilhas, o animal entrou no largo a tropeçar nas tripas, os camponeses da herdade pegaram o louco [...]começaram a bater com enxadas e paus sem que defendesse, protestasse sequer, um vagabundo que sorria aumentando o sorriso a cada golpe[...] puxou um pente da algibeira das calças a arranjar o cabelo, no momento seguinte um calhau esmagou-lhe o peito e as madeixas assemelhavam-se ao ninho que as cegonhas construíram no vértice do depósito da água”(OEP, p.24)

Os séculos XI e XII, tidos como época áurea da “loucura sagrada”, com “loucos por amor a Cristo” comportando-se como bufões, clowns, mostram, no meio profano, os “idiotas públicos” mantidos nas aldeias por serem capazes de “revelar as verdades ocultas e mistérios escondidos na aparência do óbvio”.182 O bobo da corte da Idade Média recebia consideração de todos por ter uma visão além da vista dos homens comuns e por antecipar o destino de homens e reis, se m precisar ser sensato, comedido ou prudente. A estes se assemelham Rui e Romeu e, pela insignificância e limitações, Simone ou Milá. Milá, literalmente, fantasia-se de “bobo da corte” com as roupas de Isabel para satisfazer as frustrações do ministro pela perda da esposa para Pedro,

A filha com o chapelinho de véu traçado[...]sapatos de crocodilo, de salto a descolar-se[...]a torcer as luvas amarelecidas pelos anos, envolta em odor de feltro podre e de essências antigas, de orelhas inflamadas pelos brincos, penteado lançado para cima num grito de galo e um risco de rímel a descer-lhe da pálpebra, numa lágrima escura. [...] a filha vestida de dama de paus e mãe a exibir a dama de paus como um apresentador de circo (OMI, p.375)

Francisco tira proveito de seu “bobo”, mas envergonha-se em público “de forma que tem que me tirar daqui, imagina-se o escândalo, a filha [da Dores]vestida, que vergonha”(OMI, p.375) Milá é, na verdade, “um trapinho de timidez, um pudim de espanto, uma arrepio de medo”(OMI,p.316) é a imagem da ilusão e ingenuidade própria dos tolos. Como nos “parvos”, Lobo carrega seu relato da ambigüidade própria da ironia. O relato de Milá oferece imagem risível de Salazar e marca uma crueldade incompatível com a “mãozinha insegura de menina” incapaz de prender pessoas e mandá-las para África “para morrerem de mordedura de cobra venenosa”. “O professor Salazar tão prestável, tão delicado, tão atencioso” a ordenar “(— Mata-se, prende-se mata- se prende-se é melhor matar-se mata-se”) (OMI, p.306) (o parênteses é do autor).

Nas ações do tolo, o riso manifesta-se quando a possível ignorância torna evidente o conteúdo do pensamento do tolo. Todavia, os tolos de Antunes ultrapassam esse alogismo dos parvos apontado por Propp. São as condensações — as mesmas que provocam o chiste — da História na história, do passado no presente, no presente que projeta o futuro, que atribuem ao tolo de Antunes as mesmas funções do tolo medieval. É pela voz do tolo que mais consistentemente o plano da História – não só da História recente, mas de toda a História construção de Portugal - se correlaciona com o plano da história do enredo. Os tolos da Trilogia, em sua inocência cômica, evidenciam a exploração, a maldade e a malícia dos homens. Com isso, viram o alogismo pelo avesso: são lógicos e coerentes.

No documento O áspero humor de Lobo Antunes (páginas 164-171)

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