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Ironia nos títulos

No documento O áspero humor de Lobo Antunes (páginas 116-122)

2. O HUMOR EM LOBO ANTUNES

2.1. Faces do humor: comicidade e riso

2.1.1. Ironia nos títulos

A ironia não serve mais para se conhecer, nem para se descobrir aquilo que se esconde por trás das promessas, serve para sobrevoar o mundo e para desprezar as distinções concretas.

Vladimir Jankèlévitch136

Retomam-se neste capítulo, os “tipos de discurso cômico” que Denise Jardon estabelece em Du Comique dans les textes littéraires. Da tipologia elaborada por Denise fazem parte, lado a lado, ironia e sátira, humor e paródia, por estarem, de alguma maneira, relacionados ao riso. 137 Mesmo entendendo ironia como não

sendo, necessariamente, figura cômica, os mecanismos dialógicos estabelecidos nos títulos podem confrontar e afrontar normas institucionalizadas e instaurar grandes polêmicas. Desse modo, na construção do discurso de Lobo Antunes, a começar pelos títulos escolhidos para as obras, a ironia surge em diversos elementos discursivos, entre eles na intertextualidade e interdiscursividade. Aparentemente descabidos, em nenhum momento os título ou seus conteúdos são citados ou mencionados no enredo. A ironia torna-se responsável por manipular o aparente distanciamento entre enunciado/situação narrativa. O diálogo, é sabido, possibilita a inferência de diferentes sentidos de ver e pensar o romance, como no caso da Trilogia e de toda a obra de Antunes.

Os títulos dos romances modernos têm sido objeto de estudo de vários autores preocupados com o papel que representam no conjunto de significações final do romance. Também aqui é preciso perceber, pelo viés semântico, a

136 JANKÉLÉVITCH, Vladimir. L’ironic. Paris, Flammarion, 1964, p.19.

137 ARDON, Denise. Du Comique dans lês textes littéraires. Bruxelas/Paris, De Boeck-

importância dos títulos dos romances da Trilogia, O Manual dos Inquisidores, O

esplendor de Portugal e Exortação aos crocodilos, para entender o jogo

estabelecido pela ambigüidade do humor.

Em primeira instância, a ironia recai no fato de os títulos remeterem ao passado ou situação política vividos em Portugal. A história portuguesa, recente ou não, pode perfeitamente representar a história de qualquer país que tenha estado sob o domínio de uma ditadura ou que se considere colonizador ou império (como os EEUU, por exemplo). A segunda perspectiva recai no fato de a ironia, nesses títulos, deixar em aberto uma questão: que significados impregnam o sentido literal proposto? Finalmente, a questão principal: de que maneira a ironia aplicada aos títulos ativa uma série de interpretações que induzem a um humor crítico e perturbador?

No primeiro romance, O Manual dos Inquisidores, o dialogismo e a ambigüidade do título sensibilizam para dois momentos distintos da História portuguesa: o salazarismo e a Inquisição. O título usado por Lobo Antunes remete aos manuais medievos escritos em e para um período de perseguições e desmandos da Igreja Católica: Manual dos Inquisidores, de 1578, traduzido do

Directorium Inquisitorium por Francisco Peña. Visto por esse ângulo, o título recalca

os procedimentos inquisitoriais, como inquérito e tortura, projetando-os na realidade da ditadura salazarista, quando foram utilizados para quebrar a resistência de opositores ao sistema vigente.

Do título é possível inferir que “uma vez a violência introduzida na história, ela continua a exercer seus efeitos malignos por décadas ou séculos” afirma Tzvetan Todorov. 138 Isso resulta em percepção do presente, não como

contraponto, mas como espelho, metáfora ou alegoria do passado não como deslocamento, mas condensação de fatos, atrocidades, desmandos.

Por outro lado, o fato de um título remeter aos títulos dos manuais do Santo Ofício, sem ligação explícita ou citação do objeto no corpo da narrativa romanesca, aproxima-se da ironia niilista, conceito de Norman Knox desenvolvido

138 In “Ascensão do homem público”, tradução de Clara Allain, Jornal Folha de São Paulo,

para o período romântico.139 Nesse tipo de ironia, as disparidades são realçadas

entre a inevitabilidade de um resultado e a certeza de fatos que conduzem à inexorabilidade do destino das personagens de Portugal pós- Revolução dos Cravos. Se no niilismo se perde o ideal pelo desaparecimento de referências desejáveis, na ironia niilista o jogo dos contrários aponta para o paradoxo de um mundo sem nexo.

Na construção do título do romance, O Manual dos Inquisidores, o uso do artigo “o”, que não aparece nos manuais medievos, além de distanciar o título do autor da obra, particulariza e individualiza o vocábulo “manual”, tornando-o único e mais “importante”. A palavra “manual” sugere o “fazer por si mesmo” e aponta para a facilidade de se “executar com as mãos”. Nesse aspecto, a elaboração de um manual pressupõe apresentação clara na ordem devida para a obtenção de efeitos ou resultados desejados. Assim, utilizar o vocábulo ‘manual’ também incluiria o título na categoria da ironia crítica: o ‘manual’ de Antunes nada tem de fácil, metódico e claro. O sentido da palavra é tomado às avessas: trata-se de um manual de como não se deve fazer, de como não se deve agir no poder político, econômico, nas relações familiares, no comportamento moral e religioso. Além disso, a utilização do título encaixa-se no que Linda Hutcheon aponta como paródia: “imita com diferença crítica”.140 Quanto à palavra “inquisidores”, esta assume o sentido de perversidade, atrocidade, tão característica dos inquisidores medievais como Bernardo Gui ou Eymerich, com uma diferença fundamental: neste manual contemporâneo, todas as personagens são colocadas a arderem na fogueira, alimentadas pela consciência dos atos praticados durante o período ditatorial.

O título do segundo romance da Trilogia, O esplendor de Portugal, é um verso chave do Hino Nacional Português, que retoma o patriotismo do passado glorioso. Reviver significa acordar o “herói do mar, nobre povo/Nação valente e imortal” para levantar “hoje de novo/ o esplendor de Portugal”, esplendor difuso nas diversas formas de sofrimento que o colonialismo e a necessidade de liberdade imprimiram em terras africanas, espaço primeiro do romance.

139 In DURHAN, N.C. The word Irony and Its context, 1500 - 1755, 1961. Apud MUECKE,

D. C. Ironia e irônico. São Paulo, Perspectiva, 1995, p. 34- 49.

Durante a leitura da obra, a aura de brilho do “esplendor”, no título, sedimenta a ironia. Brilho, esplendor podem ser sinônimos de resultado da “grandeza” imposta pela ditadura domínio, de províncias ultramarinas, com a devastação das terras e dos seres degradados que vivem sobre ela?

Ao contrário de romances anteriores, como Os cus dos Judas, Fado

Alexandrino ou As Naus, que trazem a África como local de recordação, em O esplendor, o lugar primeiro é África, cuja situação de colonizada é anterior ao tempo

do romance. O confronto do título com uma passagem da obra mostra o posicionamento da família da personagem Isilda, a matriarca que permanece em África após a libertação de Angola, na tentativa de salvar as plantações da fazenda. Na passagem que se segue, reconhece-se o objetivo do título. Sob o efeito parodístico do título está a arrogância e o autoritarismo de Portugal em afirmar que a dignidade reside no fato de mandar:

O meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em áfrica não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que nos dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de fato ainda que o tivéssemos por não sermos mais que tolerados, aceites com desprezo em Portugal.

[...] de certo modo éramos os pretos dos outros [...] aquilo que tínhamos vindo procurar em África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar (OEP, p.255).

A reflexão sobre o sentimento de superioridade dos portugueses em relação aos africanos aparece ampliada do detalhe cômico no comentário de Alice, em O Manual:

o jacaré trancou os lábios com o meu marido dentro mergulhou no lodo para proceder à digestão e até hoje, abandonado cinco dúzias de mestiços aos horrores da orfandade, eu, viúva, entreguei os terecos aos escarumbas que os fitaram, a catar as virilhas, numa indiferença de desprezo por não serem Império[...] (OMI, p.193)

No terceiro título, Exortação aos crocodilos, o leimitov que se impõe no enredo, “nunca houve rosas”, demonstra a supremacia da imposição dos homens, figurativizados em “crocodilos”sobre as mulheres que, embora dominem a voz narrativa, são secundarizadas na obra. Maria Alzira Seixo afirma encontrar a intertextualidade deste título em Exortação da Guerra, tragicomédia de Gil Vicente, e em o Sermão de Santo António aos Peixes, de Padre António Vieira, no qual “antecipa, pelo significado do verbo exortar, a interpelação do tipo imperativo”·

recalcada no substantivo, indicando um campo semântico que abre um leque de significados para as palavras “exortar” e “crocodilos”; contudo, não exemplifica qual seria esse leque.

Por sua vez, Lobo Antunes afirma que encontrou o título de Exortação quando lia uma tradução feita por Octávio Paz da obra de Chuang-Tse. Para o pensamento simbólico do Oriente, o rugoso crocodilo representa o ego blindado do Ocidente, sinistro, hostil e sempre em guarda.141 Para o usuário de língua portuguesa, “crocodilo” quase sempre remete à expressão popular “derramar lágrimas de crocodilo”. Neste contexto, a palavra carrega a carga de fingimento e traição, principalmente nas relações pessoais. A analogia dá-se pelo fato de as lágrimas serem resultado da compressão da glândula lacrimal quando o réptil engole uma presa grande.142 Assim, a carga ‘fingimento’ é acrescida aos significados hostil, cruel, implacável da palavra crocodilo. São homens que matam ou destroem sonhos, principalmente os femininos, sem remorso. A lágrima vertida ocorre pela força empreendida no esmagamento do outro e não por algum tipo de comoção.

Assim, ao primeiro contato com os títulos, emerge a carga irônica da Trilogia. Muito além do enredamento que a história poderá produzir, o título alerta que romance a ser lido deve ser entendido como arma de denúncia e conscientização, tal qual afirma professor Massaud Moisés em relação a vários outros autores portugueses. 143 Os contraditos sarcásticos dos títulos retirados de

antigos manuais, de expressões simbólico-alusivas do adagiário popular ou de excertos de sentenças literárias e eruditas, mesmo do Oriente, firmam a visão crítica

141 PAGLIA,Camille. Personas Sexuais in <http,//www.fezocaonline.com/mistygray/html>. 142 RODRIGUES, Greice. Rio de Lágrimas. São Paulo, Editora Três, Isto é, n° 1865, 13 de

jul. 2005,p.40-41.

de Antunes. O resultado do efeito irônico-cômico é um humor sério, reflexivo, de denúncia sobre poder, instituições e povo. Massaud Moisés afirma que “denunciar (em literatura) é buscar uma imagem ou o ângulo que reforce o olhar menos atento”.144 No caso, os títulos da Trilogia assumem a função “zoom” das câmeras

fotográficas: aumentam, detalham,aproximam.

Os títulos, O Manual dos Inquisidores, O esplendor de Portugal e

Exortação aos Crocodilos, como os de quase todo conjunto da obra do autor,

paradoxalmente condensam fatos e situações históricas sob o aspecto ingênuo do

nonsense ou da similitude com animais. Qualquer caminho para análise dos títulos

conduz ao jogo de ambigüidades, do “dito” no “não dito”, próprio da ironia. O resultado ultrapassa os níveis diegéticos para recair na carnavalização, nas inversões, antagonismos contidos nos “jogos textuais” da Trilogia que traduzem o “humor sério” de Antunes.

No documento O áspero humor de Lobo Antunes (páginas 116-122)

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