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2. IMPERIALISMO E FRAGMENTAÇÃO DO ESPAÇO: A ORIGEM E FORMAÇÃO

2.4 Nas Américas um sopro de liberdade

O ponto vulnerável do poderio europeu estava nas oposições entre o velho e o novo, mais precisamente nos movimentos autônomos das colônias, nas províncias mais remotas ou sob controle menos firme, em que as comunidades de colonizadores brancos de além-mar ressentiam-se das políticas de seus governantes centrais, que subordinavam os interesses das colônias estritamente aos interesses metropolitanos. Em todas as partes das Américas, estes movimentos de colonizadores passaram a exigir autonomia, nem sempre para a instauração de regimes que representassem forças economicamente mais progressistas do que a metrópole. Várias colônias britânicas obtiveram-na pacificamente por algum tempo (caso da Irlanda), ou então o fizeram por meios revolucionários, como os EUA (HOBSBAWM, 1977) – uma “série de lutas independencistas como o estágio mais avançado da expansão dos brancos nas colônias” (FERRO, 1996, p.244).

Para Ferro (1996) e Karnal et al. (2008), a vitória dos ingleses na Guerra dos Sete Anos (terminada em 1763), criou os mecanismos que levaram à independência norte- americana. Até então, e antes que o Tratado de Paris eliminasse a potência francesa na América do Norte, os colonos ingleses permaneciam protegidos por Sua Majestade britânica, e podiam apelar para a sua frota e o seu exército. Eram súditos britânicos, mas sua “identidade americana iria se afirmar cada vez mais à medida que faziam suas queixas com veemência tanto maior quanto aumentavam sua força econômica e desenvolviam sua capacidade de se valerem do direito para se defender” (FERRO, 1996, p. 247). Os ianques queriam ter liberdade de movimento no comércio e na política e essa motivação cresceu quando sua visão enquanto súditos e parceiros dos britânicos começara a mudar à medida que percebiam que os interesses da metrópole eram maiores que os seus (KARNAL et al., 2008) e os ingleses os

consideravam “inferiores” (BREEN, 2008). Ferguson (2010, p.106) acrescenta que “a guerra está no cerne da concepção dos americanos sobre si mesmos: a idéia de uma luta pela liberdade contra um império malévolo é o mito da criação do país”.

Além das razões já conhecidas que levaram ao processo de independência dos Estados Unidos, Ferro (1996) destaca a indignação dos colonos depois que o Parlamento Britânico, sem consultá-los, teria proibido o seu estabelecimento nas terras conquistadas pelos franceses, prejudicando o negócio dos especuladores de terras e dos ricos fazendeiros, levando-os à luta pela separação. O paradoxo da Revolução Americana para Ferguson (2010), está no fato de que a revolta contra o domínio britânico veio dos que estavam em melhor situação dentre os súditos coloniais britânicos. Segundo o autor (2010, p.111), ao revogar a Lei do Selo em 1776, por exemplo, o Parlamento havia declarado enfaticamente que “teve, tem e por direito deve ter, poder e autoridade totais para fazer leis e estatutos com força e validade suficientes para obrigar as colônias e o povo da América”.

Mas a declaração de independência das 13 colônias em 4 de julho de 1776 era apenas o começo; foi preciso tempo até que aquelas unidades se convertessem de fato nos “Estados Unidos” (GREENE, 2008), diferenciando-se das áreas periféricas do que restou das leais colônias britânicas e que mais tarde se chamaria de Canadá.26 O que explica a falta de reação britânica é o fato de que sendo uma guerra civil transatlântica, uma campanha maciça inglesa na América seria muito arriscada, ainda mais pela disputa global de longa duração com a França que não havia totalmente cessado. Além disso, “[...] perder os Estados Unidos foi perder uma grande fatia do futuro econômico do mundo. Mas, na época, os custos no curto prazo para reimpor a autoridade britânica nas treze colônias pareciam ser consideravelmente maiores do que os benefícios” (FERGUSON, 2010, p.118).

A crise política na Espanha advinda da ocupação de seu território (1808) por parte da França durante as chamadas Guerras Napoleônicas constitui um dos fatos que incentivaram o aparecimento dos movimentos de independência na América Espanhola. As diferenças entre a Espanha e as colônias tornaram-se mais agudas após essa crise política, cuja luta armada entre os anos de 1810-1820 desencadeou não só a formação de novas nações, como liquidou o império espanhol, reduzindo-o a apenas Cuba, Santo Domingo (República Dominicana) e

26 Segundo Ferguson (2010, p.120) a perda da América teve o efeito imprevisto de assegurar o Canadá para o

Império, graças ao fluxo de legalistas ingleses que, junto com novos colonos ingleses, acabariam reduzindo os franceses do Quebec a uma minoria sitiada. Breen (2008, p.169) destaca que “a comunidade britânica na América do Norte Britânica não estava preocupada com a independência em relação à Grã-Bretanha, mas buscava ser uma colônia britânica maior, mais capaz de resistir às pressões anexionistas de uma República Americana dominada pelo norte e de supervisionar a expansão da autoridade britânica sobre os vastos territórios ainda não-colonizados (pelo menos por europeus) a oeste dos Grandes Lagos, que ainda estavam nominalmente sob o controle da Companhia da Baía de Hudson”.

Porto Rico. Portugal não pode escapar do cerco continental imposto por Napoleão e apesar da transferência de seu Reino para a América Portuguesa, é a partir dele que a coroa portuguesa acaba fortalecendo não apenas a colônia do Brasil, como também promove os meios para que seu império nas Américas seja liquidado ao legar uma sucessão dinástica que culminou com uma independência sui generis em 1822.27

Não foi apenas o exemplo norte-americano e as literaturas iluministas que apoiaram e serviram de moral para combater o despotismo metropolitano, mas também a percepção da capacidade das próprias colônias de se defender durante a ausência do império espanhol. De fato, após as fracassadas tentativas dos britânicos de conquistar importantes territórios nas Américas em meados do século XVIII, a coroa espanhola reordenou a orientação comercial de seus portos (então voltados para o Pacífico) para a direção ao Atlântico, como forma de se adequar à competição internacional e à defesa geopolítica de suas colônias. As tentativas frustradas dos ingleses de invadir a bacia do Prata (1806-1807), criaram uma consciência de que as colônias podiam resistir sem o apelo à coroa, alimentando o sonho das elites e dos militares locais de buscar a independência.

Para a América hispânica, a revolta dos escravos e a independência do Haiti (1804) também havia servido de exemplo: ela não se podia se repetir. Foi uma advertência para que os crioulos insurrectos pensassem muito mais em direcionar seu discurso em prol da liberdade e das vantagens da independência nacional. A importância da dominação racial “branca” estava diluída e embora os movimentos de independência fossem mais fortes na Argentina e Venezuela, no Peru e Bolívia, por exemplo, havia enormes contingentes de populações indígenas que precisavam ser mobilizadas ao lado dos escravos negros na luta contra os espanhóis. Além disso, de acordo com Ferro (1996), o movimento de independência na América Latina no começo do século XIX seguiu em parte com as motivações ocorridas na América do Norte, mas se lá o motivo era aparentemente o da liberdade econômica, no lado ibérico era puramente fiscal, pois o aumento de impostos era resultado das economias metropolitana e colonial, que em muito se pareciam.

Anderson (2005) destaca que a configuração geográfica, política e econômica das novas repúblicas sulamericanas coincidiu com as unidades administrativas criadas pela coroa

27 Segundo Anderson (2005, p.82-83), em lado nenhum foram feitas sérias tentativas de reinstituição do império

dinástico nas Américas, exceto no Brasil; mesmo aí, provavelmente não teria sido possível se o próprio monarca português não tivesse para lá emigrado em 1808, fugindo de Napoleão. Jancsó (2002) argumenta que a sobrevida do projeto imperial português no Brasil fortaleceu o centralismo monárquico-legitimista e suas ações políticas no território periférico da colônia. De fato, ao preservar a lealdade das elites regionais e ao manter uma economia de base escravista nessas regiões, houve a impossibilidade de mobilização dos poderes locais baseados nas massas (o que evitou a fragmentação territorial e a criação de caudilhos locais), em que o conservadorismo político das elites encontrou no projeto imperial a instrumento de sua efetividade.

espanhola entre os séculos XVI ao XVIII. A diversificação geográfica do Império Americano, as dificuldades de comunicação numa era pré-industrial e as políticas comerciais de Madri criaram zonas econômicas separadas, fato que empreendeu a justificação do uti possidetis, pelo qual cada nação preservou o status quo teritorial de 1810 – ano inicial dos movimentos de libertação. Em certa medida, a independência dos países da América Latina abriu caminho para uma nova ordem, que colocou essas novas nações sob o controle econômico das novas potências do século XIX: Estados Unidos e Grã-Bretanha.

Os Estados Unidos gozavam de duas enormes vantagens: ausência de quaisquer vizinhos poderosos ou potências rivais que pudessem (ou que de fato quisessem) evitar sua expansão através do imenso continente até a costa do Pacífico e uma taxa extraordinariamente rápida de expansão econômica. Entre 1814 e 1898, a nação ianque permanecera longe da política internacional européia, vivendo os princípios da Doutrina Monroe e de aquisição de territórios a Oeste, seja por meio de compra, seja por meio de guerras, como as travadas contra o México. E de fato, a maioria dos norte-americanos “acreditava que seu país era a maior nação do planeta e que aquelas terras viviam em constante e ‘natural’ perigo diante das ameaças externas” (KARNAL et. al., 2008, p.165). Essa expansão começou a se acirrar pouco antes da Guerra de Secessão (1861-1865), quando as pressões por novas terras (tanto para os escravocratas quanto para os assentados livres) acirraram a disputa entre o Norte e o Sul do país, com a adesão de novos estados à União.

Até o final do século XIX, as Américas constituíram uma coleção única de repúblicas soberanas, com exceção do Canadá, das ilhas do Caribe e de partes do litoral caribenho (além do dinástico Império do Brasil e da breve experiência monárquica do México). A hegemonia dos Estados Unidos ainda era local e suas únicas anexações políticas diretas se restringiam à Cuba (1868) – cuja independência era nominal –, Porto Rico (1898) e a uma estreita faixa ao longo do canal do Panamá – país este que ajudariam a destacar do território da Colômbia em 1905.28 À exceção da Grã-Bretanha, nenhum Estado europeu possuía mais do que restos dispersos dos impérios coloniais (principalmente caribenhos) do século XVIII e nem os britânicos, nem qualquer das outras nacionalidades viam boa razão para hostilizar os EUA (HOBSBAWM, 1988). A dominação econômica e a pressão política foram aplicadas sem conquista formal, constituindo-se na única região importante do globo onde não houve rivalidade entre as grandes potências.29

28 Na Ásia, os espanhóis haviam cedido às Filipinas aos Estados Unidos em 1898.

29 À diferença das outras colônias de povoamento branco estava a Austrália, que em 1787 era ainda um