• Nenhum resultado encontrado

3.4 Pós-parto

3.4.1 A “dieta”

3.4.1.7 Amamentação

As mulheres Kaingang amamentam seus filhos por bastante tempo.

Conforme registrei, o tempo mínimo de amamentação foi de seis meses, mas o mais comum são dois, três, quatro e até sete anos. As mulheres evitam ter filhos em um período curto de tempo para poderem amamentar bem cada um de seus filhos, pois na maioria das vezes, só interrompem a amamentação quando nasce um novo filho. Foram relatados casos em que a mãe amamenta mais de um filho ao mesmo tempo, o mais velho e o recém-nascido. Outras num ter mais logo criança né (fi – mulher casada).

Eu: E depois que tira do peito, que comida que você dá?

Fi – mulher casada: Toda cumida né, feijão, arroz macarrão, depois de seis meses eu dô comida pra eles também...

Eu: Carne também?

Fi: Carne, verdura.

165 Segundo D’Angelis (2006:7): “Mabilde não terá permanecido tempo suficiente para tirar tal conclusão que, aliás, é equivocada. Ou suspendem a menstruação temporariamente, ou suspendem definitivamente, o que significa que, em nenhum dos dois casos, isso tem relação com um outro parto.”

Eu: Carne só depois que tem os dente?

Fi: Ahan, e às vez num nasce logo os dentinho né, daí faz sopa né, sopa de macarrão né, daí eles gostam.

Kofá – mulher casada: O meu [filho] mamou até 6 anos (risos). (...) Ele começou comer comidinha assim com 6 meses, não com uns 4 que minha mãe, é, primeiro neto né, depois daquela que morreu, daí minha mãe sempre passava comidinha assim na boca dele, caldinho de feijão, caldinho de arroz, minha mãe sempre ponhava na boca dele. Ela dizia: “ele vai ficar olhando nóis comer, mexer com a boca, ele vai ficar com vontade(...).

Os bebês passam de colo em colo, de mulheres de todas as idades, parentes ou não. Quando as crianças começam a chorar é comum vermos as mães darem o peito para acalmar os filhos. Se uma mãe deixar seu neném chorando ele pode “ficar assustado” ou “pegar ar no umbigo”. Para evitar isto, as mães “dão o peito” para seus filhos. “Se deixa nenê chorar de noite, dá dor de garganta, cabeça, cresce umbigo se chorar bastante. A mãe tem que dar o peito” (Kofafi – mulher casada). Assim, proporcionar afeto e saúde integram a agência feminina de produção de pessoas.

Foram relatados alguns procedimentos adotados para aumentar a lactação materna. “Pra dar leite come sopa de palmito, mas aqui tá difícil achar palmito” (Kofafi – mulher casada). “Quando não desce leite, queima açúcar e põe no peito” (Kofafi e fi). Uma fi contou que amamentou por um ano e meio porque tinha pouco leite, então sua mãe fez “remédio do mato” pra aumentar o leite dela. “Fez casca de amora do mato, ferveu e deixou secar, passou nos peitos, daí juntou o leite. Lava mais o peito depois que esfria com a amora”.

Fi – mulher casada: Mama até uns 6 mês. Não eles mama assim.

Eu: E a sua mernozinha tá com quantos mês?

Fi: 9 meses

Eu: E ta mamando ainda?

Fi: Tá mamando.

Eu: E daí tem alguma coisa que faz pra nenê assim?

Fi: Eles faz garapa, chá né.

Kofafi – mulher separada: Eu tomei remédio pra juntar leite também.

Daí ela fazia canjica na época, ela socava, num tinha comprado.

Tinha, mas a gente num tinha com que comprar né. Ela socava e fazia eu beber aquele cardo, pra juntar leite. Passar pente assim pra baixo, 9 vezes pra juntar leite. Daí juntava né, porque a gente acreditava né, a gente a creditava nessas coisas.

Fi – mulher casada: Aí a sogra dela achou o remédio do mato lá pra ela, fizeram chá, hum menina, ela tomou de manhã, quando era de

tarde, nossa!!! Ajuntou, ajuntou leite mesmo na menina. Nossa, foi bom demais sabe.

Eu: A [cunhada] falou da canjica.

Fi: A é, diz que canjica é bom mesmo. Agora quando eles desmamam a criança, eles dizem, num sei se é verdade, quando você desmama e o peito começa a encher, pra ele num empedrar e num dar nenhum abcesso, porque ele dá né, se ele encher demais e você num tirar o leite, ele vira um abcesso, um tumor, a coisa mais horrível. Daí diz que você tem que espremer, espirrar o leite no chão que ele seca. Eu num cheguei a fazer isso não.

A adoção de netos ou demais crianças cujos pais se separaram ou filhos de mães solteiras é muito comum entre os Kaingang. Não existe uma passando a produzir leite e assim, a poder amamentar filhos que não pariram. O ato de nutrir parece ser o que cria laços semelhante à consangüinidade. Se uma mulher amamenta o seu próprio filho e o filho de outra, essas duas crianças se tornam irmãos de leite e isso é sempre frisado por eles (Veiga, 2000:101).

Às vezes, até após o término da dieta, não é recomendado à mãe comer laranja, tomar suco ou café e evitar alimentos pesados e gorduroso (como os derivados do porco), pois podem provocar “dor de barriga” no neném ou “secar o leite” da mulher. “Se o teu marido chegar bêbado ele num pode dormir com você por causa do cheiro forte da bebida que pode secar o leite. Tem isso também”(fi – mulher casada). “A mulher de dieta que passa raiva pode recair e afeta o nenê porque o leite seca.” (fi – mulher casada).

É comum a associação do leite e do sêmem ao sangue entre os povos indígenas. Segundo pesquisa sobre os Tupinambés, o leite materno “é o sangue transformado”. “É por essa razão que a a lactante não menstrua, pois o sangue que iria descer em forma de regra, torna-se leite” (Romeu, s/d:7). Como podemos notar, entre os Kaingang, no que se refere à construção de pessoas e corpos dos parentes, as relações de consangüinidade, consubstancialidade, coresidência e comensalidade são diretamente interligadas (Jaenisch, 2010:159).

***

Percebe-se assim que a dieta é um período repleto de cuidados e resguardos que abrange a menstruação, gravidez, mas se acentua de forma nítida no pós-parto. Assim, podemos pensar o sistema de parto como um período de liminaridade. Podemos dizer: “um rito de passagem privado”, não ligado à esfera pública e cerimonial, mas ao mundo privado, da periferia, do cotidiano, associado às mulheres. Esta existência doméstica da vida ritual kaingang é apontada por Veiga como uma das característica dos Jês Meridionais (2000:285). Ainda conforme Veiga (2000), devido ao dualismo Kaingang, são os opostos166 que acompanham as pessoas nos períodos de liminaridade. A mãe e marido são os opostos mais próximos da mulher na

“dieta”, que a acompanham e participam deste ritual de liminaridade do mundo doméstico.

A inversão que caracteriza os ritos de passagem também está presente durante o sistema de parto. Aqui, o ethos kaingang jug jug (bravos), barulhentos, guiados por uma ética e uma estética de hierarquia e oposição se inverte dando lugar à primazia da harmonia, da complementaridade, do sigilo e da tranqüilidade. Neste período de quietude, a família nuclear, que funciona como uma “comunidade de substância”, se afasta do convívio social mais amplo, dos serviços pesados, dos alimentos fortes e das forças da natureza mais intensas para a transformação da mulher e do homem em mãe e pai e do feto em uma pessoa social. A construção da pessoa do bebê é paulatina e se inicia no ventre de sua mãe, mas estende-se no pós-parto e pela vida afora.

Pai e mãe são os primeiros envolvidos na construção do novo ser, mas a construção é progressiva e vai se estendendo para a família extensa, para os parentes afins (como veremos por exemplo com a contração dos laços de apadrinhamento), a parentagem, a comunidade como um todo e com o mundo

166 No cotidiano, a ideologia Kaingang enfatiza as relações entre os opostos, ou “contrários”, como ideal e harmoniosa, enquanto que as relações entre os membros da mesma metade é considerada conflituosa. Em Todas as circunstâncias da vida há insistência na troca entre os que são diferentes (Veiga, 2000:83).

externo à aldeia, já que desta busca pela afinidade potencial constitui e depende a continuidade do ethos kaingang (Fernandes, 2003).

Vimos um pouco sobre os cuidados que a família nuclear (auxiliada pela família extensa) adota durante a dieta para a saúde do bebê, da mãe e do pai também - por que não? Afinal, do bem-estar de sua mulher e filho depende a saúde de um homem, pois, é importante lembrar, que esta força, este equilíbrio, não diz respeito apenas à saúde física, mas emocional, social e espiritual, conforme Rocha (2005). A partir de agora veremos algumas outras práticas realizadas durante a dieta do pós-parto mais diretamente aplicadas ao recém-nascido e que contribuem para a construção da pessoa que inicia seu ciclo de vida.