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3 Um programa de alfabetização para o primeiro ano do ensino fundamental da EAFEUSP

3.1 O brincar é matéria do ensino fundamental, sim!

3.3.1 Ambiente alfabetizador

Com a passagem do atendimento no ensino fundamental às crianças que antes eram atendidas na educação infantil, mudanças estruturais passam a ser imprescindíveis para receber esse novo público. O ambiente da educação infantil, segundo seu referencial curricular, foi projetado como um espaço acolhedor e de interações. O ensino fundamental nem sempre olhou o espaço pela perspectiva do acolhimento, da interação e da aprendizagem. E nesse ponto, acreditamos que o diálogo com a educação infantil e seus espaços foram enriquecedores.

O espaço, para nós, não é neutro. Ele transmite mensagens, promove ações, revela o grau de importância daquilo que é exposto em suas paredes, expõe marcas e singularidades do grupo que compartilha daquele lugar. Pode, quando bem organizado e direcionado, contribuir para a dinâmica da sala de aula promovendo a autonomia, a interação, o trabalho com diferentes linguagens e a aprendizagem da leitura e da escrita.

Na Escola de Aplicação, desde a inauguração do primeiro ano, o espaço das salas de aulas foi destinado apenas a esse público. Por não ser dividido com outra série em outro turno, a sala pode ser configurada com mobiliário mais pertinente ao público infantil, por exemplo, carteiras de tamanho específico às crianças. A sala conta com um grande acervo de jogos e brinquedos que foram adquiridos pela compra em projetos anteriores ou doados pelas famílias. As salas são amplas e foi possível dividi-las em “cantos” que se configuraram como espaços30 de diferentes linguagens, como pode ser observado nas seguintes imagens:

                                                                                                                         

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Na rotina das crianças, esses cantos são explorados diariamente e tal proposta recebeu o nome de “Espaços”, detalhada mais adiante.

Figura 5 – Espaço de construção

 

Figura 4 – Espaço de leitura

Figura 7 – Espaço das artes

• Espaço da leitura: é constituído por uma pequena biblioteca de classe, com tapetes macios e almofadas. Livros, gibis e fantoches são disponibilizados às crianças para a leitura em momentos dirigidos pelo professor, ou mais livres. Tal canto é muito utilizado em situações nas quais as crianças precisam de descanso ou de um lugar mais aconchegante.

• Espaço da construção: onde são disponibilizados às crianças materiais como jogos de encaixe em madeira, Lego e outros que se enquadram no eixo da construção. O montar e remontar possibilitado por esses brinquedos pressupõe uma articulação entre o idealizado inicialmente pela criança e a execução para chegar a esse resultado. Grande parte das atividades resulta em uma engenharia criativa e com os pés no fantástico.

• Espaço simbólico: são disponibilizados fantasias, carrinhos, itens de casinha, bonecas, bonecos ou outros materiais que possibilitem as criações e jogos de faz de conta. Acompanhamos muitas narrativas e encenações proporcionadas por esses materiais.

• Espaço dos jogos: são disponibilizados às crianças jogos de tabuleiro, da memória, alfabetizadores, de letras, percurso, quebra-cabeças, de regra, entre outros. Constituem um ambiente mais ligado à cognição, à estratégia e de uma elaboração mais refinada de acordo com os propósitos de cada jogo.

• Espaço das artes: materiais como sulfite, papéis coloridos, canetinhas, lápis de cor, massa de modelar, pequenos objetos, sucatas, tesouras, entre outros pertencentes ao universo artístico são disponibilizados para as criações infantis. Para além dos cantos, a multiplicidade de arranjos do espaço tem sua importância para a implicação da criança na atividade. A forma de disposição das carteiras, feita e refeita pelo professor, pode favorecer ou não determinado tipo de interação. O arranjo das mesas em círculo foi o mais usual para as intenções de nosso currículo e acompanha a concepção de espaço preconizada pelo educador Paulo Freire, onde todos se olham, facilitando e priorizando o exercício dialógico.

Sabemos que apesar do saber sobre o espaço ou das considerações freireanas, a maior parte das salas de aula brasileiras do ensino fundamental possui móveis e estrutura pouco dinâmica, com possibilidades engessadas e a constância de carteiras enfileiradas. Nesse modelo, ao nosso ver, perpetuam personagens caricatos como “o primeiro aluno da turma” e a

“turma do fundão”. Incomoda-nos uma dinâmica escolar em que os “primeiros da fila” fundam uma espécie de camarote privilegiado do ensino.

Os murais da turma também fazem parte do ambiente alfabetizador e são espaços importantes para a exposição dos trabalhos das crianças. Ao dar visibilidade às produções, proporcionamos um espaço ressignificado pelas marcas infantis, bem como potencializamos os trabalhos individuais a fim de serem amostras de outras possibilidades de elaboração de uma mesma atividade. Essa prática dimensiona o outro como uma forma de ampliar a significação do mundo particular da criança.

Transpor uma história contada para o mural, ter letras de músicas fixadas ou outros elementos que remetam metonimicamente o trabalho que vem sendo realizado, seja por meio dos desenhos infantis ou de formas mais artísticas selecionadas pelos professores, também é uma forma interessante de articular o mural na composição desse ambiente de letramento. O Figura 8 – Sala organizada em pequenos grupos

mural no corredor da sala de aula “O que eu quero aprender?” pedia para as crianças, na volta das férias, dizerem o que gostariam de aprender naquele semestre. A exposição de forma lúdica dos ajudantes do dia e de uma lista de bichinhos da horta é uma atividade de ciências que ganha interdisciplinaridade em alfabetização.

Para o trabalho pedagógico, a reflexão sobre tais arranjos e possibilidades com o espaço e tempo são fundamentais. Salientamos ainda que é preciso haver uma ponderação e uma exploração mais abstrata desse par “espaço-tempo” quando trabalhamos com as especificidades do ser infantil. Em nossa teoria, é inevitável pensar nessa relação de forma mais fantástica.

O espaço real da escola precisa existir e ser cuidado, mas a destreza da equipe pedagógica deve ser capaz de aproveitar e potencializar a capacidade infantil de romper com o real concreto e se abrir em “espaços imaginários”, na invenção de lugares utópicos e mágicos. Nas narrativas contadas, transportamo-nos para lugares que rompem as paredes de concreto ou as cadeiras ordenadas. Esses objetos reais e funcionais a uma sala de aula podem se tornar naves espaciais em um fantástico passeio pela galáxia em minutos. É preciso ter escuta dessa singularidade infantil e permitir que ela entrecorte as bases curriculares para as séries iniciais. Desperdiçar esse potencial com doses de realidade, textos científicos, reais, concretos do espaço do hoje não nos parece produtivo.

Criar ambientes e estratégias nos quais esses “espaços imaginativos” possam ser potencializados e aproveitados pelo programa do primeiro ano do ensino fundamental é essencial em nossa proposta. As narrativas são poderosas ferramentas para tal intencionalidade, para além delas pode-se ousar em arranjos espaciais, em uso de objetos, no uso de espaços variados e que podem fomentar e enriquecer essa capacidade.

Romper o espaço real é característico e singular da infância. A capacidade de “reinventar” o tempo também acompanha a mesma condição. Para a criança, o tempo se desdobra em duas possibilidades, aquele bastante relembrado e cobrado pelo mundo adulto e pelas “sirenes”31 escolares, o do relógio, o lógico que não anda e não passa e o tempo evocado pela narrativa, o tempo da ficção e que se desdobra em magia, em lógicas singulares do mundo infantil, no qual os dinossauros persistem, os animais falam, entre outras tantas potencialidades.

Tal perspectiva pode ser observada na relação estabelecida pelas crianças com objetos que chamamos de “largo alcance”. Caixas de papelão simples, sem nenhum tratamento estético, se tornam frondosos castelos para o ser infantil que é capaz de passar horas e criar narrativas coerentes nessa exploração corporal. É importante que aqueles que pensam programas curriculares para as crianças tenham clareza da habilidade, ou melhor, da condição infantil de estar presente em suas aprendizagens pelo uso integrado que faz do corpo, do pensamento, da imaginação aliando objetos a essas situações, rompendo seu valor mais pragmático e elevando aquele item ao valor imaginativo pertinente ao momento.

Outra forma de ilustrar a habilidade infantil de reinvenção é o uso de objetos destituídos de sua função real para contar histórias. Uma tampa de caneta pode se tornar o tapete mágico do Aladim; a sala de aula, paisagens da Índia, sendo possível até mesmo sentir o aroma das especiarias, quando essa capacidade de lidar com o fantástico é bem-conduzida. Ter a capacidade de levar as crianças para esse mundo é, para nós, uma estratégia de encantamento imprescindível para criar laços entre a criança e a equipe pedagógica que facilitarão o posicionamento subjetivo das crianças frente ao trabalho proposto.

Considerar a fantasia presente no mundo infantil é ainda respeitar a condição atual da criança, sem querer antecipar processos importantes de um outro momento da constituição do sujeito. Para nós, é importante que nos anos iniciais a criança possa lidar intensamente com elementos mágicos e fantásticos, distantes da lógica do mundo adulto, funcional. Assim poderá criar condições subjetivas e estofo psíquico e imaginativo para enfrentar as doses de realidade que lhe serão impostas ao longo da sua vida e que não deixarão de requerer criatividade e autenticidade.

É certo que esse ser infantil que descrevemos, com destreza com o mundo mágico e fantástico, com bom repertório para subsidiar suas criações, nem sempre é condição geral do                                                                                                                          

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Na EAFEUSP em 2014 conseguimos trocar a alta sirene por música. Desse modo, semanalmente temos algum ritmo nos lembrando dos tempos a serem cumpridos na lógica escolar. Certamente é mais prazeroso, pedagógico e lúdico encontrar as crianças cantarolando esse marcador do que se assustando com o estrondo provocado pelo sinal de outrora.

público ingressante no ensino fundamental. Deparamo-nos com crianças com habilidades linguageiras e corporais preocupantes. Nesse sentido, é papel da escola proceder uma investigação da condição da criança, bem como uma intervenção junto a ele e a sua família a fim de refletir sobre os processos que vêm sido vividos (ou não) pela criança. Contextualizar a infância bem como refletir em parceria com as famílias sobre as especificidades do público infantil nas séries iniciais do ensino fundamental também são responsabilidades da escola.

Certamente tais condições nos remeterão a um item persistente em nossas observações pedagógicas: a condição heterogênea de experiência adquirida pelas crianças que compõem uma turma pode causar desigualdade de condições para a entrada na leitura e escrita. Quando a heterogeneidade se encaminha para esse campo, acreditamos que é matéria da equipe pedagógica enfrentar e manejar tal situação, a fim de reverter processos e abrir possibilidades de aprendizagem a todo o público ingressante na escola, com estratégias diferenciadas para tal fim.

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