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Alfabetização no ensino fundamental: novas bases curriculares

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Academic year: 2017

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NATALIA BORTOLACI

ALFABETIZAÇÃO NO ENSINO FUNDAMENTAL: novas bases curriculares

SÃO PAULO

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ALFABETIZAÇÃO NO ENSINO FUNDAMENTAL: novas bases curriculares

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação, área de Linguagem e Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em educação, sob orientação do Prof. Dr. Claudemir Belintane.

SÃO PAULO

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novas bases curriculares

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação, área de Linguagem e Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em educação, sob orientação do Prof. Dr. Claudemir Belintane.

   

Aprovada  em:  ______/_______/_______.    

         

Prof.  Dr.  ______________________________     Instituição:  ________________________________    

Julgamento:  __________________________     Assinatura:  ________________________________    

   

Prof.  Dr.  ______________________________     Instituição:  ________________________________    

Julgamento:  __________________________     Assinatura:  ________________________________    

   

Prof.  Dr.  ______________________________     Instituição:  ________________________________    

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À figura do professor doutor Claudemir Belintane, meu orientador, pela energia, pelo brilhantismo e pelo compromisso com que idealizou e conduziu o projeto Desafios do Ensino de Leitura e Escrita no Ensino Fundamental de Nove Anos, que subsidiou a escrita desse trabalho. Agradeço ainda por ter me acompanhado e guiado com o carinho e rigor necessário.

À professora Claudia Vóvio e ao professor Emerson de Pietri pela generosidade e delicadeza com que leram meu trabalho e sobretudo pelos caminhos encorajantes propostos na qualificação e que foram fundamentais para a conclusão desta dissertação. À Capes, por financiar o nosso trabalho, e à toda equipe do projeto Desafios. Aos pós-graduandos que recebem minha gratidão por tornar esse trabalho possível e também por terem sido companheiros de momentos indescritíveis! À Isadora Rebello, por sua múltipla atuação, de amiga confidente, parceria do “fronte” com as crianças e ainda disponível e atenta para motivar e contribuir para essa escrita desde antes de ela existir. Ao Paulo Chagas, pelo trabalho vigoroso, criativo e pela alegria contagiante. À Laura Battaglia, pela doçura e pelo acolhimento nos momentos em que recorríamos à sua sabedoria de “irmã mais velha”. À Katia Arilha, pela ginga, pelo apoio e pela inspiração à realização desse trabalho. Aos queridos bolsistas de graduação, que com juventude e perspicácia nos possibilitaram novos (e na maioria das vezes belos e divertidos) horizontes, as inesquecíveis: Patricia Anette, Ana Potenza, Carla Rafaela, Isadora Szklo, Hannah e Rafaella Américo. Aos coordenadores de outros polos da pesquisa, a querida Conceição, de Pau dos Ferros, e toda sua acolhedora equipe sertaneja, e Thomas e a não menos acolhedora equipe de Belém do Pará.

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para esse trabalho e para minha formação, algumas personalidades: Ana Cristina Alves (por me ensinar que arte, batuque e política na educação têm tudo a ver), Maria Claudia (e sua bonita “mania” de alfabetizar), Bete (com sua ancestral sabedoria e amizade), Crismara (por me introduzir na paixão e no respeito à cultura popular), enfim... para todas, todas, todas... teria muitos nomes a mais para recordar.

Aos meus pais que me deram a vida, a educação e muita fibra para ser teimosa o suficiente e não desistir daquilo que amava, mesmo na dificuldade. Ao meu irmão Fabricio, pela cumplicidade da infância e por me ensinar no mundo particular bases para o mundo público, à minha tia-mãe Maria Teresa pelo sorriso macio e a todos os “Bortolacis” pelo sorriso peculiar.

Aos que se tornaram familiares pela “arte do encontro”: Guilherme Amaral meu grandioso amigo, pelos sucos de laranjas compartilhados com discussões tão intensas sobre a filosofia, a arte, a política, a cultura, sobre meu “infinito particular” e pela palavra sempre brincante, esperta com que conduzimos nossa convivência há mais de 15 anos; à Ivani Farias pela serelepice, amizade e interesse nos meus temas de estudo, à Silvia Verina pela sempre acolhedora presença (mesmo na distância), à Danielle, Sabrina e André “Rochas” pela vida compartilhada desde os primeiros desafios da existência, à Rosana Bonfá pela fortaleza e magia com que me acompanha, à Joyce Costa pela vivacidade e por estar comigo para viver a cidade! Rafael por ser generoso, saber inglês (e também por ter feito o Joaquim). Thais Ribeiro por ser minha fiel companheira de tantas batalhas. Deise Urias, valiosa companheira (Cuba livre!), mestranda na área de Linguagem e Educação. Francielle, querida amiga mariliense, Mário Avelino, Bruno Mattos e Luciana Teruya pelas comilanças e beberanças da vida. À Katia Maslov por terapeuticamente me ajudar a encontrar sentidos, e ao José Tiago pelo ombro carinhoso e pela paixão vibrante vivida nesses anos de escrita.

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Aos meus pequenos “patrões”, que, com suas bocas lambuzadas de chocolate ou com seus rostos molhados de suor, vêm, diariamente, me desejar boa-tarde.

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BORTOLACI, N. Alfabetização no ensino fundamental: novas bases curriculares. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, 2015.

Esta dissertação apresenta dados e discussões oriundos de uma experiência coletiva de pesquisa cujo objetivo maior consistiu em articular as bases curriculares da alfabetização no ensino fundamental de nove anos. A partir da transição histórica e política ocorrida pela Lei 11.274/1996, na qual o ensino fundamental passou a ter um ano a mais de duração e a receber as crianças que anteriormente eram atendidas na educação infantil, uma nova configuração se fez necessária. Demonstramos ao longo do trabalho a necessidade de: 1. Um plano que considere as transições (seja entre anos ou entre ciclos) e que sustente as continuidades; 2. Assumir, a partir do ano de ingresso no ensino fundamental, a perspectiva do regime de ciclo, definindo responsabilidades, objetivos e estratégias articuladas a partir de um trabalho em equipe; 3. Aprofundar conhecimentos que permitam considerar os aspectos mais subjetivos da relação educativa, considerando sempre a infância em seu encantamento lúdico; 4. Estabelecer uma relação dinâmica e produtiva entre oralidade e escrita, entre língua e literatura; 5. Dar maior precisão ao manejo da heterogeneidade desde a série de ingresso enfatizando o acompanhamento de singularidades e diferenças como forma de resolver o problema dos desníveis em alfabetização. A perspectiva teórica parte da articulação de várias áreas e temas do conhecimento: a história da escrita; pesquisa sobre oralidade ou cultura oral em tensão com a escrita; a psicanálise e a educação. Pretendemos, a partir das experiências e reflexões apresentadas nesse trabalho, contribuir para as políticas públicas enfatizando a grande relevância do ensino da escrita e da leitura nas séries iniciais do ensino fundamental. Ao longo dessas experiências, constatamos que, para formar leitores e escritores de bom nível na escola pública brasileira, precisamos de um modelo de trabalho coletivo mais complexo, capaz de exercer um manejo pedagógico detalhado, e ampliamos nossa consciência de que nossas buscas metodológicas, nossas experiências e nossos esforços coletivos em torno da heterogeneidade, apesar de consistentes e relevantes, só poderão ser sustentados a partir de uma reorganização do trabalho escolar que insista em fazer da alfabetização e da leitura uma verdadeira prioridade.

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BORTOLACI, N. Alphabetization in elementary education: new curricular basis. Dissertation (Master Degree) –Faculty of Education. University of São Paulo, 2015.

This dissertation presents data and discussions originated from a collective research experience whose main objective was to articulate the basis of the alphabetization curriculum in the nine grades elementary education. From the historical and political transition brought by Law 11.274/1996, in which the elementary school came to have one more year in its duration and began receiving children who were previously attended in kindergarten, a new configuration was needed. We have demonstrated throughout the work the need to: 1. Implement a plan that considers the transitions (either between grades or between cycles) and sustain the continuities; 2. Assume, from the year of entry into elementary school, the perspective of the cycle regime, defining responsibilities, goals and strategies articulated within a team effort; 3. Deepen the knowledge that allow us to consider the most subjective aspects of the education, always taking into considerations the childhood in its ludic enchantment; 4. Establish a dynamic and productive relationship between orality and literacy, between language and literature; 5. Give greater accuracy to the management of heterogeneity starting from the entry grade, emphasizing the tracking of singularities and differences as a way to solve the problem of gaps in literacy. The theoretical perspective comes from the articulation of several areas and themes of knowledge: history of writing; research on orality or oral culture in tension with writing; psychoanalysis and education. We intend, from the experiences and reflections presented in this work, contribute to public policies emphasizing the great importance of writing and reading instruction in the early grades of elementary school. Throughout these experiments, we found that, to form readers and writers of good level in Brazilian public schools, we need a more complex collective working model, able to exercise a detailed pedagogical handling, and increase our awareness that our methodological pursuits, our experiences and our collective efforts around the heterogeneity, although consistent and relevant, can only be sustained from a reorganization of the work in school which insists on making literacy and reading a real priority.

KEYWORDS: 1. Alphabetization-Literacy. 2. Orality. 3. Nine grades elementary education. 4. Curricular bases for the first grade of elementary education. 5. Cycle regime, 6. Childhood

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Figura 1 – Faixa de Moëbius ... 43

Figura 2 – Exemplo de material apostilado de escola privada ... 80

Figura 3 – Exemplo de material apostilado de escola municipal ... 81

Figura 4 – Espaço de leitura ... 90

Figura 5 – Espaço de construção ... 90

Figura 6 – Espaço do jogo simbólico ... 90

Figura 7 – Espaço das artes ... 90

Figura 8 – Sala organizada em pequenos grupos ... 92

Figura 9 – Carteiras dispostas en forma de semicírculo ... 92

Figura 10 – Murais no corredor da sala de aula ... 93

Figura 11 – Proporção professor/turma em 2012 ... 98

Figura 12 – Desenho infantil sobre A História da Coca ... 109

Figura 13 – Blog do projeto Desafios ... 122

Figura 14 – Atividades únicas e desafios ... 127

Figura 15 – G1 – Leitura pelo professor e foco no preenchimento dos nomes dos pássaros a partir do conhecimento das vogais ... 129

Figura 16 – G2: palavras a serem preenchidas pelos alunos com sílabas simples ... 129

Figura 17 – G3: leitura por parte dos alunos com o auxílio necessário por parte do professor e preenchimento dos pássaros com menor auxílio nas sílabas complexas ... 130

Figura 18 – G4: atividade mais extensa e de maior complexidade ... 130

Figura 19 – Senha de entrada ... 133

Figura 20 – Rébus clássico ... 134

Figura 21 – Rébus acrofônico ... 135

Figura 22 – Rébus acrofônico complexificado ... 135

Figura 23 – Palavra valise ... 136

Figura 24 – Revestrés ... 136

Figura 25 – Personagem Senhor Rouba-Letras ... 137

Figura 26 – Contexto projeto Identidade: sobrenome ... 141

Figura 27 – Contexto: visita ao Museu Afro-Brasil ... 141

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Tabela 1 – Eixos da constituição da linguagem ... 42

Tabela 2 – Tempo semanal da turma de seis anos – segundo semestre de 2010 ... 63

Tabela 3 – Material de educação infantil: dados ... 103

Tabela 4 – Entrevista com os pais (aspectos culturais e socioeconômicos) ... 104

Tabela 5 – Desempenho da turma em março ... 110

Tabela 6 – Desempenho da turma em maio ... 111

Tabela 7 – Desempenho da turma em setembro ... 114

Tabela 8 – Comparativo dos níveis de leitura e escrita entre março e setembro ... 115

Tabela 9 – Alunos com atendimentos personalizado ... 117

Tabela 10 – Objetivos mínimos para o ciclo inicial de alfabetização (primeiro ao terceiro ano) ... 124

Tabela 11 – Rotina de uma semana do primeiro ano do ensino fundamental I ... 132

Tabela 12 – Objetivos mínimos e de transição para o ciclo inicial de alfabetização (primeiro ao terceiro ano) ... 143

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Introdução ... 13

Alfabetização: um campo de reminiscências? ... 13

Reminiscências da pesquisadora ... 14

A alfabetização das crianças brasileiras: uma questão po(lí)(é)tica? ... 19

1 As bases teóricas do projeto Desafios: revisitando a oralidade e a teoria da subjetividade para o ensino de leitura e escrita ... 25

1.1 A oralidade na história da pré-escrita: o que Homero diria cantaria sobre tudo isso? . 25 1.2 A transição oralidade-escrita: a imagem e o rébus ... 31

1.2.1 Esse tal de inconsciente... ... 34

1.2.2 Outras contribuições da teoria da subjetividade para o ensino da leitura e da escrita ... 38

1.2.3 A arte, a literatura... e o inconsciente ... 40

1.3 A função poética na alfabetização ... 44

1.3.1 A oralidade brasileira e o ensino das crianças ... 46

1.4 Um programa de alfabetização para as crianças que leve em conta a corporalidade .. 49

2 No chão da Escola: as bases para um voo... ... 55

2.1 O nosso chão: A EAFEUSP ... 56

2.2 Orientações legais no contexto de implementação do ensino fundamental de nove anos ... 58

2.3 O currículo do primeiro ano da EAFEUSP: caminhos para a heterogeneidade? ... 60

2.4 As narrativas no corpo e na voz do professor ... 66

2.5 O professor como ponto de giro ... 70

2.6 O primeiro ano: uma perspectiva do regime de ciclos ... 71

2.7 Portfólios da educação infantil: transições e tendências ... 77

2.7.1 Portfólio 1 – Material apostilado de escola privada ... 78

2.7.2 Portfólio 2 – Escola municipal da Prefeitura de São Paulo ... 80

2.8 Peculiaridades do trabalho com a infância ... 82

3 Um programa de alfabetização para o primeiro ano do ensino fundamental da EAFEUSP ... 85

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3.3.1 Ambiente alfabetizador ... 89

3.4 O manejo da heterogeneidade ... 95

3.4.1 Uma estrutura necessária para a alfabetização das crianças: a proporção professor/criança ... 95

3.4.2 Aos renitentes: todas as tentativas (e mais uma!) ... 99

3.4.3 Diagnósticos ... 102

3.4.4 Atendimentos personalizados ... 116

3.5 Estratégias para o regime de ciclo ... 123

3.6 Atividades diferenciadas – diversos modelos para o manejo da heterogeneidade ... 125

3.7 Uma rotina lúdica para o primeiro ano do ensino fundamental ... 132

3.7.1 Senha de entrada ... 133

3.7.2 Leitura da rotina ... 137

3.7.3 Espaços ... 138

3.7.4 Contação de histórias ... 139

3.7.5 Lições de casa ... 140

3.7.6 Assembleias ... 142

3.7.7 Oficinas ... 142

Considerações finais ... 150

Referências bibliográficas ... 153

Anexos ... 158

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INTRODUÇÃO

ALFABETIZAÇÃO: UM CAMPO DE REMINISCÊNCIAS?

Os fragmentos da carta de ABC, pulverizados, atirados no quintal, dançavam-me diante dos olhos. “A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t”. Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício – e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro.

RAMOS, 2003, p. 119.

Nessa imagem resgatada do livro Infância, de Graciliano Ramos, nos deparamos com as reminiscências do autor, que nostalgicamente nos trazem um tempo que já foi de todos nós, quando as letras eram símbolos grotescos e indecifráveis, um tempo em que a linguagem e o nome das coisas do mundo eram questionados sem rodeio. Quando o óbvio e o coerente não eram tão certeiros assim.

No caso da passagem exposta, a personagem se defronta com provérbios morais que ressoavam (ou turvavam?) seus pensamentos. A mesóclise erudita e bem-empregada no provérbio que tanto ouvia na escola, “fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém”, pela homofonia, o significante estranho torna-se o nome de um homem, o Sr. Terteão, que o assombra por todo o capítulo em que são narradas suas lembranças escolares e a árdua aprendizagem das letras.

Graciliano Ramos traz a seu leitor imagens sensíveis desse momento sem respeitar lógica nem manuais de alfabetização, passagem que a história da educação nem sempre aprovaria como o método mais eficaz e sadio, mas que só sabemos – pela verossimilhança da voz de Graciliano – que com ele foi assim. Tais cenas acabam penetrando o leitor com um misto de nostalgia e angústia. Por meio dessa literatura, alfabetizadores (ou não) conseguem se sentir instigados e envolvidos mais intimamente com a situação que cotidianamente colocamos aos menos experientes em nosso mundo letrado: a aprendizagem da leitura e da escrita.

A leitura do Infância de Ramos, a aproximação com suas cenas passadas e dos “devaneios” da literatura clássica, alheia a uma bibliografia focada no conteúdo da pesquisa, me fez encontrar um caminho para a difícil tarefa de iniciar a escrita de uma dissertação: o sentido pessoal do feito e localizá-lo no caminho da própria vida.

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A infância de Ramos e sua alfabetização certamente invadem subjetivamente seus leitores, assim como a infância e a subjetividade da pesquisadora estarão acompanhando os caminhos que trilharão esse trabalho e reafirmando: há sujeitos, há singularidades, há narrativas para haver escrita, leitura.

REMINISCÊNCIAS DA PESQUISADORA

Filha de pais do interior de São Paulo e do Paraná, minha relação com a educação me remete a lembranças de narrativas construídas antes mesmo do meu nascimento. Relatos de um avô por parte de mãe analfabeto e servente de uma escola pública, que jamais conheci, mas que fez força no meu imaginário como um “homem de escola”. Minha mãe também continuou esse percurso de trabalhadores da escola e formou-se no curso normal, opção muito comum para as meninas da época que, apesar de pobres, conseguiam prosseguir os estudos.

Os relatos paternos, sempre mais obscuros, só me fazem saber que nessa família o trabalho na lavoura e na roça era central. Letra, livro, cartilha ou coisa parecida não foram muito presentes na infância de meu pai. Sempre falou de escola como algo nobre, a ser valorizado e um tanto quanto inacessível. Terminou os estudos do ensino médio em São Paulo num curso para adultos.

Nasci nessa união do trabalho paterno com a paixão por um universo mais escolar materno que, apesar de nunca ter exercido de fato a docência, sempre se encantou e nos inseriu nesse mundo mais afeito às letras, às canetinhas, às lantejoulas, ao zelo e capricho do trabalho escolar, à obrigação de ter boas notas, boas condutas escolares. Ainda que numa ambição de classe popular na educação dos filhos restrita ao “que passem de ano” (num tempo em que a reprovação era um forte critério de seleção na vida de muitos estudantes) para que mais tarde pudessem conseguir um trabalho menos árduo e um futuro mais seguro.

Meu percurso escolar iniciou-se no “parquinho”1 aos cinco anos. Apesar de começar tarde esse “caminho suave”, meu universo caseiro e materno, como disse, era bastante letrado. Lembro-me das “borbulhas” que sentia ao esperar ansiosamente, na companhia do meu irmão, os capítulos de Reinações de Narizinho contadas pela minha mãe em uma das nossas viagens de férias, ou a espera do carteiro para a entrega da assinatura dos nossos gibis da Turma da Mônica, que chegavam em casa periodicamente. Consigo me recordar com clareza que, apesar de não estar alfabetizada e aquelas letras serem ainda símbolos indecifráveis, elas todas

                                                                                                                         

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me faziam ter muita vontade de descobrir o que estava escrito naqueles balões que acompanhavam ilustrações tão expressivas e cheias de movimentos dos personagens.

Frequentei apenas um ano o parquinho (aquele ambiente com mesinhas coletivas, músicas, brinquedos e parque), e logo ingressei no primeiro ano do ensino fundamental – tal como as crianças que pretendo estudar nesse trabalho – aos seis anos. Minha mãe acreditava que, o quanto antes eu ingressasse na escola, melhores oportunidades teria.

Lembro-me de que para esse “ingresso antecipado” foi preciso muito trabalho, pedido de favores, até finalmente atingir o êxito (?) de ir para a “escola de verdade”, uma Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau (EEPSG) num bairro da periferia de Osasco. Os primeiros dois anos foram banhados de muito choro e sofrimento. Não queria ficar naquele lugar, tinha medo de tudo e frequentemente forjava dores de cabeça, quedas na lama para ser “resgatada”, pela zelosa mãe, daquele lugar que me parecia hostil, ameaçador e inadequado aos meus sonhos de menina.

A ideia que eu tinha de escola antes de conhecê-la era outra. Perguntava-me onde estavam os cartazes coloridos das escolas dos filmes americanos. Onde estavam os adultos compreensivos que acolheriam as crianças e se enterneceriam com os nossos gracejos? Por que preciso pintar esses desenhos meio borrados de carbono, meio molhados e cheirando a álcool? Onde estão as cirandas? Os brinquedos?

Encontrei o árido. Uma sirene bem alta, evocando os tempos e o que deveria ser feito, era o sinal. Era tão alto que eu jamais ousei contrariá-lo, apenas obedecia. Encontrei uma refeição às nove horas da manhã, que tomaria meu tempo de recreio, e mesmo sem querer, seria obrigada a colocar aquela comida “goela abaixo” sem negociação.

Encontrei pessoas da mesma idade, mas muito diferentes de mim. Pareciam conhecer bem mais do sofrimento do que eu (e do sofrimento que achava que conhecia). Deparei-me com uma realidade plural. Encontrei-me com pessoas que realmente viviam a desigualdade e a(s) violência(s) que a economia produz e que não poupa e nunca poupou os que estão nesse mundo há pouco tempo, como as crianças. Encontrei simplicidade, criatividade e pessoas muito sensíveis, múltiplas e, por vezes, a fim de subverter dificuldades, em vez de se estagnar nelas.

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Tal percepção, ao meu entender, foi alimentando um caminho que venho trilhando de pensar e repensar o ensino e as políticas públicas para uma educação gratuita, de qualidade e possível.

Aos 17 anos, concomitantemente ao último ano do CEFAM, cursei o primeiro ano de pedagogia na Universidade Estadual Paulista (Unesp) no campus de Marília. Nesse momento eram praticamente doze horas do meu dia dedicados a estudar a educação! Foi também um momento de forte encontro com uma militância política bastante implicada em pensar mudanças sociais necessárias para um mundo mais justo, menos desigual. O encontro com estudantes do curso de filosofia e especialmente de sociologia no campus foi uma experiência formativa bastante significativa.

No segundo ano de pedagogia, após realizar o processo de transferência, ingressei no curso da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Nesse momento iniciei um estágio no projeto Piá!2 e consequentemente a participação no grupo de estudos Educação e Resistência do mesmo coletivo. Foi um período de trabalho no Clube da Cidade Raul Tabajara com um público de crianças em sua maior parte da Barra Funda, especialmente dos catadores de papelão da Oficina Boracea. Atribuo a esse momento formativo uma imensa importância na minha sensibilização à infância, ao ideal transformador (ou ao menos resistente) que a educação precisa se imbuir. Aproximei-me, em um nível teórico, de estudos marxistas e psicanalíticos, especialmente das produções dos autores da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e Benjamin).

Em 2005 passei a fazer parte do quadro de funcionários da Creche Central da Universidade de São Paulo. Depois de uma rápida experiência em uma escola particular, em que ser vigiada de tempos em tempos por uma janelinha de vidro pelos donos da escola era lugar-comum. Entrei em contato com uma proposta comprometida, séria e muito competente de educação e cuidado da infância. Encontrei profissionais muito plurais enlaçados pela concepção da Creche. Aprendi que a voz de uma criança é para ser escutada, mesmo daqueles que tentam expressar seus primeiros balbucios.

Paralelamente ao trabalho na Creche, em 2009, ingressei como professora de educação básica na rede municipal da cidade de São Paulo. Em uma escola da comunidade do Paraisópolis, deparei-me pela primeira vez com o desafio de ensinar a leitura e escrita às crianças do ensino fundamental. Para uma professora vinda das cores, dos cuidados, da estrutura da Creche Central da USP, encontrar o árido, as portas e janelas trancafiadas dessa                                                                                                                          

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escola municipal foi assustador, ao mesmo tempo que me remeteu à minha história e ao meu percurso inicial de escolarização...

Apesar da experiência com o trabalho na educação infantil, ingressar no ensino fundamental me trouxe um grande desafio: ensinar as crianças da terceira série3. Deparei-me com uma sala completamente heterogênea, com alunos que já escreviam e liam com fluência, mas um grande número de outros que tinham pouca habilidade com a leitura e escrita. Encontrei-me, solitária, diante da minha incapacidade aliada a minha inexperiência.

Nesse momento procurei uma companheira de trabalho da Creche que tinha “fama” de ser uma excelente alfabetizadora (e, além disso, era a personagem-bruxa oficial da Creche, ela realmente deveria saber de coisas mágicas e misteriosas como a alfabetização!). Maria Claudia Perna foi bastante requisitada nos corredores, nos intervalos do trabalho, nos lanches e não hesitou em me auxiliar nessa empreitada. Apelei para leituras de manuais alfabetizadores, lancei mão de estratégias e do meu repertório de histórias e brincadeiras infantis. Percebi que os saberes da Creche eram muito férteis para o ensino fundamental e, surpreendida, notei que o fundamental teria muito a aprender ou ao menos dialogar com a educação infantil.

Terminei o ano no ensino fundamental como comecei: solitariamente. Sem prestar contas a ninguém, sem ter tido parceria com profissional algum daquela escola, sem dialogar. Não sei precisar o quanto reduzi ou não o analfabetismo daquela sala, já que naquela época dados e diagnósticos não me pareciam tão importantes. O que pude perceber é que eram crianças, em sua maioria, engajadas e encantadas pelo trabalho. Algumas “crianças-problema” enviadas para a minha sala de professora novata, propositalmente pelas outras professoras que queriam “passar o abacaxi”, apresentavam um giro subjetivo, uma mudança de postura. Experimentavam ser outros, na minha visão, experimentavam ser crianças. Trazer a infância para o ensino fundamental pareceu-me, mais uma vez, muito fértil, e o desafio da alfabetização começou a me encantar.

Presenciei muitas cenas de infância negada nessa escola. Muitos professores, por mais caricato que pareça, diziam com todas as letras que seus alunos eram “marginais”. Reproduziam despudoramente dentro da escola da “favela” a violência que estava fora dela. Presenciei quebra de vassouras na porta para garantir o silêncio de uma turma que estava sem professor havia semanas, ofensas e outras práticas que muitas vezes impregnam os mais inexperientes, que têm em seu local de trabalho grande parte de sua formação (e frustração).

                                                                                                                         

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Em 2010 fui convidada pela direção da escola a assumir uma das turmas de primeiro ano. O município implementou naquele ano o ensino fundamental de nove anos. Em paralelo ao que ocorria no ensino fundamental, presenciava a luta na educação infantil. Inicialmente não se admitia perder seu público de crianças de seis anos e o trabalho já constituído com elas, afirmava-se que motivos econômicos não poderiam ser maiores que o processo pedagógico das crianças e o currículo já constituído naquela modalidade de ensino. Em contrapartida, o discurso político garantia que essa mudança levaria o acesso e o direito à educação a um maior número de crianças, que não poderiam ser acomodadas na educação infantil. No saldo final, à revelia da discussão democrática, a lei entrou em vigor e o que acabou ficando é que, para além das discussões pedagógica acerca da pertinência ou não da mudança4, algo precisava ser construído diante da nova realidade.

E nesse presente, as orientações que se seguiam para as quatro professoras da turma eram: eles não podem ficar trancados na sala, é preciso construir uma proposta diferente para essas crianças. É preciso brincar com elas. Não tínhamos parque, não tínhamos brinquedos, não tínhamos cadeiras pequenas e continuamos, apesar da vinda dos seis anos, não tendo. Foi preciso muita parceria, manejo pedagógico para tentar garantir às crianças um ingresso no ensino fundamental mais respeitoso.

As quatro turmas de primeiro ano assumiram propostas muito diferentes. Lembro-me de uma turma muito contida pintando desenhos mimeografados pela professora, trabalhando com datas comemorativas e formas pré-escolares (no sentido caricato do termo), outras turmas mais focadas em reproduzir o que era feito anteriormente na primeira série com os alunos de sete anos. A escola – e especialmente o município – que implementava tal mudança não assumiu o desafio de pensar a constituição de uma nova série, de um novo currículo, quanto menos o de dialogar com seus professores para tal empreitada. Vivenciei tal política pública como quem ouve “Fiquem com essas crianças e façam o que julgarem necessário, mas entregue-as vivas ao final do dia”. Contenção da pobreza, muito mais que educação da pobreza.

Nesse ano fiz uma profícua parceria com a estagiária Isadora Rebello do programa Ler e Escrever. Consegui um ano não solitário. Planejamos juntas as intervenções e pudemos ter bons resultados ao fim do ano. Tentamos balizar o brincar, as linguagens da infância, com a necessidade de introduzi-los ao universo da leitura e escrita, da literatura, das brincadeiras, da vida em grupo, das experiências artísticas. Pudemos compartilhar o olhar para questões                                                                                                                          

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subjetivas que as crianças apresentavam e que nos intrigavam. Fizemos uma parceria de conhecimentos, de vivencias, de ideais.

Em paralelo passei a frequentar cursos acerca da cultura popular, especialmente os oferecidos pela Biblioteca Pública Belmonte sob coordenação do antropólogo professor doutor Alberto Ikeda; além disso, tentei iniciar meus estudos na psicanálise clínica, porém após um semestre percebi que a dificuldade que encontrei na aproximação da teoria psicanalítica dava-se especialmente por esse não ser meu “campo de paixão” e que a minha proposta de trabalho era para algo mais coletivo, era mesmo a educação.

No segundo semestre de 2011, demiti-me da rede municipal e da Creche Central da USP e passei a fazer parte do grupo de professores da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Assumi até 2014 as turmas de primeiro ano do ensino fundamental de nove anos. Com o ingresso na instituição, passei a fazer parte do projeto de pesquisa O Desafio do Ensino de Leitura e Escrita no Ensino Fundamental de Nove Anos, sob coordenação-geral do professor doutor Claudemir Belintane da FEUSP, ambiente onde nasceu tanto a pesquisa quanto meu percurso de pesquisadora da alfabetização.

A ALFABETIZAÇÃO DAS CRIANÇAS BRASILEIRAS: UMA QUESTÃO PO(LÍ)(É)TICA5?

Para além de motivos subjetivos, a alfabetização é uma preocupação pública. Nos últimos tempos, o tema, e especialmente seu fracasso nacional, tem sido pautado nos discursos jornalísticos e políticos. Em resposta a essa situação, diversas medidas vão sendo adotadas (avaliações gerais e programas como o Proler – Programa Nacional de Incentivo à Leitura, ou o PNLD - Plano Nacional do Livro Didático). A mais recente, o PNAIC - Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, assumiu o compromisso formal de estabelecer planos com os sistemas educacionais de estados e municípios e assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao fim do terceiro ano do ensino fundamental.

O que costumamos ver ao analisar os documentos que embasam tais políticas é mais a afirmação e/ou disputa de metodologias, mas pouco enfrentamento da complexidade da alfabetização dos brasileiros, de modo a preconizar mudanças estruturais que balizem e possibilitem novos e realmente transformadores princípios metodológicos. Ao nosso entender,

                                                                                                                         

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continuar fazendo o que já fazemos, com a mesma estrutura que temos, não tem se mostrado eficiente. É, em linguagem mais popular, mais do mesmo.

O que temos assistido, nos traz a impressão de dois caminhos perversos presentes no discurso dominante: a culpabilização do professor (aquele que precisa ser reciclado, aquele a quem falta estratégia, aquele que não entendeu determinada metodologia), ou a do aluno que tem dificuldade6 e que algumas vezes precisa ser mais bem acompanhado pela sua família (leia-se ter uma “melhor família”), ou medicamentalizado por fugir “à regra” e não se enquadrar num modelo de ensino A ou B. A alfabetização precisa rever esse discurso e encontrar novos caminhos para sua efetivação. Numa perspectiva de real enfrentamento do ensino de leitura e escrita por uma equipe escolar (na superação do professor isolado em sua turma), possibilitando a proposição de caminhos singulares para as crianças que apresentam mais complexidade nesse processo em parceria com suas famílias. Para isso, mudanças paradigmáticas e estruturais se fazem necessárias.

Além disso, nas perspectivas dominantes nesse campo de ensino, a subjetividade, o nonsense e a poética não ocupam lugar de centralidade e muitas vezes cedem lugar ao cotidiano, ao pragmático-funcional, desvinculado de ideais coletivos. Não parece contraditório as crianças aprenderem, aos três anos de idade, em um material apostilado pelo “eficiente e comprovado” método do sistema de ensino X, a decodificar letras antes mesmo de vivenciar e brincar de cantigas e outros ludismos próprios à idade, tampouco pesaroso substituir as narrativas de aventuras por textos funcionais e do cotidiano como receitas e embalagens de produtos. Tais práticas, ao nosso entender, para além de funcionalidades explicitadas pelos defensores, acenam para uma lógica capitalista sempre disposta a orientar os profissionais do amanhã. Um texto instrucional não permite interpretação ou lacunas a serem preenchidas pelo sujeito-leitor, mas somente absorver o que se deve fazer.

No ato de educar, estamos a todo momento, como nos alertou o professor Paulo Freire, com intencionalidades e caminhos de escolha que revelam nossas concepções. Uma cena muito cotidiana e pueril na prática de sala de aula pode ser elucidativa. No momento em que é preciso escolher uma criança para participar de uma atividade, temos dois caminhos: o professor utilizando objetivamente a estratégia de seu dedo indicador para essa seleção, ou a                                                                                                                          

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turma numa cadência coletiva, embalada pelo: Minha mãe mandou/ Eu escolher este daqui/ Mas como eu sou teimoso/teimosa/ Vou escolher este daqui!

Ao evocar a cantiga, é a cultura, simbolizada em uma fórmula de escolha, que operará em nome de uma tradição, na cadência de um ritmo que, apesar de (e talvez, especialmente por) seus nonsenses, é legitimado e apropriado por esse grupo de crianças, assim como já o foi por diferentes gerações. Uma escolha que poderia ser simples ganha gracejos e poesia de brincar e um potencial de encantamento às crianças. E é nesse encantamento que pretendemos empreender esforços. É nesse encantamento da criança pela palavra que fundamos nossa metodologia.

Para utilizar outras formas orais nessa apresentação inicial de imagens, podemos ainda pensar nas poucas palavras do provérbio chinês “A língua resiste porque é mole; os dentes cedem porque são duros”, que abrem um lastro de significações e ressoam internamente em um sem-número de ensinamentos a ser decifrados em uma formação moral muito singular. Longas pregações calcadas em discursos lógicos, objetivos e coerentes nem sempre apresentam mais sucessos que essas poucas e delirantes palavras.

“Durma!” pode ser um imperativo rígido, mais irmão da insônia do que o efeito de inebriantes cantigas de ninar, que vêm com textos e também tantos “pretextos” subjetivos (da companhia, da palavra doce e afetiva) que propiciam enredamento poético, instaurando tanto uma subjetividade de quem é acalantado como de quem acalanta.

Com os exemplos citados, queremos expor o quanto algumas formas resistentes de oralidade diluídas em nosso cotidiano ainda apregoam uma poética popular, seja no campo da educação institucionalizada (ou não) ou da família. É certo, rememorando os dizeres de Manoel de Barros, que para a “lógica da razão” ainda se trata de “língua de raiz, língua de brincar, língua de faz-de-conta” (2010, p. 12), mas que em nossa defesa é a língua com potencial alfabetizador para as crianças, que mobiliza o encantamento e traz as crianças a esse saber.

Ao analisar a história da escrita, por contraste, deparamo-nos também com as sociedades ágrafas, que por séculos se mantiveram somente na oralidade e perpetuaram conhecimentos, tradições, valores, experiências existenciais e identidades coletivas. Hoje, apesar da escrita nos parecer óbvia e indispensável, temos clareza de que ela se constituiu após um vasto percurso humano. Um mundo sem escrita já foi possível, existiu.

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que inventamos e que são capazes de aumentar a capacidade da memória de nossos computadores. A escrita, nesse sentido, é o HD de nossa memória.

Entre os defensores, estudiosos e fazedores da alfabetização, é comum uma concepção na qual, de forma caricatural, a escrita é uma prática necessária, salvadora e civilizadora, como se a pré-escrita caracterizasse um período inócuo. É relevante que, apesar de nossa contemporaneidade concebê-la como um imperativo de comunicação, a linguagem já foi relacionada não a lápis e papel (ou tela), mas a “corpo e fruição”, como nos mostra a Antiguidade grega, por exemplo.

Sem negar a necessidade da aprendizagem (da tecnologia) da leitura e da escrita, mas revisitando o tempo da corporalidade, pudemos encontrar, numa perspectiva filogenética, o potencial das atividades performáticas orais em sala de aula não só para o ensino de leitura e escrita, mas também no campo da relação com o aluno, especialmente na aproximação com aqueles que se colocam mais renitentes às estratégias escolares. Nesse sentido, é também a oralidade que pode criar condições para a própria criança ter condições de aprender, uma vez que segundo Belintane, ela é

propulsora de uma ambiência ficcional repleta de ambiguidades, que torna mais fácil a emergência de uma subjetividade predisposta a um confronto entre uma corporalidade excessiva (correr e brincar sem muitas regras) e as posturas de contenção que a escrita põe em jogo. (2013, p. 69.)

Nossa concepção distancia-se da ideia evolutiva na alfabetização, em que o sujeito parece passar por fases até chegar à aprendizagem plena. Caminha num sentido mais integrado à psicanálise ao conceber as crianças envolvidas nesse processo como sujeitos desejantes e que, atravessados pelo desejo, encontram na linguagem importantes formas de manifestação e sentido singular. Aproximamo-nos, dessa forma, mais do “existo onde não penso” pressuposto do inconsciente linguageiro (LACAN, 1998) com seus chistes, desvios e plasticidades, do que do cogito de Descartes “penso, logo existo”.

Tal casamento que tentamos empreender entre oralidade e subjetividade na alfabetização das crianças encontra um território interessante na realidade brasileira, que tem na constituição de sua cultura uma herança miscigenada do encontro de três povos muito distintos: o indígena e sua oralidade primária7, a cultura portuguesa, introduzida pelos colonizadores do século XVI, e culturas africanas, importadas a partir da primeira metade

                                                                                                                         

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desse mesmo século (especialmente de povos sudaneses – Ioruba e outros – e povos bantos – Angola e Moçambique). Para nós, tal aspecto ancestral de nossa cultura precisa ser considerado e valorizado.

Diante de tais considerações e, a partir da transição histórica e política ocorrida pela Lei 11.274/1996, na qual o ensino fundamental passa a ter um ano a mais de duração e a receber crianças que anteriormente eram atendidas pela educação infantil, uma nova configuração se faz necessária. Esta dissertação pretende apresentar dados e discussões oriundos da experiência coletiva do projeto Desafios e articular novas bases curriculares para a alfabetização na série de ingresso com irradiações em todo o ensino fundamental de nove anos. Nesse sentido, temos como objetivo refletir sobre a necessidade de: um plano que considere as transições (seja entre anos ou entre ciclos) e que sustente as continuidades; assumir, a partir do ano de ingresso no ensino fundamental, a perspectiva do regime de ciclo, definindo responsabilidades, objetivos e estratégias articuladas a partir de um trabalho em equipe; aprofundar conhecimentos que permitam considerar os aspectos mais subjetivos da relação educativa, considerando sempre a infância em seu encantamento lúdico; estabelecer uma relação dinâmica e produtiva entre oralidade e escrita, entre língua e literatura; dar maior precisão ao manejo da heterogeneidade desde a série de ingresso, enfatizando o acompanhamento de singularidades e diferenças como forma de resolver o problema dos desníveis em alfabetização.

Objetivamos ainda, de forma mais ampla, contribuir para a compreensão de que as séries iniciais necessitam de um tratamento especial das políticas públicas para a criação de uma estrutura compatível com a sua importância para a vida escolar dos alunos, numa perspectiva de educação pública de qualidade e transformadora, enfrentando o ensino de leitura e escrita inclusive do público que historicamente vem sendo excluído desse processo.

Diante de tais desafios, esta dissertação, fruto de um trabalho de pesquisa-ação, será dividida em três capítulos e encerrada com minhas considerações finais. No primeiro capítulo, pretende-se expor alguns dos pressupostos teóricos8 que sustentaram o projeto Desafios. Caminha-se na busca de uma síntese a partir da história da escrita, especialmente do mundo oral e da chegada ao sistema alfabético, da função da poética na antiguidade e da subjetividade, a partir das teorias freudo-lacanianas. Tal apresentação pretende situar o leitor das bases epistemológicas que embasaram as discussões na qual esse estudo se construiu.

                                                                                                                         

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No segundo capítulo, aproximarei o leitor das condições de implementação do projeto Desafios na Escola de Aplicação da FEUSP e, nesse diálogo com a estrutura já existente, exporei concepções importantes, bem como situações favoráveis e desfavoráveis para a construção de bases curriculares para o programa do primeiro ano do ensino fundamental, cuja apresentação ocorrerá no terceiro capítulo.

No terceiro capítulo, pretende-se sistematizar e organizar para o leitor o que seria a nossa concepção de infância, de tempos e espaços para o programa de alfabetização do primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos. A partir dos eixos apresentados nos capítulos anteriores tentaremos sistematizar bases curriculares considerando a dinâmica entre oralidade-imagem-escrita, estratégias que considerem o posicionamento subjetivo da criança e para o manejo da heterogeneidade.

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1 AS BASES TEÓRICAS DO PROJETO DESAFIOS: REVISITANDO A ORALIDADE E A TEORIA DA SUBJETIVIDADE PARA O ENSINO DE LEITURA E ESCRITA

1.1 A ORALIDADE NA HISTÓRIA DA PRÉ-ESCRITA: O QUE HOMERO DIRIA CANTARIA SOBRE TUDO ISSO?

(Homero) Simplesmente vivia num tempo em que o pensamento não se separava da imagem, tampouco o abstrato do concreto. (...) Ele é apenas testemunha de um estado da linguagem em que a palavra era idêntica ao canto. Os homens, com efeito, cantaram antes de falar. RANCIÈRE, 2009, p. 29.

A linguagem é uma construção cultural humana que nos distingue dos outros animais, ou, para ser mais imperativo e relembrando as palavras de Barbara Cassin (2013), “fala, se fores homem”. Ousando brincar com as palavras, poderíamos dizer que em nosso mundo falar humaniza, mas a escrita “cidadaniza”. Fica difícil pensar em um sujeito que possa ser um beneficiado (reconhecido) em nossa cultura sem esse conhecimento. “Podes falar bem”, mas em algum momento a escrita será requerida para saber se “ter-te-ão”9 por alguém. A escrita toma papel de centralidade, mas o que sabemos é que nem sempre foi assim.

Antes do advento da escrita, na Grécia Antiga o legado de todo o ensino era pautado na oralidade. Nessas culturas orais, havia uma valorização da enunciação e a essa era atribuída legitimidade. A escrita nesse tempo e nessa sociedade, diferente do que temos hoje, não representou emancipação, e sim ameaça: à cultura e à memória.

Os gregos, antes da invenção da escrita, tinham uma cultura oral como forma de luta contra o esquecimento. Sua entidade da memória, Mnemosine, era nada menos que uma titânide cujo opositor, o rio Lete, simbolizava o próprio esquecimento. O guardião dessa memória entre os homens, o portador das histórias, das guerras, dos acontecimentos era o corpo dos rapsodos e dos poetas que memorizavam e declamavam ritualisticamente a seu povo as epopeias, os poemas. A estética da palavra (o ritmo, a rima, a música, as alegorias) tem nessa arte da memorização um importante papel.

Localizar a atribuição mitológica das musas nessa sociedade é inevitável para uma compreensão mais abrangente do caráter ritualístico e quase religioso da composição oral. O

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poeta era acometido por uma espécie de transe no qual evocava as musas para buscar inspiração, para dele nascer a criação artística. As musas eram as nove filhas advindas da união de Mnemosine (a deusa da memória) e Zeus. Cada uma delas tinha o dom e a responsabilidade pela transmissão de um tipo de memória. Calíope, pela memória das poesias épicas; Clio, pela lembrança das histórias; Érato, o dom da poesia romântica; Euterpe se responsabilizava pelas músicas; Melpômene permitia a transmissão das tragédias; Polímnia possibilitava cantar os hinos; Terpsícore levava os homens a dançar; Tália fazia lembrar as comédias; e, finalmente, Urânia fazia com que os homens olhassem para o céu e todos os seus astros para que nunca se esquecessem da grandeza do universo (TORRANO, 2007).

Em sua bem-nomeada obra A musa aprende a escrever, Eric Havelock reconvoca as musas e reflete sobre a oralidade desde a Antiguidade grega. Entre algumas de suas conclusões, está a de que a literatura grega havia sido poética porque “a poesia, numa comunidade oral, tinha uma clara função social: a de preservar a tradição segundo a qual os gregos viviam e a de instruí-los nela” (1996b, p.18). O autor nos apresenta uma pedagogia oralista e poética, sendo que um dos mecanismos que os gregos teriam utilizado para manter essa “educação”, garantindo a sua transmissão de geração em geração, era o hábito, assiduamente cultivado, de conservar uma estreita associação diária entre os adolescentes e os mais velhos, que serviam de “guias filosóficos e amigos” (1996, p. 15). Chegamos, assim, a uma conclusão: o aspecto coletivo nessa sociedade estava fortemente marcado e circunscrito na e pela oralidade.

Harvelock é herdeiro da teoria oralista de Milman Parry e Albert B. Lord (1960). Aproveita seus estudos acerca dos cantadores camponeses iugoslavos de uma comunidade oral das décadas de 1930 e 1950 (momento em que a escrita estava fortemente consolidada e essa comunidade era algo peculiar), e especialmente realiza a observação de que, ao contarem uma história, os cantadores tinham disponível em memória um conjunto de frases padronizadas das quais poderiam extrair as que, de acordo com a história, se enquadrassem num determinado contexto. Diante disso, chegou à seguinte consideração: “o desenrolar da história seria uma questão de invenção; a linguagem usada nela, não” (HAVELOCK, 1996, p. 22).

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Em Prefácio a Platão, Havelock apresenta um interessante estudo acerca da “psicologia da declamação poética” e tenta descrever como os menestréis gregos exerciam influência sobre os cidadãos utilizando um complexo sistema de recursos mnemônicos que envolvia sensualmente a plateia. A técnica, segundo o autor, parecia incorporar as míticas musas e associava recursos poéticos da declamação, uso de instrumento musical e dança, de tal forma que o esforço de memorizar a palavra fosse minimizado pelo prazer sensual convocado pela associação entre linguagem oral e corporal. Esse envolvimento catártico chega a ser comparado por Havelock aos prazeres do sexo e da alimentação (1996, p. 170).

Belintane é uma importante referência a esse trabalho, por procurar ao longo de toda sua obra uma articulação entre a oralidade e o ensino de leitura e escrita. Ao refletir sobre o modo de educação oral grega, ele é categórico ao afirmar que, para o ensino grego, só era exigida uma tecnologia: a poesia. A composição oral portava uma estética especial que contribuía para manter o público envolvido e assim preservar os grandes feitos heroicos na memória coletiva. Segundo ele, “o fim desse tipo de ensino deu lugar à eficiência mais direta dos diálogos filosóficos que buscavam mais o conceito que a imagem alegórica” (2008, p. 10).

A oralidade grega, como vimos, pautava-se em uma concepção ritualizada de linguagem e corpo. Distinguia-se dos filósofos pós-socráticos que clamavam por uma linguagem não contraditória (e dura), da palavra biunívoca, do sentido único. A oralidade compunha-se de uma polissemia pertencente à poesia, ao ritmo, à rima, à música. Em Walter Ong (1998), vemos clara a definição da cultura oralista como sendo fortemente corporal, agônica, presencial, integrativa, copiosa e dependente de uma estética da memória com suas alegorias, metáforas, antíteses, aliterações e paralelismos. Atualmente, especialmente no campo do ensino, faz-se necessário defini-la, constitui-la enquanto conceito, para que não corra o risco de ser confundida com o uso cotidiano e trivial da língua (fala).

Ainda segundo Ong, a oralidade, ao ganhar corpo na escrita, perde sua essência, que é o enlaçamento presencial, o envolvimento catártico, enfim, sua psicodinâmica de acontecimento. Na história da escrita vemos que “a passagem dessa cultura festiva para a assepsia e a solidão da cultura escrita não se fez sem perdas, dores e resistências” (1998, p. 42). O conflito entre cultura oralista e a chegada da escrita foi, segundo ele, um mal-estar milenar:

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[...] para uma cultura oral, aprender ou saber significa atingir uma identidade íntima, empática, comunal com o conhecido, “deixar-se levar por ele”. A escrita separa o conhecedor do conhecido e, desse modo, estabelece condições para a “objetividade”, no sentido de um desprendimento ou distanciamento individual. A “objetividade” que Homero e outros declamadores decididamente possuem é aquela imposta pela expressão formular: a reação do indivíduo não é expressa como simplesmente individual ou “subjetiva”, mas, antes, como uma reação encerrada na reação comunal, na “alma” comunal. Sob a influência da escrita, a despeito dos ataques feitos a ela, Platão excluíra os poetas de sua República, pois estudá-los era essencialmente aprender a reagir com “alma”, sentir-se identificado com Aquiles ou Ulisses. (1998, p. 57.)

O declínio da cultura fortemente oral grega, segundo Havelock, pôde ser visto nas invenções aplicadas à narrativa das intrigas juntamente com crescentes observações psicológicas expressas nos diálogos de palco. Para ele, preparava-se a base para uma tecnologia da palavra escrita, que tomava forma num novo tipo de sintaxe. Platão estava prestes a exigir que a linguagem tradicional da epopeia e do drama fosse remodelada e substituída por uma linguagem de análise teórica (1998, p. 27).

Ong, para subsidiar a reflexão sobre o declínio entre a cultura oral e o embate com a cultura escrita, convoca dois sentidos corpóreos: a audição e a visão. Para o autor, aquilo que entra pelo olhar isola; o som, ao contrário, incorpora. A visão situa o observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte. Como observou o filósofo Merleau-Ponty, a visão disseca, chega a um ser humano de uma direção por vez. Para ouvir, no entanto, é possível reunir o som vindo de qualquer direção ao mesmo tempo. A audição envolve o apreciador enaltecendo-o em uma “espécie de âmago da sensação e da existência. Podemos mergulhar no ouvir, no som. Na visão, não há uma maneira análoga de mergulhar em si mesmo” (ONG, 2007, p. 86).

A escrita traz o enaltecimento do sentido da visão, enquanto na oralidade o som apelava para a pluralidade da audição, a incorporação sinestésica. Nesse registro, o advento da escrita e da leitura trouxe a culminância do sentido da visão para esse processo de linguagem e de transmissão cultural, enquanto na tradição grega era a audição quem tinha papel central nesse processo, sendo o sentido mais apurado. O bardo fechava os olhos para cantar.

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em nossa construção e pelo que foi observado em nossos referenciais, apresenta-se como o desdobramento da oralidade.

Havelock, em seu texto Prefácio a Platão (1996), utiliza a análise de A República para fazer um paralelo entre as culturais orais e aquela preconizada pelo pensador em sua obra. Segundo ele, a função original da indagação dialética, proposta por Platão, era simplesmente forçar o falante a repetir um enunciado já feito, a fim de fazê-lo compreender que havia algo faltando em seu discurso, e que seria melhor reformulá-lo:

O enunciado em questão, quando relativo a assuntos importantes da tradição cultural, da ética, seria poetizado, empregando a linguagem figurativa e muitas vezes os ritmos da poesia. Era um enunciado que convidava à reflexão com algum exemplo emocionalmente eficaz e a repeti-lo vezes sem conta. Porém dizer: “O que queres dizer? Diz isso novamente”, subitamente perturbava a complacência prazerosa sentida na fórmula poética ou na linguagem figurada. (p. 224.)

Nesse sentido, a oralidade pura, em cadência, recebia da tradição filosófica que começava a se constituir uma espécie de “xeque-mate”. Era necessário obedecer a leis lógicas e precisas daquilo que saía pela boca, pelo corpo. A escrita também começa a advir como uma língua pensada, estruturada e da não contradição, aproximando-se à linguagem abstrata da racionalidade em substituição à linguagem concreta da memória oral. Para isso, segundo Havelock, Platão visa destituir o ato de identificação com a poética, introduzindo a ideia do per se (pensar por si só) diante da tarefa máxima da não contraditoriedade. O literário em sua multiplicidade, em seu a-sentido precisaria ser isolado, apurado, e tornar-se científico, ditando regras, criando máximas e perdendo o sentido. Além da linguagem, o modo de pensar “irracional” do poeta também é atacado. Concomitante a todo esse movimento de chegada da escrita, está a descoberta do conceito de psyque, de alma enquanto “espírito que pensa”, o que caracterizou uma crescente individualização dos sujeitos que até então eram coletivizados e coletivizantes.

Todo esse ideal platônico por uma fala legítima, pura, clara e precisa traz consigo também um outro modo de organizar e regulamentar as relações sociais modificadas pela linguagem, nas quais enunciado e enunciação deveriam chegar a se nivelar. Nessa direção, Havelock pontua a experiência poética como o contraponto da ilusão da precisão científica, num postulado das múltiplas possibilidades interpretativas. Nas palavras do autor:

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é porque o relato se desvia e se contradiz. A mesma coisa física parece agora ser de um determinado tamanho e, depois, no entanto, de uma dimensão diferente. Ela é tanto não é. (1996, p. 254.)

A cultura grega foi um importante cenário das disputas ocorridas na história da escrita e na construção do nosso sistema alfabético. Ela dispunha dos recursos estéticos da epopeia, do teatro e de uma refinada retórica, que deu um imenso impulso ao uso da escrita consonantal oriunda dos fenícios. Conseguiu, ao criar os símbolos para as vogais, o ajuste de que a poesia épica precisava para ser registrada na escrita. Entendemos, em nossos estudos coletivos do projeto Desafios que a volumosa tradição oral grega, ao ganhar memória fora do corpo, passa a dispensar o rapsodo, o menestrel, como portadores de textos da tradição para ganhar o mundo na forma de memórias portáteis, ou seja, da escrita. Entendemos que esse conflito ancestral sobre a linguagem ainda hoje encontra ecos em nossos preceitos alfabetizadores, afinal: qual forma de linguagem temos enaltecidos nos bancos escolares? Não se trata de hegemonia, mas de valorização de uma dinâmica de construção histórica, ao nosso ver.

A escrita, o sistema alfabético, encontrou na sociedade grega um grande estofo oral para se dinamizar. Constituindo, assim, nessa cultura, seu maior legado. Tal movimento do encontro entre oralidade e escrita, ou melhor, a dinamização que a oralidade promove ao campo da escrita é uma importante tese de nosso trabalho. Pensamos de forma crítica o ensino de leitura e escrita dirigido à criança contemporânea que, em geral, na escola, encontra seu contexto com mais exclusividade na fala cotidiana, na fala prosaica e não nos gêneros textuais mais elaborados das culturas orais, os cantos, a poesia popular, e nos textos da infância.

O tempo da oralidade grega nos remete hoje a uma palavra deslizante/brincante, à enunciação de uma palavra polissêmica, por vezes contraditória, fisgada mais pela riqueza da sonoridade do que pelo significado, mais pela perversão da gramática do que por ela própria, em que a polissemia e o desvelamento do discurso são mais importantes que o enunciado em si, na cativante performance oral de um professor. Uma oralidade que embala os corpos, numa corporalidade que pode e precisa existir na escola da infância.

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sistema alfabético, como subjetiva, conforme os estudos freudianos acerca dos sonhos e da leitura acerca das representações.

1.2 A TRANSIÇÃO ORALIDADE-ESCRITA: A IMAGEM E O RÉBUS

A passagem histórica da oralidade pura à cultura escrita contou com um longo e múltiplo percurso. O nosso célebre alfabeto, que ouvimos hoje, declamado pelas crianças em suas salas de aula, é um bom vestígio remanescente dessa história. Aspectos que vão desde a disponibilização de materiais, culturas locais, imagens e até mesmo a psicanálise freudiana contribuem para refletir acerca da dinamização dessa construção.

Ao tentar apresentar um panorama da complexa e imprecisa trajetória da criação do alfabeto, Healey (1996) aponta que muitas das construções da escrita foram resultantes da disponibilidade local dos materiais. No Egito, o papiro era o material típico para muitas finalidades. Na Mesopotâmia, empregava-se a argila mole que, depois, era secada ao sol ou cozida. Os monumentos públicos em ambas as regiões eram habitualmente de pedra. Tais materiais compuseram momentos cruciais da escrita: seu principal desenvolvimento ocorreu na superfície lisa e seca do papiro, na pedra polida e na cerâmica.

Ainda segundo Healey, o crédito da invenção do princípio alfabético não pode ser atribuído a algum indivíduo em particular. Ainda que a tradição grega tenha creditado a introdução do alfabeto na Grécia a Cadmo e aos fenícios, não se pode pensar em um inventor individual, a menos que, nas palavras de Healey: “atribuamos a invenção do alfabeto a alguém da estatura de um Newton ou um Einstein, corremos o risco de depreciar a grandeza dessa façanha” (1996, p. 251).

Para a chegada ao alfabeto, no sentido moderno do termo, alfabetos consonantais (letra sem som) foram criados. Algumas tentativas de representar as vogais (puro som) podem ser apresentadas, como por exemplo, na escrita aramaica e depois na hebraica. Certas consoantes – sobretudo h, w e y – chegaram a ser usadas, em algumas circunstâncias, para representar as vogais, isto é, as letras-vogais. Healey elabora uma sensível metáfora acerca do princípio alfabético, tal qual o temos hoje composto por consoantes e vogais. Para ele, “as consoantes são os ossos que transmitem o sentido básico, enquanto as vogais acrescentam carne ao esqueleto” (1996, p. 256).

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Havelock, “a visibilidade das vogais entre as consoantes seria apenas uma metonímia de um universo realmente perdido, o mundo dos bardos, menestréis e sacerdotes das culturas orais” (1996, p. 44), ou seja, se os símbolos para as vogais foram criados para que a escrita se adaptasse melhor à leitura em voz alta do texto poético, o acréscimo desse recurso dispensou o corpo do bardo como portador de texto e emprestou um uso amplo à voz sem corpo.

Para Belintane, se o retorno das vogais ao alfabeto representou o silenciamento do rapsodo, por outro lado abriu o caminho para uma estética em que uma nova corporalidade se projetou:

os novos efebos e seus sucedâneos tiveram que aprender a extrair os músculos, os cabelos longos e loiros, a armadura e o gládio em punho do herói Aquiles, não mais da pantomina do rapsodo, mas de um emaranhado de traços inscritos na superfície de um pergaminho enrolado (volumem). As mãos, em vez de brandir o gládio e o escudo junto com o herói, estarão ocupadas em desenrolar e enrolar o volumem. (2013, p. 64).

Healey nos mostra que, para chegar à essa mudança e à escrita alfabética, fases ideográficas e pictográficas na qual a imagem compunha centralidade no código foram essenciais. Na história dos primórdios da escrita, outro desenvolvimento fundamental é a passagem das formas pictográficas às lineares, nas quais a intenção pictográfica original foi esquecida ou se tornou acessória. Assim, as formas foram se estilizando e adquirindo vida própria, sem qualquer relação com a necessidade de representar um objeto figurado, mas compondo-se em traço, em letra.

Um exemplo disso é a construção da letra A, tal qual a conhecemos hoje. A inicial representação pictográfica do boi que foi utilizada pelos fenícios para a escrita do som (aleph) sofreu um processo de adaptações até a chegada da forma A (para o resgate da forma mais próxima da inicial, seria preciso revirar a letra e encontrar algo próximo a uma cabeça e dois chifres – ).

Escrita, imagem e psiquismo possuem uma íntima relação. Gelb (1976) destaca o quanto as mentalidades infantis e primitivas possuem o traço comum de associar seus desenhos e escritas com coisas e fatos concretos do meio em que vivem. A relação entre escrita antiga, escrita infantil, língua primitiva e pacientes com afasias aparecem também na obra de Freud. Em seu célebre texto A interpretação dos sonhos, ele encontra, a partir do interesse pela arqueologia e pelo trabalho dos decifradores das escritas antigas orientais, profícuas metáforas para a decifração de uma “escrita interior” do sujeito.

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(FREUD, 2014, p. 4). Ao adentrar a obra, temos a sensação de que a empolgação de Freud poderia ser minimizada, pois vamos nos deparando com algo mais próximo a uma “liberdade assistida” para a vida onírica, uma vez que ao longo do texto nos deparamos com a tendência condensadora dos sonhos, das representações enigmáticas a serem decifradas e de outras tantas estratégias psíquicas para escapar da censura.

Todavia, é inquestionável que no sonho encontramos a possibilidade de que a “expressão incolor e abstrata do pensamento onírico seja trocada por uma expressão imagética e concreta” (FREUD, 2014, p. 363), de modo que “verdades adormecidas” do sujeito possam ganhar forma e se tornar pistas a serem seguidas. Freud é brilhante ao captar essa aproximação entre a linguagem e o processo do sonho, pois tanto a palavra quanto o material onírico oferecem um importante disfarce para o conteúdo original e ambos carecem de interpretação. Possibilita assim, um paralelo entre o desafio colocado pela escrita enigmática dos hieróglifos e o trabalho do poeta, com a decifração exigida pelos sonhos. Segundo ele,

Quando se trata de escrever um poema rimado, o segundo verso depende de duas condições: ele deve exprimir o sentido que lhe cabe e sua expressão precisa encontrar consonância com o primeiro verso. Os melhores poemas certamente são aqueles em que não se percebe a intenção de encontrar a rima, mas nos quais os dois pensamentos selecionaram de antemão, por indução mútua, a expressão linguística que, com ligeira elaboração posterior, permita o surgimento da consonância (2014, p. 364).

O contexto também é determinativo para conseguir interpretar os sonhos de seus pacientes e ele faz certa crítica a estudiosos de sua época que se lançaram à empreitada de fazer interpretações gerais (funcionais?) para determinados elementos do sonho. Apesar de haver certo padrão assertivo no significado de algumas representações, pondera o quanto era importante o conhecimento acerca de cada caso para que a análise pudesse ter sentido. Apresenta uma série de sonhos seus e de seus pacientes no qual encontramos essa leitura singularizada e contextualizada, explorando as imagens psíquicas construídas no sonho como recurso a essa leitura.

Referências

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