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1. Capítulo 1 Exterminar, reconciliar e negar: a experiência histórica forjada na ameaça

1.3. Ameaça comunista e anistias no Brasil (1945-1979)

Desde meados dos anos 1970 foram organizados no país movimentos que clamavam por memória, pela elucidação de inverdades que ocultavam diversas violações. Em abril de 1964 surgiram as primeiras denúncias de prisões arbitrárias e torturas em navios-prisões da Marinha. Atracados em portos brasileiros, ali foram encarcerados líderes sindicais ligados a atividades costeiras e militares que se opuseram ao golpe29.

Mas foi no cenário da luta pela anistia que manifestações quanto às vidas que foram violadas cotidianamente por agentes da ditadura brasileira ganharam maior notoriedade. Esta notoriedade pode ser associada a uma combinação de fatores. Por um lado, Fabíola Del Porto (2009) correlaciona a amplitude do poder de se manifestar da sociedade brasileira pós-1974 a dois acontecimentos internos,

28O sujeito em Foucault emerge a partir da incidência de vários tipos de predicações, que produzem coerção, mas também liberdade. Essa última só aparece nos trabalhos do filósofo posteriormente, quando ele se propõe a pensar “como se tornar sujeito sem ser sujeitado” (Foucault, 1978/2008 Apud NETO, 2017) e explicaria o processo de subjetivação como resistência, que ocorre em determinado lado da batalha por memórias no interior do dispositivo da ameaça comunista (e terrorista). Ainda que a subjetivação incida na relação íntima como o si interior, conceber esse dispositivo como algo público (e coletivo) permite concebê-lo como mecanismo de assujeitamento que perdura com tamanha força que tem moldado o cognitivo e o afetivo da (des)humanização brasileira.

29Ao todo foram identificados seis navios como prisões utilizados somente no ano de 1964 pela ditadura militar: Raul Soares, Canopus, Custódio de Mello, Princesa Leopoldina, Bracuí e Guaporé (BRASIL, 2014a).

que fragilizaram a ideia de que somente os adeptos da ameaça vermelha se opunham à ditadura e, consequentemente, somente eles pagavam o preço – não discutido – desta oposição.

O primeiro foi a vitória parlamentar do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a “oposição”30 consentida, nas eleições de 1974. Desde o início da década, o partido havia assumido

uma postura mais crítica com o movimento dos autênticos, um grupo formado por parlamentares que se engajaram na defesa dos direitos humanos e no retorno do regime democrático. Junto com essa demanda, houve maior reconhecimento das exigências mais prementes da sociedade – de ordem socioeconômicas. Com as campanhas para as eleições de 1973 – para a presidência – e de 1974, o partido concentrou suas críticas no modelo econômico e nas medidas autoritárias adotadas pelo governo militar. Contrapondo uma das principais propagandas da ditadura, o MDB denunciava o tão exaltado “milagre econômico” como um desenvolvimento ilusório, que servia somente à elite e, na prática, aumentava a precariedade da vida dos trabalhadores do país. A situação era ainda agravada pela obstrução de mecanismos de cobrança e de manifestações pelos interesses sociais, devido ao caráter repressivo do Estado. Assim sendo, dirigindo-se às

ideias, slogans e bandeiras elaboradas e divulgadas pelo regime ditatorial no início dos anos 1970, tais como “Segurança e Desenvolvimento”, Brasil Potência, Brasil Grande, o milagre econômico, o discurso emedebista concentrou-se no questionamento e no descrédito do desenvolvimento propagado pelo governo. Da mesma forma, definiu os instrumentos autoritários usados para garantir a segurança nacional, indispensável ao desenvolvimento segundo os ideólogos do governo, como produtores não da ordem e estabilidade, mas da desigualdade social e da opressão (CARVALHO, 2012, p. 567).

A postura assumida pelo MDB respondia a demandas populares que, apesar de abafadas, começavam a questionar, de fato, a retórica de que os governos militares perpetuavam segurança e desenvolvimento para o povo brasileiro. O partido acabou angariando a simpatia de vários setores da sociedade, inclusive de organizações políticas clandestinas – como o PCB – e de defensores de direitos humanos.

O MDB foi um importante articulador deste movimento de despertar da sociedade brasileira. Sua oposição não era vinculada a um propósito comunista e, por isso, não era atingida pelo contrato

30É muito complicado falar em oposição de fato quando há aceite em “dançar conforme a música”, como diz o ditado. O MDB passa a atuar de forma mais enfática em sua crítica à ditadura no início dos anos 1970, quando surge o movimento dos autênticos. Cabe destacar que esse grupo reforçava a bandeira que fez parte da criação do partido, pautada na restauração da democracia plena. Em 1973, os autênticos lançaram a anticandidatura de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho à presidência da República, em claro desacordo com a política acordada no bipartidarismo e com as eleições indiretas que levavam os militares à Presidência da República. A medida tinha como principal estratégia a utilização do tempo disponível na televisão, bem como os comícios e encontros, para denunciar as atividades violentas e arbitrárias da ditadura (CARVALHO, 2012).

criado na política brasileira ainda no início do século XX. Se até o presidente militar admitia que o

país ia bem, mas o povo não, fazer este discurso ser reconhecido como bandeira de uma oposição

tolerada pelo regime e pela sociedade – amedrontada com o fantasma comunista – foi fundamental para que todo o descontentamento gerado pelos problemas sociais e econômicos refletisse na identificação do eleitor de si mesmo como sujeito político, diante do reconhecimento de que “povo sem voz é povo sem vez” (NERY, 1975. p. 98).

O segundo acontecimento foi a morte do jornalista Vladimir Herzog, que notabilizou a violência e a audácia do sistema repressivo. Herzog era vigiado pelos órgãos de repressão, sob suspeita de militância no PCB. Em 25 de outubro de 1975, compareceu voluntariamente ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI do II Exército), após ter sido convocado a prestar esclarecimentos. No mesmo dia foi divulgada nota oficial do Comando do II Exército, informando que o jornalista, após acareação, havia confessado sua participação no partido comunista e, horas depois, havia cometido suicídio nas dependências do órgão.

A nota transcrevia ainda bilhete atribuído a Herzog, que teria sido encontrado rasgado junto a seu corpo, e pelo qual o jornalista confessava seu “pecado”: “Relutei em admitir neste órgão minha militância, mas após acareações e diante das evidências confessei todo o meu envolvimento e afirmo

não estar interessado mais em participar de qualquer militância político-partidária” (grifos

nossos)31. A versão criada pelo DOI-CODI do II Exército deixa explícita a soberba dos agentes do

Estado que serviram de engrenagem do sistema repressivo. Primeiro, cria-se uma confissão tal qual um crente faz ao seu deus: confesso, peço remissão e prometo que não cederei mais ao pecado. Como se Herzog não tivesse conseguido carregar o fardo de tamanha heresia.

A narração criada pela ditadura para sua morte que, se absurda em palavras, era ainda mais inadmissível nas imagens publicadas, nos causa estranheza hoje pela falta de cuidado em se precaver de questionamentos. No entanto, vale lembrar que o caso de Herzog não foi o primeiro e nem seria o último em que as justificativas para diversas violações de direitos humanos eram, além de forjadas, negligentes e equivalentes para diferentes episódios. Esse fator demonstra a confiança da ditadura na trama da ameaça comunista como a fonte que moldava a ação (ou inação) social.

Porém, prevendo a mobilização que a morte do jornalista causaria entre as organizações de resistência e oposição32, há uma sutil precaução na nota expedida no dia vinte e cinco, na declaração

de que “as prisões até hoje efetuadas se enquadram, rigorosamente, dentro dos preceitos legais, não

visando a atingir classes, mas tão somente salvaguardar a ordem constituída e a Segurança Nacional” (grifos nossos)33. Não houve alegação explícita, mas subentende-se que não importava a

origem nem o papel na sociedade, se fosse comunista qualquer ação seria justificável.

Ainda assim, uma comoção social de tamanha expressividade – sentida no culto ecumênico para mais de oito mil pessoas em frente à Catedral da Sé e nas matérias veiculadas na mídia – não era esperada34. Imerso no processo que transcorria desde a atuação dos parlamentares de oposição, a

versão construída de forma despreocupada para seu assassinato provocou uma agitação social singular nos governos militares, tanto por sua amplitude como por suas inferências. Admitia-se nesse momento que a ditadura não fazia distinção de classes. Esse era um fato incontestável para grupos diretamente atingidos, especialmente pós-1968. Mas foi com o caso Herzog que outros setores da sociedade passaram a reconhecer que os “subversivos”, “terroristas”, “delinquentes” da luta armada – que continuavam como o mal encarnado do imaginário político – não eram as únicas vítimas do motor repressivo e violento do Estado da ordem e do progresso.

Se quisermos compreender de forma mais profunda a emergência da sociedade civil no Brasil da década de 1970 e do movimento decorrente de defesa do debate e ação em torno dos crimes do período anterior, precisamos ampliar nosso olhar. O movimento de unificação social, em torno de denúncias das violações cometidas pela ditadura, não era específico do país, pelo contrário. Nessa época, vários países da América Latina viviam experiências análogas, de agravamento da violência institucionalizada de regimes e grupos políticos militarizados. A atmosfera de medo generalizado pelas práticas de prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimento de pessoas provocou uma onda de desterro em níveis tão alarmantes que o exílio foi considerado, entre as décadas de 1960 e 1980, como uma prática generalizada, persistente e de caráter transnacional na América Latina.

Estima-se que entre 10.000 a 15.000 brasileiros rumaram para o exterior depois do golpe de 1964; na Argentina, as estimativas variam de 300.000 a meio milhão de pessoas que teriam se

32Um importante estudo sobre as denúncias veiculadas na mídia de violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado brasileiro, no período imediatamente posterior à morte de Herzog, foi realizado por Amanda Queiroz (2018), em sua análise sobre a imprensa alternativa e, especialmente, sobre o semanário O Movimento.

33Arquivo Nacional, Fundo CEMDP BR_DFANBSB_AT0_0078_0003.

34O crescimento das forças de oposição à ditadura, ou pelo menos, o crescimento da rearticulação dessas forças na cena pública, desencadearia, com a morte do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, – em condições análogas a de Vladimir Herzog – no afastamento do general Ednardo D’Ávila Mello da chefia do II Exército (BRASIL, 2014c, p. 1811-1816).

deslocado do país desde 1975; no Chile, no período em que Augusto Ugarte Pinochet comandou a ditadura no país (1973-1990), foi levantado o número de 700.000 exilados, sendo que destes pelo menos 200.000 foram por razões políticas35; no Uruguai, os números indicam que no começo da

ditadura o número de exilados cresceu exponencialmente, com 64.687 uruguaios partindo para o exílio, em 1974, e 40.984, em 1975 (SZNAJDER; RONIGER, 2013).

Ao mesmo tempo em que os movimentos de contestação cresciam dentro do país, incendiados pelos discursos em defesa da anistia, no exterior era organizada uma rede transnacional de denúncia às graves violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras latino-americanas. Após o golpe no Chile, em 1973, para onde inúmeros exilados – inclusive brasileiros – rumaram após a instalação de ditaduras em países vizinhos, instalou-se um processo de desesperança quanto à derrubada das ditaduras em seus próprios países. O governo de Salvador Allende funcionava como um resquício de esperança, do qual estrangeiros podiam participar efetivamente do processo político36.

O golpe no Chile também desencadeou a sucessão de experiências exilares, o “exílio em série”, isto é, “o subsequente e às vezes recorrente deslocamento de um lugar do exílio a outro, dado que os países nos quais os indivíduos se refugiam restringem sua liberdade de ação” (SZNAJDER, 2011, p. 77). Esse novo caráter do deslocamento, que o tornou também cada vez mais massivo, foi identificado por Mário Sznajder como o propulsor da formação de comunidades de conacionais no exterior e, consequentemente, de redes de solidariedade de caráter transnacional. Conforme o autor, esta dimensão e luta internacional “concedeu poder aos exilados em termos de influência e ressonância de sua voz na arena global, afetando as políticas dos países expulsores e redefinindo o papel e o impacto das comunidades de exilados” (SZNAJDER, 2011, p. 89).

Essa nova disposição não passaria despercebida aos próprios exilados, como testemunha o sociólogo Herbert José de Souza, mais conhecido como Betinho.

O exílio vai abrindo os caminhos para a percepção de um entendimento internacionalista e que tem reflexo imediato sobre a compreensão do Brasil. Os ângulos de percepção sobre o Brasil mudam e se começa a perder a visão “brasilocêntrica” e perceber o Brasil como parte de um sistema. Isso, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista político, tem uma importância fundamental (CAVALCANTI; RAMOS, 1976, p. 109).

35Estas estimativas foram realizadas pela Oficina Nacional del Retorno. Mas os autores identificaram também que o Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía (Celade), órgão da Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), estimou que no período havia 500.000 chilenos fora do país, sendo que, nos anos 1980, esse número pode ter chegado na casa dos 2 milhões (SZNAJDER; RONIGER, 2013).

36Sobre as vivências e lutas de brasileiros e brasileiras no exílio, consultar: COSTA, 1980; NEVES, 2007; ROLLEMBERG (1999, 2007a, 2007b); SILVA, 2015; SZNAJDER, 2011.

Nesse sentido, a emergência da esfera pública internacional garantiu a ressonância da voz de exilados latino-americanos, redimensionando a oposição às ditaduras e redefinindo o impacto das denúncias contra graves violações de direitos humanos. A integração das comunidades de exilados produzia a ampliação das fronteiras nacionais, no que Hebert José de Souza ressaltou sobre a transformação da “visão brasilocêntrica” no entendimento do Brasil “como parte de um sistema”.

Tanto é que foi da atuação conjunta dessa comunidade de exilados que o Tribunal Bertrand Russel II foi estabelecido para investigar as violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras instaladas no Brasil, Chile e demais países da América Latina. A primeira sessão foi realizada na cidade de Roma, em 1974, sendo primordialmente para tratar sobre os crimes políticos no Brasil. Importante articulador do Tribunal e testemunha das violações, Miguel Arraes, que havia sido cassado após o golpe de 1964 e estava exilado, denunciou a prática sistemática de tortura da ditadura brasileira e sua insistência em negar as violações cometidas pelos agentes dos órgãos de repressão.

No final dos anos 1970, a criação de Movimentos Femininos e Comitês Brasileiros pela Anistia também foi impulsionada pelas manifestações vindas do exterior. Do exílio, aqueles que tinham vivenciado a derrota da luta armada começaram a ver na bandeira da anistia a possibilidade de derrubada do regime. Esta luta teve papel agregador, pois, permitiu que estivessem lado a lado, pela primeira vez, militantes de diferentes orientações políticas, que encontraram no movimento pela anistia “um modo de convivência” (RODEGHERO, 2014, p. 179).

O movimento pela anistia tem sido referenciado como principal fonte de articulação conjunta dos diversos grupos de oposição à ditadura militar. A demanda e a união de forças evocadas pela anistia eram frutos tanto da desilusão com o desmantelamento das organizações de resistência, quanto do alcance do discurso por direitos humanos em âmbito transnacional. Além disso, o empoderamento social promovido pelo movimento está diretamente relacionado com a legitimidade alcançada em referências históricas análogas. O passado como espaço de experiência foi reverenciado em cartazes e panfletos da luta pela anistia nos anos 1970, que a associavam graficamente à anistia de 1945, decretada após o fim da ditadura varguista.

FIG. 4 - Cartaz relacionando a anistia de 1945 com o movimento de anistia de 1975, do MFPA.

FIG. 5 - Cartaz do MFPA “Memória à mulher brasileira na vitoriosa luta pela anistia geral – 1945”.

Fonte:Acervo Memorial da Anistia – Coleção Cartazes.

Estes foram cartazes utilizados a partir de 1975, pelas mulheres organizadas no Movimento Feminino pela Anistia. Percebemos que, em ambos, há uma correlação explícita ao movimento de 1945 e às conquistas do mesmo com a nova luta travada pela sociedade brasileira. Essa correlação remetia diretamente à dinamicidade social e política que permitiram a conquista da anistia há trinta

anos. Ainda que os argumentos daquela época divergissem em questões, especialmente relacionadas à figura de Getúlio Vargas, havia um certo consenso das necessidades de uma mudança profunda na cena política, possível pela luta conjunta em torno de liberdades.

No Manifesto de criação do grupo, liderado pela advogada Therezinha Zerbini, era relacionada a necessidade da anistia a um “objetivo nacional” referenciado em outras épocas da nossa história: a “união da Nação”. Nos discursos posteriores da advogada, a correspondência entre anistia e reconciliação nacional ficaria cada vez mais evidente, sempre justificada pela tradição de anistia que existia no Brasil. Argumentava-se que as resoluções de conflito no passado dependeram da decretação de anistias, que garantiram a pacificação nacional.

Esta concepção de anistia como promotora da reconciliação está pautada no esquecimento das feridas do passado, pois somente com a “desmemória plena”, como diria Rui Barbosa, a sociedade seria capaz de seguir em frente (RODEGHERO, 2009). Essa associação adotada pelos MPFAs no início de sua trajetória pode soar estranho hoje, pela correlação quase natural que tendemos a fazer quando pensamos em enfrentamento à ditadura e militância por memória e verdade. Porém, há duas motivações muito persuasivas nesse entendimento. Primeiro, o já mencionado fator da tradição: situar a luta pela anistia como uma reação autêntica da história brasileira a empoderava por seu elemento identitário. Segundo, a representação do Brasil como uma família que precisava ser pacificada foi uma das principais noções construídas pelas elites brasileiras, como forma de manipulação e legitimação do golpe e do autoritarismo instalado em 1964.

Na prática, o discurso dos MFPAs acabou se aproximando do que convencionalmente foi consolidado sobre anistia pelos juristas brasileiros, especialmente pela doutrina elaborada por Rui Barbosa. Poderíamos supor que tudo não passava de uma estratégia para conseguir apoio da população, não se vinculando a argumentos que ameaçavam a retórica anticomunista. No entanto, em entrevista recente, Therezinha Zerbini declarou que não havia pretensões políticas, partidárias, “stalinistas” e, nem mesmo, feministas no movimento. Seu objetivo sempre foi o de mobilizar um grupo de mulheres “decentes”, “sérias”, cidadãs e democratas, uma “sociedade civil organizada” (DUARTE, 2019). Nesse sentido, exaltava-se a figura das mães pela democracia e pautava-se na conservação do sentido tradicional de família, que servia também para representar o país. Essa concepção é corroborada pela fundadora do movimento ao afirmar enfaticamente que suas pautas não eram feministas, pelo contrário. Zerbini relata que seu primeiro conflito como organizadora do MFPA não foi com os militares, mas sim com “feministas de São Paulo”, que queriam se apropriar do movimento. E isso a levou a protestar: “Não, vocês estão equivocadas. A luta do Movimento

Feminino pela Anistia é uma luta de cidadania, da mulher cidadã. Não tem nada de feminista. Nós não estamos lutando por avanços. Depois cada um vai fazer o que quiser” (DUARTE, 2019).

Ainda que houvesse um afastamento equivocado de outras demandas – devido à inerência bem estabelecida do comunismo com o degenerado, processo que também começava a ocorrer com o feminismo – a mobilização dos MFPAs em torno da retórica direito a ter direitos teve papel fundamental para a rearticulação social em torno de uma consciência nacional comum que, por ora, não excluiria totalmente os adeptos do comunismo. Fernando Gabeira esclarece bem essa emergência da união na luta contra a ditadura, em depoimento de 1979, quando diz não conhecer

em todo o período de militância na denúncia da ditadura brasileira no exterior nenhuma palavra de ordem que tenha nos unido tanto quanto a anistia. De repente, e pela primeira vez, sentávamos todos juntos [...] Não sei se vocês perceberam o alcance do que achamos. Nós achamos muito mais do que uma palavra de ordem. Achávamos um modo de convivência, de ação comum, enfim a maturidade política que em certos momentos faltou na nossa história…Éramos gente com opiniões diferentes que compreendeu que não se faz nada apenas com as pessoas que pensam de forma idêntica e sim que é preciso saber organizar as diferenças em torno de uma luta unitária (GABEIRA, 1979, p. 11-12).

É preciso lembrar que com o tempo o conceito de anistia foi adquirindo diferentes sentidos, e