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D ESENCONTRO ENTRE PASSADO E PRESENTE : A PERDA NA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA

5. A ameaça na doença e na morte

A ameaça da AIDS, com a presença concreta da morte, é uma constante nas reflexões da protagonista de “Dama da noite”. A liberdade sexual vivida por sua geração garantiu-lhe uma sensação de liberdade incondicional, mas que culmina na contenção física, concretizada na doença e na morte.

Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. [...] Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Suponho que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar ao lado, beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e ainda por cima adoro veado. (ABREU, 1988, p. 94-95)

A ameaça do “vírus do amor” cria uma ambiguidade, no texto. Por um lado o amor está relacionado ao sexo, às diferentes experiências sexuais e às várias sexualidades. É o amor que, por meio do corpo e do afeto, pressupõe um envolvimento com outra pessoa. Por outro lado, a liberação sexual era considerada uma forma de afirmação da liberdade individual. Colocá-la em prática é uma questão de valorização de si mesmo, de amor a si mesmo. A ameaça do vírus do amor atinge os campos afetivo e sexual e inibe o sujeito em seu desejo de envolvimentos sexuais e pessoais, levando-o a um consequente isolamento. Nessa perspectiva, o vírus do amor ameaça a interação eu–outro. Mas o vírus do amor ameaça o sujeito, também, em seu amor por si próprio, porque o priva de pôr em prática sua liberdade individual. O vírus acaba sendo um elemento castrador e opressor, que traumatiza a geração abalada por sua presença e pela ameaça de morte iminente. Como disse Caio Fernando Abreu em sua crônica “A mais justa das saias”, escrita em 25 de março de 1987 para o jornal O Estado de São Paulo, “A primeira vez ouvi falar em aids [...] ‘Não é possível’ – pensei – ‘Uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca aos homossexuais?’”. (ABREU, 2006, p. 58).

Mas o trauma provocado pela ameaça do vírus não afeta apenas a geração que viveu efetivamente a chamada liberação sexual. Ele se torna uma espécie de herança psicológica, que impõe medo e que oprime os jovens da geração seguinte, identificados com o rapaz, interlocutor da protagonista. Essa geração sofrerá as mesmas consequências de ausência de amor – amor como envolvimento com o outro por meio do afeto e da relação sexual e amor por si mesmo. Na mesma crônica, Abreu adverte para as consequências do medo constante do vírus: “Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte” (ABREU, 2006, p. 59). Essa ameaça constante se revela na protagonista:

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. (ABREU, 1988, p. 95)

Neste fragmento, a dama da noite apresenta seu lado sombrio e ameaçador. Os termos “contaminar”, “pestilento” e “vírus” remetem à ameaça do vírus da Aids, do qual a protagonista pode ser portadora, uma vez que já havia revelado ter um modo de vida suscetível à contaminação. A ameaça se constrói por meio de um ambiente sombrio e inebriante, com as expressões “perfume venenoso e mortal”, “flor carnívora e noturna”, “arrastar para o fundo do seu jardim”. São termos que fazem referência à planta – dama da noite –, mas que conotativamente remetem à ameaça que a protagonista pode representar por ser potencialmente portadora do vírus mortal. Cria-se um jogo com o nome “Dama da noite”, em que se lê a figura feminina noturna, sedutora e ameaçadora.

A ameaça concretiza sua violência na morte. A protagonista dá a entender que convive com a morte ou por ser portadora do “vírus do amor” ou por presenciar a morte de outras pessoas:

Tem uma coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o corpo fica assim que nem uma cadeira. Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio. Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca de amendoim jogada na areia, é assim que a gente fica quando morre, viu, boy? (ABREU, 1988, p. 96)

A maneira de a protagonista se referir à morte para o rapaz revela um traço irônico, mas, ao mesmo tempo, angustiante. A angústia se dá pela expectativa que se cria, ao se encarar a pessoa morta, de que haveria algum impulso de vida presente naquele corpo. A ironia, por sua vez, se dá na frustração de reconhecer da forma mais dura possível que a pessoa morta não passa de um corpo sem alma, sem vida. A comparação do corpo com uma cadeira instaura o elemento estranho que provoca a ironia na forma de encarar a morte. Na

comparação quebra-se a expectativa de se encontrar um impulso de vida, deparando-se com um objeto inanimado e estático.