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D ESENCONTRO COMO DIFICULDADE DE COMUNICAÇÃO E DE TROCA DE EXPERIÊNCIAS

4. A frustração no querer dizer

No conto “Para uma avenca partindo”, o narrador protagonista – principal, plano com tendência a redondo – despede-se do personagem com quem tem ou teve um relacionamento. O outro personagem – secundário, plano tipo – é uma moça que se prepara para entrar em um ônibus, o que sugere que ele mudará de cidade ou fará uma longa viagem. O conto é constituído de um monólogo do narrador protagonista, que tenta dizer algo importante para esse outro alguém, sem, no entanto, conseguir fazê-lo efetivamente. O texto se constitui, desse modo, da exposição das tentativas fracassadas de expressão dos sentimentos e pensamentos do narrador protagonista. Sua fala ao outro personagem não se concretiza, mas o monólogo do narrador protagonista constitui um texto narrativo.

Os pensamentos do protagonista se dividem em duas preocupações principais. A primeira preocupação diz respeito à reflexão sobre como se relacionam palavra e vivência.

Subentende-se a preocupação de como a palavra faz a mediação da experiência amorosa, na relação eu–outro. Sua segunda preocupação diz respeito à reflexão sobre o sentimento amoroso como construção discursiva e como projeção de uma expectativa sobre o outro.

Percebe-se, desde o princípio do texto, que o narrador protagonista tenta expressar algo sobre seus sentimentos para a outra pessoa, mas a única coisa que consegue é rodear o assunto. O personagem sente dificuldade de delimitar o objeto da fala:

– Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? (ABREU, 2001, p. 102)

No fragmento acima, que dá início ao texto, o narrador protagonista se questiona sobre os pressupostos da comunicação: o que dizer? Como dizer? Como o dito será recebido pelo meu interlocutor? Percebe-se a elaboração de uma fala entrecortada. Por meio dela, o narrador protagonista questiona sua própria habilidade de se comunicar e, também, suas próprias intenções e objetivos na comunicação. Inicia-se, desse modo, um processo em que o personagem tentará, a todo momento, dizer algo que não será dito, mas que se expressará nas marcas daquilo que não é dito. Ao dizer que ele quer dizer algo, ele não o diz, mas ao não dizer esse algo, o não-dito se faz presente. É nesse não-dito que o protagonista comunica as suas angústias, que ele expõe seu sofrimento em relação à partida do outro e que ele problematiza a veracidade de seus sentimentos pelo outro.

O processo tem início com o questionamento do protagonista acerca da veracidade de seu relacionamento com o outro personagem. Para o protagonista, para que algo exista verdadeiramente, esse algo deve ser verbalizado: “[...] se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver” (ABREU, 2001, p. 102). Fica sugerido, em sua fala, que há duas dimensões do viver: a

da existência, verbalizada, e a da imaginação, não verbalizada. Há, ainda, uma terceira dimensão, em que se vive uma situação no plano concreto sem verbalizá-la. Essa última, no entanto, é de menor valor para o protagonista, pois nesta dimensão, as vivências “não foram existidas completamente”, uma vez que não foram verbalizadas. Para o protagonista, a verbalização é fundamental para conferir ao vivido um caráter de realização efetiva da ação. Segundo Hannah Arendt, “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original” (ARENDT, 2008, p. 189). A narração e a expressão de si pela verbalização são constitutivos da subjetividade. Ao deparar-se com a dificuldade de dizer algo que faz parte de sua própria experiência, o protagonista se depara com a fragilidade de sua própria constituição enquanto sujeito. Ainda segundo Arendt, a ação humana depende da verbalização para existir plenamente, pois a ação depende de ser tornada pública, revelando seu agente:

[...] desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito [...] Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras [...]. (ARENDT, 2008, p. 191)

Trata-se, para o protagonista, da distinção entre o vivido efetivamente e o que é projetado pelo imaginário. A palavra assume valores diferentes em relação a cada uma de tais vivências. Para o que foi efetivamente vivido, a palavra dita seria entendida como registro da situação vivida. Já para o que foi projetado, a palavra, ainda que não verbalizada, seria, justamente, o único meio de concretização da vivência, uma vez que ela não se realiza enquanto ação fora da palavra. A satisfação de ambos os personagens, na relação, de acordo com o protagonista, depende da verbalização da situação vivida, uma vez que a verbalização conferiria, para o protagonista, o caráter de verdade à situação narrada. Tal satisfação,

portanto, só será possível por meio da exposição de seus sentimentos, o que, contraditoriamente, não ocorrerá. Esta preocupação do protagonista, em verbalizar a própria experiência, está relacionada à crença de que a aproximação entre as pessoas é um bem e de que esta aproximação se dá por meio do compartilhamento de uma experiência com a verbalização do que se sente, do que pensa ou do que se vive no dia-a-dia.

Por outro lado, o narrador protagonista admite a possibilidade de que nunca será possível dizer tudo o que se quer dizer, bem como não será possível vivenciar tudo o que se quer vivenciar, “[...] existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor, pensei sim, não, pensar propriamente não, mas eu sabia” (ABREU, 2001, p. 102-103). Coloca-se o problema de que quando se diz alguma coisa, pensa-se, em seguida, em outra coisa que não foi dita e que deveria ter sido dita para que a compreensão do que se disse fosse completa. Sempre que se toca em um ponto da experiência vivida por meio da linguagem, há uma face nova que surge, e que não é dita, e assim por diante, infinitamente. Instaura-se um conflito entre linguagem, silêncio e vivência, pois, para o protagonista, por um lado, a vivência plena de algo ocorre quando o fato é verbalizado; por outro, a fala compreende, também, a presença do não-dito, do não verbalizado, do apenas imaginado e/ou fantasiado. Esse campo do imaginado e/ou fantasiado admite o que é vivido em segredo e que é, portanto, silenciado para a experiência comum. Logo, o não-dito ou o silenciamento também comporta a vivência. Por fim, o que é dito/vivido nunca o é de modo pleno. Há sempre, nele, uma falta ou ausência ou insuficiência.

Outro problema colocado pelo narrador protagonista para o seu dizer é a necessidade que ele tem de que seu interlocutor, no caso, a mulher com quem ele se relaciona, compartilhe das mesmas vivências, para que sua fala compartilhe de um referencial comum para ambos: “[...] você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o

mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria” (ABREU, 2001, p. 103). Para o protagonista, apenas o compartilhamento de vivências comuns garante a compreensão plena de suas palavras. Estas vivências comuns também reforçam os laços afetivos da relação eu–outro, garantindo uma maior aproximação e, supostamente, um melhor entendimento entre ambos. No entanto, não é possível garantir que a verbalização de tais vivências tenha ocorrido efetivamente no conto, pois fica sugerido que a fala do narrador protagonista não tenha sido efetivamente verbalizada para o outro personagem. Com isso, temos o questionamento da possibilidade de troca de experiências entre os personagens, na relação.

O protagonista também se depara com uma diferença entre ele e o outro personagem que, novamente, questiona sua relação: “[...] nossa diferença fundamental é que você era capaz de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, de não sentir medo desse mais fundo” (ABREU, 2001, p. 103). A este respeito, percebe-se que, para o protagonista, sua companheira vivencia a banalidade das experiências, enquanto que ele atribui grande importância àquilo que vivencia. Isso se verifica na maneira como ambos lidam com a linguagem. O narrador protagonista está imerso em um monólogo, no qual ele dá vazão aos seus sentimentos mais íntimos, ainda que não se tenha certeza se ele os expõe efetivamente em um diálogo, verbalizando-os, ou se apenas imagina explicitá-los. Por outro lado, percebe-se que sua companheira faz pequenas intromissões no pensamento ou na fala do narrador protagonista para perguntar sempre sobre coisas banais, cotidianas, interrompendo o fluxo dos pensamentos ou da fala do protagonista. Isso se verifica em momentos como “[...] falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei por que todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa” (ABREU, 2001, p. 102).

Passagens como essa demonstram que os personagens não compartilham de interesses comuns, no presente, revelando a situação de desencontro entre ambos.

O protagonista enfrenta dificuldades, todo o tempo, na tentativa de expor seus sentimentos e pensamentos. Além dos vários rodeios do protagonista para tentar verbalizá-los, há, ainda, uma dificuldade concreta que impede a fala, explicitada na rouquidão: “[...] nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa da garganta que falo, é de uma outra, de dentro, entende?” (ABREU, 2001, p. 103). A rouquidão metaforiza a dificuldade do protagonista em fazer uso preciso e objetivo das palavras para expressar-se. Percebe-se uma rouquidão que, segundo o protagonista, “vem de dentro”, ou seja, uma rouquidão que impede a verbalização clara e objetiva dos seus sentimentos e pensamentos, silenciando-os, uma vez que não podem ser plenamente compreendidos.