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Capítulo 3: Vivendo o tempo de não trabalho e construindo territorialidades

4.4. Amizades entre pares

A ausência de amásios(as), familiares e padrinhos, contudo, não deve ser confundida com isolamento afetivo, pois podia ser sanada pelas amizades construídas no cotidiano da escravidão, nos vários espaços comumente frequentados pelo escravo urbano, seja nas ruas e tabernas, nos ambientes de trabalho ou até mesmo em casa, com a vizinhança. Ana Regina Simão, estudando a escravidão em Pelotas, afirma algo que também é válido para Belém: “embora o parentesco entre cativos urbanos tenha sido um referencial importante, o ‘parentesco contruído’ entre a população cativa através de laços de solidariedade fez parte do cotidiano da sociedade escravista brasileira”, criando “laços que, em grande parte, proporcionaram ao trabalhador escravizado um relativo ‘conforto’ social”.76 Mais uma vez, veremos a essencialidade da sociabilidade na vida do escravo urbano, capaz de melhorar sua sorte ou mudar o destino de sua vida.77

Desta feita, enquanto uns, em momento de aflição, dificuldade ou carência afetiva, recorriam a familiares e companheiros amorosos, outros simplesmente batiam na porta do vizinho mais próximo. Graças ao seu vizinho, Cecília (escrava de João Coelho) escapou de ser espancada por seu ex-amásio, Boaventura (escravo de Eduardo de tal). Nessa história, porém, os protagonistas são outros e o enredo, por mais que se assemelhe ao das brigas de casais outrora abordadas, trata de uma briga entre vizinhos. Foi no dia 23 de março de 1883, uma “sexta-feira da paixão”, na Rua de Santo Amaro (atual Rua Veiga Cabral),78 entre três e quatro horas da tarde, que tudo aconteceu. Da denúncia prestada pelo promotor, sabemos que, naquele dia, Boaventura decidiu buscar na casa de sua ex-amásia uns objetos que afirmava pertencerem à sua mãe, levando em sua companhia a atual amásia, Francisca Josefina de Souza. Este simples ato já indicava a iminência de um conflito, e o fato de todos morarem na mesma rua (Cecília na Rua Santo Amaro, Boaventura e Francisca na

76 SIMÃO, op. cit., p.125.

77 BEZERRA NETO, 2001/2002, op. cit., p.321.

78 CRUZ, Ernesto. Ruas de Belém: significado histórico de suas denominações. 2.ed. Belém: CEJUP, 1992, p.43.

esquina daquela rua com a Estrada de São José)79 facilitou a ação. A escrava não anuiu à exigência de Boaventura, que, em reação, quis lhe dar bordoadas. Desesperada, a fim de se livrar das pancadas, Cecília procurou abrigo no quarto de Manoel José. Envolvendo-se involuntariamente naquele conflito, Manoel “tratou de obstar ao criminoso intento de Boaventura e, fazendo ver a este que devia ser respeitado o dia da Paixão, conseguiu proteger a Cecília”. Mas, Boaventura estava acompanhado e sua companheira não ia deixar barata aquela história. Quando já desistia de seus intentos, Francisca Josefina disse “que se ele Boaventura não ‘botasse o ferro’ em Manoel José, ela Josefina o faria, porque era ‘fêmea de porrete’”. Ambos armados de navalha, partiram pra cima de Manoel, que, encontrando uma faca caída pelo chão, conseguiu se esquivar de Boaventura e acabou atingindo Francisca.80

Manoel José assumiu sua culpa no processo, mas afirmou ter agido involuntariamente e em legítima defesa, o que, por estranho que pareça, foi confirmado por Boaventura. Segundo este último, antes do conflito, Cecília não apenas se recusou a entregar os objetos que ele havia solicitado, mas também passou a mão em um pedaço de lenha e um terçado, dizendo o seguinte: “não sei aonde estou que não te meto esta acha de lenha”. No calor do momento, tais palavras foram suficientes para desencadear em Boaventura uma reação à altura, levando-o a querer forçar a porta do quarto de Manoel para retirar Cecília de sua proteção e enchê-la de bordoadas. Enfim, passada a turbulência de sentimentos que o haviam dominado naquela sexta-feira da Paixão, o escravo reconheceu seus exageros, dizendo em seu interrogatório que “o referido Manoel José Bahia de Lima não fez mais do que defender-se, porque foi agredido tanto por ele (...) como por sua dita amásia Francisca Josefina de Souza”.81 Boaventura e Manoel José, talvez, no passado, tivessem sido companheiros de trabalho ou até mesmo amigos, suposição que, no entanto, ultrapassa o que foi dito por réus, vítimas e testemunhas do processo-crime. De qualquer forma, acredito que não foi por acaso que Cecília correu para o quarto de Manoel.

Joana Maria Feliciana, 30 anos de idade, lavadeira, disse que era amásia do réu Manoel, com quem morava, à época do conflito, numa “casa de muitos quartos”. O

79 Atual Avenida 16 de Novembro. Chamava-se Estrada de São José “por ser o caminho que conduzia ao convento de S. José, construído no século XVII, pelos capuchos da Piedade”, recebendo o atual nome em homenagem à adesão do Pará à República. Cf. Idem, Ibidem, p.85.

80 CMA, Fórum Criminal, 1º Distrito Criminal, Autos crimes de homicídio, 1883. 81 Idem, Ibidem.

depoimento de Joana, malgrado não apresentar nenhuma novidade quanto ao conflito – sobretudo porque, grávida, desmaiou no decorrer da luta, acordando já com a notícia de que seu amásio tinha sido preso –, revelou algo que talvez tenha sido o elemento desencadeador da ira de Francisca: “Boaventura, apesar de ser amasiado com Francisca Josefina, ia muitas noites dormir com Cecília”. Enfim, o resultado de toda essa história não foi nada bom para a “fêmea de porrete” Francisca, que saiu da casa de Manoel com as tripas de fora e, dias depois, acabou falecendo.82

A escrava Cecília, Manoel José, o escravo Boaventura, Francisca e os demais indivíduos que compunham aquela vizinhança, aproximados em razão da moradia (característica dos grupos menos abastados daquela sociedade)83, convivendo diariamente, partilhavam sentimentos, problemas, informações diversas, metendo-se com frequência uns nas vidas dos outros, arranjando amigos e inimigos, fazendo e desfazendo relações de caráter consensual. Independente da durabilidade dos laços construídos com a vizinhança, aqueles estranhos conhecidos poderiam, em momentos de adversidades, mostrar sua utilidade.

Na briga entre Maria Gregória e o escravo Cândido das Neves, se não fossem os vizinhos, ela provavelmente teria apanhado mais e por mais tempo. Depois de acertada na testa com uma lata cheia de açúcar e na orelha com um murro, Maria Gregória pediu socorro “em altas vozes”, sendo acudida por seus vizinhos de quarto (o casal morava numa casa de cômodos) e residência. Anna Florinda da Conceição, uma de suas vizinhas de quarto, ouviu toda a confusão e, quando do grito de socorro, abriu a porta de seu quarto e foi logo acudir a vizinha. Severo Rosa da Conceição, um carpina que morava no “quarto apegado à sala” não ouviu a altercação, pois só acordou com os gritos de socorro. O mesmo se deu com os demais vizinhos de quarto.84

O círculo de amizades de um escravo poderia, com frequência, alcançar outras dimensões, estendendo-se para além da vizinhança, pelas ruas e tabernas. João, por

82 Idem, Ibidem.

83 Cristina Cancela coloca que “a proximidade, a convivência em uma mesma casa ou quarto e o fracionamento familiar são algumas das realidades encontradas na documentação que ajudam a compreender as características dessa moradia e de suas particularidades”, sendo que essa fluidez dos espaços de morada da população pobre não se dava apenas na relação da família com a rua e a vizinhança, “elas podiam ser verificadas no interior de domicílios compostos por casais, com ou sem filhos, parentes, agregados, amigos e companheiros de trabalho. Múltiplos foram os arranjos encontrados nessas residências (...)”. Cf. CANCELA, op. cit., pp.183-186.

exemplo, aquele escravo que saiu para comprar cigarros e, depois de uma “luta de braços”, acabou arrumando uma briga numa taberna de esquina, tinha um círculo de amizades que ultrapassava os limites da casa em que morava, incorporando nele diversos indivíduos, como portugueses, cearenses e libertos.85 Embora, em seu caso – como no de Boaventura e Cecília –, o fato de morar longe de seus senhores pudesse ter facilitado a expansão de sua sociabilidade para o espaço da rua e, casualmente, para as tabernas de esquinas, penso que não acontecia diferente com os escravos que residiam sob o mesmo teto que seus senhores – sendo Camilo um caso emblemático nesse sentido: morava com seu senhor, tinha alugado um quarto para sua amásia (com quem ocasionalmente dormia) e contava até com um cabo do Corpo de Polícia em seu círculo de amizades.86

A labuta diária também unia indivíduos e propiciava a construção de fortes laços de amizade. Compartilhar das mesmas condições de trabalho (e, logicamente, das mesmas formas de sobrevivência), submeter-se ao mesmo tempo controlado e às mesmas regras de trabalho, alimentar-se de maneira semelhante (no mesmo horário, comendo a mesma comida), eram situações capazes de aproximar as diferenças, conglomerar interesses dissonantes.87 Afora o que foi mostrado no Capítulo 2 – mas acabou não sendo analisado por esta perspectiva –, dois casos trabalhados no presente capítulo são emblemáticos destes laços surgidos no ambiente de trabalho. Manoel Antonio da Cruz e o escravo Cornélio (que fingia ser livre e se chamar João Manoel Martins), à época da briga entre este último e Avelino, eram bons amigos, amizade que provavelmente surgiu no bojo de condições de vida em comum, entre as quais o trabalho com a seringa e o fábrico da goma elástica.88 O segundo caso corresponde ao inquérito policial que investigou os ferimentos causados por Leopoldino na escrava Leandra, sua amásia; documento que traz à tona uma suposta

85 CMA, Fórum Criminal, 1º Distrito Criminal, Ferimentos Leves, 1888.

86 Sobre a sociabilidade de escravos com outros segmentos sociais nas ruas e tabernas de Belém, no século XIX, cf. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Daquilo que se come: uma história do

abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-

Graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2009 e PALHA, Bárbara da Fonseca. Escravidão negra em Belém: mercado, trabalho e liberdade (1810-1850). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.

87 Como aponta Marcelo Badaró Mattos, “a experiência do trabalhador escravizado nas ruas, muitas vezes ‘vivendo sobre si’, bem como a convivência com os trabalhadores livres, frequentemente compartilhando as mesmas ocupações e buscando os mesmos ‘clientes’ levou, com certeza, ao surgimento de variadas formas de solidariedade em redes maiores ou menores de sociabilidade”. Cf. MATTOS, Marcelo Badaró. “Trabalhadores escravizados e livres no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX”, in Revista Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n.12, pp. 229-251, 2004, p. 235.

amizade do réu com Justino e Vitório (o primeiro frequentava sua casa e o segundo, quando Leopoldino foi preso, levou para ele um cafezinho no Quartel de Polícia). Neste caso, ao que parece, a amizade também surgiu no ambiente de trabalho, pois Leopoldino era capataz de uma das companhias de trabalhadores da cidade, na qual os escravos Justino e Vitório talvez já tivessem trabalhado.89

Outro vetor de sociabilidades eram as irmandades religiosas. Para Márcio Couto Henrique, as irmandades eram espaços privilegiados de socialização. Inspirado pelos escritos de Edward Thompson, o autor enxerga as irmandades escravas do Pará oitocentista “como espaços de atuação cultural e política, onde os negros escravos construíram certa identidade de interesses e experiências sociais, definindo a si próprios em suas ações e em sua consciência em relação a outros grupos de pessoas”. Márcio Couto apresenta algumas destas irmandades que compunham o cenário paraense durante o século XIX, como a Irmandade de São Raimundo Nonato (“a mais popular das associações religiosas paraenses da segunda metade do século XIX”, analisada mais detidamente), a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a de Santo Elesbão e Santa Efigênia, a de São Benedito, entre outras situadas no interior da província.90 Segundo os autores do livro

Cidades Negras, “para além do fervor religioso, surgiram nesses locais novas regras de

sociabilidade, redefiniam-se identidades e constituíam-se alianças em torno de festas, procissões, assembleias, funerais, missas e auxílio mútuo”.91 De toda a documentação consultada na presente pesquisa, encontrei algumas informações referentes a apenas uma irmandade que aparenta ter sido composta por escravos, a “Irmandade do Divino Espírito

89 CMA, Fórum Criminal, 1º Distrito Criminal, Autos crimes de ferimentos, 1878.

90 HENRIQUE, Márcio Couto. “Irmandades escravas e experiência política no Grão-Pará do século XIX”, in

Revista Estudos Amazônicos. Belém, v.4, n.1, pp. 31-51, 2009. Sobre as irmandades de escravos no Pará,

destaco os seguintes trabalhos: SALLES, Vicente. O negro na formação da sociedade paraense. Textos

reunidos. Belém: Paka-Tatu, 2004; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Escravos e Senhores nas Irmandades

religiosas na Amazônia do século XIX”, in Amazônia Ipar. S/L, v.5, n.3, pp.28-50, 2001; HENRIQUE, Márcio Couto. O Senhor do céu não é o senhor da terra: a experiência religiosa dos escravos nas

irmandades paraenses, 1839-1889. Monografia de Conclusão de Graduação – Departamento de História,

Universidade Federal do Pará, Belém, 1997; PINTO, Maria Roseane Corrêa. Organizando a vida,

preparando a morte: cotidiano, mortes e enterramentos de negros em Belém (1850-1888). Monografia de

Conclusão de Graduação – Departamento de História, Universidade Federal do Pará, Belém, 1998; e SANTOS, Diego Pereira. Irmandades de cor no Grão Pará: africanos, pardos e mestiços na sociedade

paraense (1776-1870). Monografia de Conclusão de Graduação – Faculdade de História, Universidade

Federal do Pará, Belém, 2010.

Santo, denominada dos Cativos”,92 o que não me permitiu empreender uma análise mais profunda sobre esta forma de sociabilidade.

A partir do que foi exposto até aqui, alerto para os perigos de se confundir sociabilidade com solidariedade. A fronteira entre solidariedade e indiferença, parceria e conflito (às vezes sangrento), amor e ódio, era estreita. As histórias de vida apresentadas ao longo de toda a dissertação, transbordando sentimentos, expectativas e práticas sociais delineadores do cotidiano de cativos e cativas da cidade (entre outros sujeitos), revelam o caráter caleidoscópico das relações sociais construídas por estes indivíduos e, ao mesmo tempo, a pluralidade de significados do conflito. Os processos criminais vistos até aqui e as centenas de prisões mostradas no primeiro capítulo comprovam que, quer entre pares, quer entre sujeitos pertencentes a grupos sociais diferentes, o conflito andava lado a lado com a solidariedade.

Antes de entrarmos na última parte do capítulo, preciso fazer uma reiteração e uma ressalva. A reiteração: os vários tipos de relações construídas pelos cativos não eram excludentes; muito pelo contrário, somando-se, formavam redes complexas. A ressalva: ocasionalmente, as relações se sobrepunham umas às outras; assim sendo, muitos familiares poderiam ser vizinhos, muitos vizinhos amigos, muitos amigos amantes.