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Os lugares de trabalho do escravo urbano

Capítulo 2: “ trabalhava no armazém de seus senhores”: a inserção de Camilo no

2.3. Os lugares de trabalho do escravo urbano

Ao longo deste capítulo, vários escravos apareceram trabalhando nas mais diversas empresas (armazéns, lojas, fábricas, entre outros), à exemplo do protagonista desta dissertação, Camilo João Amancio. Outros trabalhando no espaço da rua, como o boleeiro Antonio e a mulata de aluguel Filomena. Existiam mais dois outros espaços de trabalho que empregavam muitos escravos em Belém: o ambiente doméstico e o rural.

A extensa maioria dos anúncios, no que diz respeito à qualificação profissional, ofertava/demandava escravos com algum atributo voltado aos serviços de caráter doméstico – serviços realizados no âmbito do lar, numa esfera privada e familiar, oposta à da rua.126 Dum total de 501 anúncios que mencionaram a qualificação profissional do escravo ofertado/desejado, 358 (71,46%) correspondiam a escravos domésticos (ver Tabela XVI).

125 BPAV, DB, 14/10/1876.

Tabela XVI

Escravos anunciados com uma ou mais qualificações relacionadas aos serviços domésticos (DB, 1871-1882)

QUALIFICAÇÃO Nº DE ESCRAVOS

ESCRAVOS COM UMA QUALIFICAÇÃO

Acompanhante 1

Ama127 47

Para andar ou lidar com criança 3

Para casa de família 28

Copeiro 3

Cozinheiro 48

Criado 2

Engomadeiro 1

Para fazer compras 1

Para serviço de família 25

Para serviço doméstico 20

Para serviço interno de casa comercial ou particular 2

Para serviço interno de uma casa 2

Para todo serviço de uma casa 3

Servente de casa 2

SUBTOTAL 188

ESCRAVOS COM DUAS QUALIFICAÇÕES

Ama seca/Para Serviço doméstico 1

Ama seca/Para casa de família 1

Copeiro/Servente 1

Cozinheiro/Engomadeiro 25

Cozinheiro/Lavadeiro 19

Cozinheiro/Copeiro 2

Cozinheiro/Criado de armazém 1

Cozinheiro/Para serviço de casa de família 2

Cozinheiro/Para Serviço doméstico 6

Cozinheiro/Doceiro 1

Engomadeiro/Costureiro 2

Engomadeiro/Lavadeiro 4

Lavadeiro/Para casa de família 1

Padeiro/Cozinheiro 1

Cozinheiro/Sapateiro 1

Servente/Cozinheiro 1

Para serviço de armazém/Cozinheiro 1

Para serviço de campo/Lavadeiro 1

Para serviço doméstico/Copeiro 1

Para serviço doméstico/lavoura 1

Para serviço de casa de família/Para qualquer estabelecimento 1

SUBTOTAL 74

ESCRAVOS COM TRÊS QUALIFICAÇÕES

Ama seca/Copeiro/Servente 1

Cosedor/Lavadeiro/Cozinheiro 1

Cozinheiro/Lavadeiro/Engomadeiro 49

Cozinheiro/Engomadeiro/Para casa de família 4

Cozinheiro/Engomadeiro/Costureiro 5

Cozinheiro/Lavadeiro/Gomadeiro 6

Cozinheiro/Lavadeiro/Costureiro 1

Lavadeiro/Cosedor/Engomadeiro 1

Lavadeiro/Engomadeiro/Vendedor de rua 1

Para serviço doméstico/Costureiro/Engomadeiro 1

SUBTOTAL 70

ESCRAVOS COM QUATRO QUALIFICAÇÕES

Ama de leite/Lavadeiro/Engomadeiro/Cozinheiro 1

Para casa de família/Lavadeiro/Cozinheiro/Gomadeiro 2 Para casa de família/Lavadeiro/Cozinheiro/Engomadeiro 6

Copeiro/Lavadeiro/Engomadeiro/Cozinheiro 1

Cosedor/Engomadeiro/Lavadeiro/Cozinheiro 2

Costureiro/Engomadeiro/Cozinheiro/Lavadeiro 1

Cozinheiro/Lavadeiro/Engomadeiro/Para serviço doméstico 3

Cozinheiro/Engomadeiro/Doceiro/Costureiro 1

Cozinheiro/Lavadeiro/Gomadeiro/Cosedor 1

Cozinheiro/Lavadeiro/Engomadeiro/Para serviço de roça 1 Lavadeiro/Engomadeiro/Cozinheiro/Faz redes de fio 1

Lavadeiro/Engomadeiro/Cozinheiro/Doceiro 1

Lavadeiro/Gomadeiro/Cozinheiro/Doceiro 1

Lavadeiro/Cozinheiro/Engomadeiro/Ama seca 1

Lavadeiro/Gomadeiro/Cozinheiro/Para serviços domésticos 1 Para casa de família/Cozinheiro/Engomadeiro/Costureiro 2

SUBTOTAL 26

TOTAL 358

Fonte: BPAV, Diário de Belém, 1871-1882.

Enquanto a Tabela XIII – que agrupa as qualificações não relacionadas ao âmbito doméstico –, analisada há pouco, era composta predominantemente por cativos do sexo masculino, na Tabela XVI acontece o inverso: entre os escravos domésticos, a esmagadora maioria era do sexo feminino. Para termos uma dimensão, dos 188 escravos do grupo com apenas uma qualificação, 154 são do sexo feminino, ou seja, 81,91%. Soa até estranho fazer referência a algumas qualificações no masculino, como “lavadeiro” e “engomadeiro”. No caso de outras, como “ama”, “ama de leite” ou “ama seca”, é impossível o uso do masculino.

Outra grande diferença entre as duas tabelas (XIII e XVI) diz respeito à quantidade de qualificações por escravo. Enquanto a Tabela XIII é composta por poucos

escravos com mais de uma qualificação, a Tabela XVI mostra que quase a metade (170 do total de 358) dos escravos com qualificações relacionadas ao âmbito doméstico possuía mais de um ofício. Talvez esta fosse a grande característica dos escravos domésticos: acumular qualificações profissionais, relacionadas ou não umas às outras. Ao mesmo tempo em que vemos vários escravos que cozinhavam, lavavam e engomavam, encontramos alguns com qualificações bem distintas umas das outras, como: “para serviço doméstico” e “lavoura”; “cozinheiro” e “sapateiro”; “cozinheiro” e “criado de armazém”; “lavadeiro”, “engomadeiro” e “vendedor de rua”; entre outras associações. Relacionando estes dados com o que foi dito anteriormente sobre as lavadeiras e vendedoras de rua, pode-se afirmar que, no cotidiano da escravidão, por mais diferentes que fossem entre si, dois ou mais ofícios sempre podiam se somar, pois qualificações extras e sobrepostas costumavam ser bem recebidas pelos cativos e seus senhores. Segundo Bárbara Palha, “era inerente às vendedoras ou quitandeiras e lavadeiras saírem às ruas para prática de suas ocupações, o que por sua vez também não as excluía das atividades de dentro do ambiente doméstico”.128

Roberto Guedes Ferreira, analisando a autonomia e o governo dos escravos no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, alerta que é preciso ter um certo cuidado na caracterização dos escravos domésticos. Segundo Ferreira, ser escravo doméstico significava mais do que desempenhar esta ou aquela atividade e muito mais do que trabalhar no interior dos lares nos afazeres domésticos. Para ele, “em termos econômicos, na perspectiva do senhor, tudo indica que escravo doméstico era aquele que não lhe fornecia rendimentos”. Do ponto de vista ocupacional, os escravos domésticos eram descritos nas fontes exclusivamente como tal, a exemplo de “domésticos”, “do serviço de casa”, entre outros termos.129 Ainda que problematize e recoloque em cena o termo “doméstico”, a perspectiva de Roberto Guedes de certa maneira anula a flexibilidade inerente aos ofícios urbanos. Este capítulo tenta mostrar justamente o quanto os tipos profissionais consagrados pela historiografia (o escravo de ganho como exemplo-mor) eram maleáveis, incluindo os escravos com qualificações profissionais associadas ao âmbito doméstico.

128 PALHA, op. cit., p. 95.

129 FERREIRA, Roberto Guedes. “Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX”, in FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de

Por fim, a Tabela XVI revela que, entre as(os) escravas(os) com uma única qualificação relacionada ao ambiente doméstico, predominavam as amas e as(os) cozinheiras(os); entre as(os) que possuíam duas qualificações, as(os) que cozinhavam e engomavam; e entre as(os) com três, as(os) que cozinhavam, lavavam e engomavam eram maioria.

Seria errôneo pensarmos que na cidade de Belém existiam apenas trabalhadores urbanos, pois o elemento rural também integrava a cidade, mesclando-se e, em alguns lugares, sobrepondo-se ao urbano. No século XIX, por mais que as cidades Império afora estivessem se reestruturando, ganhando novos contornos e grupos sociais característicos; por mais que os condenados “traços coloniais”, desde a chegada da família real (guardadas as devidas diferenças regionais), viessem perdendo seus tons; a separação entre urbano e rural continuava marcada pela fluidez. As fronteiras entre estes dois polos – que muitos ainda insistem em segregar e tratar como opostos – não eram bem definidas, se é que se pode falar em fronteiras.130 De acordo com Mara Lúcia Bernardelli,

“não conseguimos apreender o urbano e o rural, a cidade e o campo, a cidade e o urbano, a partir de leituras dicotômicas. Os processos, passados e em curso, que (re)produzem e (re)definem o espaço devem ser pensados a partir de múltiplas dimensões (sociais, políticas, ideológicas, econômicas, históricas, culturais), extrapolando, portanto, definições estanques, se buscamos apreendê-los em sua totalidade”.131

Para a geógrafa, o pensar sobre o urbano e o rural “deve sempre ser pautado no contexto espacial e histórico”.132

Uma das testemunhas daquele processo criminal que envolveu o boleeiro Antonio, ao dar a sua versão para os fatos, usou como referência uma rocinha situada numa das principais vias circulação da cidade à época. Disse a testemunha que, na tarde de 17 de fevereiro de 1884, domingo, quando seguia em um dos bondes da Companhia Urbana pela Estrada de Nazaré em direção ao arraial de mesmo nome, mais ou menos às duas horas da tarde, momento em que o bonde passava “em frente à rocinha ou chácara do finado Paulo

130 Sobre os estreitos limites entre o urbano e o rural, cf. WISSENBACH, op. cit.

131 BERNARDELLI, Mara Lúcia Falconi da Hora. “Contribuição ao debate sobre o urbano e o rural”, in SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão & WHITACKER, Arthur Magon (orgs.). Cidade e campo: relações e

contradições entre o urbano e o rural. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 52. Cf. ainda ENDLICH,

Ângela Maria. “Perspectivas sobre o urbano e o rural”, in Idem, Ibidem. 132 BERNARDELLI, op. cit.

Barreto”, próximo à Travessa do Doutor Moraes, “viu ele testemunha um homem de cor mais ou menos escura, em mangas de camisa, atravessar os trilhos (...) diante do dito bonde, a bem pouca distância dos animais, que o atiraram ao chão”. O boleeiro não conseguiu parar o bonde “em tempo de evitar ser o dito homem ofendido pelos animais ou pelo bonde, não obstante ter o réu presente apertado o breque para fazer o carro parar (...)”.133

Na Belém oitocentista, portanto, o rural se mesclava ao urbano. Mal se adentrava na Estrada de Nazaré (com destino a São Brás), deparava-se com vias de terra e rocinhas. Versando sobre as rocinhas da São Paulo oitocentista, Wissenbach coloca que, “além de produzirem gêneros alimentícios e de manterem pequenas criações, (...) configuravam, segundo os estudiosos, um estilo de vida e uma versão de moradia capazes de compatibilizar as vantagens indiscutíveis da vida urbana com as benesses da vida no campo”.134 Contudo, estas propriedades com traços rurais estavam situadas predominantemente nos distritos menos urbanizados de Belém (o terceiro e o quarto) e comumente pertenciam às camadas mais abastadas da sociedade. Segundo Maria de Nazaré Sarges, quando do processo de reorganização do espaço urbano de Belém, no final do século XIX, as áreas próximas da Cidade Velha foram se transformando no centro de atividades comerciais, o que levou as famílias que lá residiam a se transferirem para pontos mais afastados do burburinho urbano, locais com mais espaço disponível, “onde os lotes de terra ainda eram mais baratos, já que eram áreas habitadas por pessoas que, em decorrência a esse processo, foram sendo empurradas para áreas bem mais afastadas da cidade (...)”.135

Roberto de La Rocque Soares, utilizando um mapa da cidade de Belém de 1990, destaca os locais onde se concentravam as rocinhas do século XIX (ver Figura VI): nos arrabaldes da capital paraense de outrora, sobretudo em torno das estradas de Nazaré, São Jerônimo (atual Av. Governador José Malcher) e Bragança (atual Almirante Barroso).

133 CMA, Fórum Criminal, 1º Distrito Criminal, Autos crimes de homicídio involuntário, 1885 134 WISSENBACH, op. cit., p. 130.

135 SARGES, op. cit., pp. 83-84. Cf. também SOARES, Karol Gillet. As formas de morar na Belém da Belle-

Époque (1870-1910). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social da

Figura VI

Áreas atuais de concentração das rocinhas oitocentistas em Belém

Fonte: SOARES, Roberto de La Rocque. Vivendas rurais do Pará – rocinhas e outras (do séc. XIX ao XX). Belém: Fundação Cultural do Município de Belém, 1996, pp. 31-32.

Anteriormente, vimos que os escravos lavradores abundavam nos anúncios de jornais. De acordo com o censo de 1872, a Província do Pará possuía 10.956 escravos lavradores, num total de 27.458.136 No resumo geral da matrícula de escravos de 1887, dos 10.535 escravos desta Província, 10.039 eram domiciliados no ambiente rural e 496 no urbano, sendo que, do total, apenas 8.636 foram classificados como “agrícolas”.137 Esta diferença entre o número de escravos domiciliados no meio rural e o de escravos agrícolas (um total de 1.403 indivíduos) reitera a ideia de que entre o rural e o urbano, no século XIX, não existiam fronteiras estritamente definidas. Assim sendo, o escravo que trabalhava

136 DIRETORIA GERAL de Estatística, op. cit.

137 Cf. “Falla com que o Exm. Sr. Conselheiro Francisco José Cardoso Junior, Primeiro Vice-Presidente da Província do Pará, abrio a 1ª Sessão da 26ª Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 4 de Março de 1888”, disponível no site crl.edu/pt-br/brazil. Este número relativamente baixo de escravos domiciliados no ambiente urbano talvez estivesse relacionado ao fato de muitos senhores tentarem burlar os impostos que recaíam sobre estes “bens” na cidade, o que, contudo, não anula o peso desta diferenciação.

no espaço urbanizado não necessariamente aí residia; por outro lado, o escravo que residia na parte mais urbanizada da cidade não necessariamente aí trabalhava.

Na Tabela XIII, que mostra as qualificações dos escravos demandados/ofertados nos anúncios do Diário de Belém, o elemento rural aparece com nitidez: são 39 escravos para serviço de lavoura; 2 para lavoura e outros serviços; 2 para cortar e embarcar madeiras e para serviços de sítio; 1 para puxar carro de fazenda e trabalhar como servente; 1 trabalhador de roça e carreiro; 1 vaqueiro; 1 para todo serviço, entre os quais o de lavoura; e 1 para trabalhar como lavrador, mas também fazer serviços na cidade. Ao todo, dos 112 escravos com alguma qualificação (não relacionada ao âmbito doméstico) demandados/ofertados nos anúncios deste jornal, quase a metade eram próprios para os serviços de caráter rural.

Lembremo-nos dos escravos João e Eleutéria, pertencentes ao lavrador Antonio Tavares, que o ajudavam em seu rancho, na Ilha Arapiranga; da escrava Guilhermina, que trabalhava nos seringais do Distrito de Itapicuru; e do boleeiro Antonio, que morava no Largo da Pólvora, mas adentrava nas cercanias rurais de Belém para exercer sua profissão. Todos eles viviam e/ou trabalhavam na cidade, porém não necessariamente no ambiente urbano. Já tivemos oportunidade de conhecer (e continuaremos conhecendo) alguns destes “escravos urbano-rurais” (se é que podemos classificá-los desta forma): uns que residiam e trabalhavam/circulavam no espaço rural da cidade; outros que residiam no rural e trabalhavam/circulavam no urbano; ou então que residiam no urbano e trabalhavam/circulavam no rural.