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O instante, eterna ebulição, convoca-nos pelas linhas tortuosas da pós-modernidade a comungar de sua efemeridade. Ao mesmo tempo que produz suas marcas sob o anelo da explosão dissipa suas arestas espalhando-se pelo desvão de suas significações. É tudo e é nada. Conjunto de vazios e plurissignificação. E como diz Nietzsche, se “toda ação exige o esquecimento” (apud Lins 2000, p.46), e este parte do cotidiano, eis que elegemos sua amnésia como nosso guia. A amnésia é um esquecimento parcial. E mesmo o esquecimento é lembrança de algo. Pois a própria memória pode ser nociva se ela é produto determinado por outrem podendo construir esquecimentos profundos, seqüelas irreversíveis à história do homem. Mas de certa maneira, não seria a memória sempre esquecimento de alguma coisa? Afinal, não posso vislumbrar a memória, mesmo a da escritura, como produtora do todo a que ela se propõe revelar. Ela é sempre parcial, como já vimos. Sendo parcial revela-se

próxima da amnésia. Diríamos que a amnésia estaria entre a memória e o esquecimento, mas cremos ser impossível delimitar suas fronteiras.

Para desobstruirmos esse bloqueio e nos conduzirmos com uma maior segurança à amnésia cotidiana, trazemos uma memória de cunho nietzschiano fundada na palavra (ver Lins 2000, p.47).

Segundo Nietzsche, esta memória instaura “a faculdade de prometer, comprometimento futuro” (Deleuze apud Lins idem). É interessante insistir nesse raciocínio nietzschiano, porque sugere uma saída possível para os danos provocados em nosso sistema pelo esquecimento diário. Para Deleuze, “esta recordação da promessa que se fez não é mais recordar-se que ela foi feita em determinado momento passado, mas que se deve mantê-la para determinado momento futuro. É esse precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de prometer, portanto, de dispor do futuro, um homem livre e poderoso” (apud Lins 2000, p.48).

Como viabilizar esta memória da palavra numa sociedade que tem como característica a pulverização de seus próprios códigos? Seria uma utopia?

Não podemos recordar o futuro se damos ao passado uma marca definitiva. O passado se processa à medida que os “mitos” do futuro são destruídos. Assim, se vemos o cotidiano como a uma bola de cristal podemos estar simplesmente exaltando sua amnésia e fazendo com que o futuro seja esquecido de vez.

A memória da palavra é, em nosso entender, o espírito da literatura. A literatura tem, na sua imperfeição, a capacidade de possibilitar ao homem a promessa do futuro. Pois é para o futuro que ela se dirige, é para o homem livre que ela é feita (porque ler literatura é participar de seu jogo: eis a grande liberdade do ser humano – se deixar envolver pela literariedade).

Mas como a literatura ao dispor do cotidiano pode ratificar essa promessa? A memória da palavra tem a capacidade de mesmo quando esquece (seus silêncios narrativos – que são esquecimentos intencionais) lembrar ao leitor (ao homem futuro) que este é livre e sendo livre é capaz de reverberar as marcas do cotidiano, dissipando sua amnésia.

Para Nietzsche, “todo ato exige amnésia. Temos necessidade de não saber para viver, visto que a história nos paralisa. Acumulamos uma soma de acontecimentos ou superstição ‘científica’ que tende para o infinito e que nos torna cada vez mais deficientes,

fechados à construção de novos devires, e que nos deixa incapazes de agir e engendrar um devir” (apud Lins 2000, p.50). É aqui que concordamos e dizemos ser a(s) teoria(s) produtora de apagamentos. Quanto mais o sistema acumula informações (no sentido amplo do termo – filosofia, sociologia, história etc) mais ele se torna pesado dificultando a locomoção do ser humano. Daí, para Nietzsche, o lado positivo do esquecimento: dar ao homem a liberdade de ir e vir e criar. O esquecimento que ele chama de “memória de vontade” (1998, p.48).

Nietzsche nos lembra que “os usos do esquecimento não existem na Bíblia, e que esse esquecimento, avesso da memória, recusa da dívida é, neste contexto, sempre negativo (...) A guerra santa, por exemplo, é contra o esquecimento” (apud Lins 2000, p.53). Vejam esta citação de Deuteronômio:

“Guarda-te não te esqueças do senhor, teu Deus, não cumprindo os seus mandamentos, os seus juízos e os seus estatutos, que hoje te ordeno, cuidado (...) Se te esqueceres do Senhor, teu Deus, e andares após com outros deuses, e os servires, e os adorares, protesto, hoje, contra vós outros que perecereis”. (Deuterenômio VIII, 11,19)

A memória instaura o significado da punição. O homem, fruto do pecado, da memória punitiva, é incapaz de viabilizar sua liberdade futura. Preso a uma memória perversa constrói lacunas e vê sob o olhar pouco encorajador dos arautos da pós- modernidade que sua existência está eivada de simulacros. E aí sua fé, simulacro do simulacro, alucinógeno mais terrível que o ópio o faz misturar-se à amnésia cotidiana. Donde, impossibilitado de esquecer o que como idéia passada já se virtualizou, é incapaz de fazer sua promessa, conjugando-se nulo, abdicando de escrever a história.

Se tomarmos a historiografia como um processo dinâmico (e nela o cotidiano mesmo obscuro borbulha) não esquecer essa memória perversa do pecado original é conjugar a história ao imobilismo. E o que é uma história fixa, imóvel? É uma não-história. O sujeito neste processo também está morto. Então, existe o sujeito do esquecimento? Segundo Daniel Lins, sim. “Mas esse sujeito do esquecimento é um sujeito grávido de acontecimentos e devires, é um sujeito sem sujeito, quer dizer, é um sujeito sem sujeição nem verdade. Prenhe, este sujeito é múltiplo ou, como diz Nietzsche, ele é uma multiplicidade” (2000, p.54). O sujeito do esquecimento é assim aquele que impede que a

memória imóvel39 construa novas barreiras ao devir do homem. É aquele que rebela-se contra o sistema, e possibilita a produção de um novo devir.

Segundo Daniel Lins, “a História, com sua semântica de pesadelos, ao criar uma memória – do excluído, do torturado, do mal amado, do diferente – exilou sua criação no seu próprio exílio, confinando-a na sua própria diferença: a diferença-indizível, a diferença do ressentimento” (2000, p.56). E é contra esse ressentimento a luta do homem. Por isso, Nietzsche vê no esquecimento (a memória de vontade) a única chance do homem de “se tornar independente do louvor e da censura, do presente e do passado” (apud Lins 2000, p.57). Num certo sentido, a história nova ao querer focalizar os excluídos (através de sua polifonia) tenta realizar esse projeto nietzschiano. Mas não podemos tomar como uma postura irredutível o fato de querer dar à história uma visão diferente. O esquecimento e a memória devem manter uma correlação na feitura do presente e do passado. Tanto o cotidiano quanto a história revigoram-se e escrevem suas “marcas” na fronteira de ambos sendo um devir e um ressentimento. Porque na escritura que reproduz o cotidiano e a história nem tudo que reluz é ouro.

Por isso, possibilitar ao homem o devir é a melhor fórmula de permitir ao cotidiano que se desmancha no ar frente ao universo de simulações, a redenção futura. Daí, a insistência de Daniel Lins numa recordação do futuro. Segundo o autor, “recordar o futuro é inaugurar no coração do homem o bom esquecimento, formado pela trilogia apolínea: alegria, amor e sono suave” (2000, p.59).

Mas ao revigorar a utopia não estaria o homem desarmado frente à amnésia cotidiana? Se a alienação é alimento do cotidiano, acreditar que o futuro possa concretizar o presente é fazer com que ele aconteça de forma crítica? Talvez. Festejá-lo como promessa é condiciona-lo à esperança. E nesta não apenas o futuro apresenta-se feliz bem como o passado se eiva da placenta do ventre materno. Pois lá, estando seguro, e não imóvel, sempre gerará novas esperanças, novas utopias.

Segundo Andreas Huyssen, vivemos numa época obcecada pela memória. “Como avaliarmos o paradoxo de que a novidade em nossa cultura está cada vez associada à memória e ao passado, em vez de estar associada a esperanças futuras” (1996, p.16)? Tal questionamento encontra uma resposta plausível no desmonte sofrido por nossa cultura

desde o surgimento do modernismo. Afinal, como define Huyssen, “o modernismo se constitui através de uma estratégia consciente de exclusão” (1996, p.7). A memória, segundo o mesmo Huyssen, é “a tentativa de diminuir o ritmo do processamento de informações, de resistir à dissolução do tempo na sincronicidade do arquivo, de descobrir um modo de contemplação fora do universo da simulação, da informação rápida e das redes de TV a cabo, de afirmar algum ‘espaço-âncora’ num mundo de desnorteante e muitas vezes ameaçadora heterogeneidade, não-sincronicidade e sobrecarga de informações” (1996, p.18). É justamente essa cultura inerentemente amnésica que faz vincular a esperança à memória. Se esta cultura acaba num certo sentido causando danos à historiografia por promover verdadeiros apagões, imaginem ao cotidiano o que ela não será capaz de produzir!? Por isso, “quanto mais convivermos com as novas tecnologias de comunicação e informação cyber-space, mais nosso senso de temporalidade será afetado. Logo, o enfraquecimento da consciência histórica é em si um fenômeno explicável historicamente(...) Nesta visão distópica de um futuro high-tech, a amnésia não seria mais parte da dialética entre memória e esquecimento. Ela seria seu ‘outro’ radical, decretando o verdadeiro esquecimento da própria memória: nada para lembrar, nada para esquecer” (Huyssen 1996, p.20/1).

O excesso de informação tem causado diversas fissuras na captação da própria realidade. O que faz Baudrillard insistir que tudo é simulação. Evidentemente não podemos ser levados pelo delírio baudrillardiano, mas sabemos que compreender, hoje, a realidade é evadir-se um pouco. Aquilo que a frase borgeana indicava no início desse trabalho parece cada vez mais acender-se: “minha memória é um amontoado de restos”.

O cotidiano tem suprimido seus caminhos de acesso; ora, somos levados a seus abismos; ora somos alvejados por seus delírios. Um cotidiano cada vez mais mediado por imagens que irrompem o próprio sentido de veracidade, sendo a mediação não um mecanismo de representação, mas o próprio objeto. Para escapar a esse mundo midiático, de imagens efêmeras, Huyssen contrapõe com a “memória contra-hegemônica dos museus”. Contra a amnésia, os espaços da experiência cotidiana e da cultura parecem ocupar uma sensibilidade relacionada ao passado. Segundo Huyssen, vivemos o tempo da “musealização” (1996, p.223).

“Para Baudrillard, a musealização e suas variantes são uma tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar e dominar o real com o intuito de esconder o fato de que o real está em agonia devido à expansão da simulação. Assim como a televisão, a musealização estimula o real e ao fazê-lo contribui para a sua agonia. Tanto para Jean Baudrillard como para Henri Pierre Jeudy, a musealização é precisamente o oposto da preservação: é o mesmo que matar, congelar, esterilizar, ‘des-historicizar’ e ‘des- contextualizar’” (apud Huyssen 1996, p.245). Mas vivendo numa época que mal se consegue juntar cacos, o museu não seria um aliado nesse tempo que tudo apaga?

Andreas Huyssen critica a posição de Baudrillard com o seguinte argumento: “sendo um objeto ele contém um registro da realidade que nem mesmo a transmissão ao vivo de uma televisão pode assegurar. Onde o meio é a mensagem e a mensagem é uma imagem fugaz na tela, o real continuará sempre e inevitavelmente bloqueado. Onde a mídia é presença e apenas presença, e a presença signifique uma transmissão ao vivo do noticiário, o passado será necessariamente bloqueado” (1996, p.250). Assim é a televisão produtora de uma pseudo-realidade. Nela o cotidiano deixou de acontecer, e o passado se tornou uma imensa tela vazia. Deste modo, podemos afirmar ser a imagem midiática a amnésia do cotidiano. Muita informação é incompatível com a memória.

Com relação ao objeto do museu, Huyssen faz uma verdadeira auratização do mesmo. Segundo o autor, “é precisamente o isolamento do objeto de seu contexto genealógico que permite a experiência do ‘reencantamento’ através do olhar museico. É claro que tal desejo de autenticidade é uma forma de fetichismo (não no sentido atribuído por Marx). O próprio fetichismo do museu transcende o significado da troca. Ele carrega consigo uma espécie de dimensão anamnésica, um tipo de valor da memória” (1996, p.249).

Evidentemente o contato com o objeto passado é o contato com a memória. Mas na posição aurática propiciada pelo poder do objeto sobre nosso olhar não estaria a revelação da imposição de uma memória? Essa memória pode ser chamada de contra-hegemônica? Afinal, o objeto é fruto também de uma seleção, donde fatores ideológicos vêm se inflar à sua identificação. Mas na recomposição do passado, não podemos negar ser o objeto parcela do cotidiano de seu tempo, nele se revela a feitura de um contexto sob o qual ele exerce influência. Neste sentido, não posso tomar o objeto de museu como amnésico.

Para Huyssen, “embora geralmente se reconheça que as tecnologias transformaram substancialmente o cotidiano no século XX, é bem menos reconhecido o fato de que a tecnologia e a experiência de uma vida cada vez mais tecnologizada transformaram a arte. Sem dúvida, a tecnologia tem um papel crucial, senão o papel crucial, na tentativa da vanguarda, de superar a dicotomia arte/vida e tornar a arte produtiva para a transformação do cotidiano” (1996, p.29). As vanguardas históricas (o dadaísmo, o surrealismo etc) que de certa maneira buscavam intervir no cotidiano, não acabaram sendo vítimas dele? E até que ponto ser vítima do cotidiano pode ser um condicionante negativo? Façamos um passeio numa obra recente de nossa literatura.

O romance Somos Pedras que se consomem (1995), de Raimundo Carrero, faz uma espécie de intervenção no cotidiano contemporâneo. E percebe como característica do nosso tempo a banalização da sociedade em todas as suas instituições. Banalização que também pode ser entendida como matéria da amnésia cotidiana.

Vivemos numa sociedade que relativizou tudo conjugando aos valores do passado um certo cinismo. O romance de Carrero ao dar uma abordagem intertextual ao cotidiano, o envolve numa dialética entre ficção e realidade (talvez por saber o cotidiano prenhe destes “extremos”). Fatos tornados corriqueiros, como, estupro, violência a menores superlotam a narrativa que mantém um diálogo das personagens com a realidade contemporânea. O romance envolve a narrativa num sem número de perversões que acabam contaminando o leitor no jogo de sua linguagem-violência. Mas a violência é mero ornamento da linguagem ou a linguagem apenas mediação da violência? Em Somos pedras que se consomem a violência se repete não para ver seus efeitos disseminados na cultura da banalidade, e sim introjetar nas pessoas (leitor) um compromisso com a indignação. Já que, nessa sociedade midiática, “ninguém” mais se indigna. Em Somos pedras que se consomem nos indignamos sim, não apenas com a realidade, mas com a própria literatura que não pode ser amorfa. Esta deve inserir seus códigos na tradução do mundo e na sua transformação. Inserir-se no cotidiano não é ser alvejado por ele, mas produzir sentido.

A obra de Carrero para inserir logo o leitor em seu jogo propõe três caminhos para a leitura, que o leitor está de antemão desobrigado a aceitá-los. Tal recurso engendra uma espécie de memória: a memória das marcas literárias. Além de revelar que a literatura é jogo (de sentidos) o autor já manifesta características do cotidiano contemporâneo. Afinal o

auto-atendimento é bem característico de nosso tempo em que o alvo é o consumidor (já não o cidadão); o qual é chamado a intervir na realidade (o consumidor pode mudar a realidade, ao passo que cabe ao cidadão aceitá-la). Porém sem levarmos muito a sério a proposta do autor, entramos no romance pela porta da frente fazendo uma leitura linear. Mas ao começarmos pelo começo, somos alvejados por uma trama bem fragmentada, porque o que está em jogo não é a linearidade de uma história, mas a própria histeria da literatura, ou de outra forma: o processo da produção literária. Nesse processo o cotidiano está em ebulição. Os fatos “corriqueiros” vêm se entranhar aos fatos literários. Cotidiano e literatura se imbricam, se partem, se jogam, se constroem. E a construção dessa plurissignificação parte de uma luta da linguagem para vencer a amnésia cotidiana. Por isso o romance, compêndio de textos (intertextos), relativisa os textos não-ficção (trechos de jornais, revistas etc que aparecem no corpo da narrativa) aos textos de ficção (citações de trechos de obras de Sylvia Plath, Lya Luft, João Silvério Trevisan, entre outros) na argamassa de sua narrativa.

Os textos são chamados a dar marcas à literatura contemporânea e ao cotidiano (a história futura). E para provar que o fim está longe os intertextos nos esmurram e nos chamam para refletirmos sobre a ficção e a realidade. Ou seja, enquanto a literatura puder dizer além do que ela é capaz o cotidiano estará compondo seu espaço na realidade, e tudo o mais será lembrado.

A barbárie cotidiana espetacularizada pelos media é rememorada na narrativa. Rememorada porque o autor utiliza a escritura-memória de outros autores (há diversas citações de fontes variadas ao longo do romance. Essas citações interagem com o enredo – são justapostas e aglutinadas – ou seja, invocam uma leitura à parte e uma leitura como parte). A violência cotidiana é repetida insistentemente, fazendo com que sua presença não seja relativisada pelas imagens cotidianas. A passagem a seguir, revela um pouco o que estamos dizendo (o trecho é extraído de uma notícia de jornal):

“Cinco pessoas foram assassinadas na madrugada de ontem, em Itaboraí (a 50 quilômetros do Rio). Quatro homens invadiram entre 0h e 1h, na casa onde moravam, fizeram a chacina e depois fugiram. Entre os mortos, um bebê de três meses, que estava sendo amamentado no momento do crime. Segundo a polícia, no local funcionava um ponto de venda de drogas.”(p.63)

O texto não-ficcional ganha uma maior força dentro da narrativa. Esta apresentação “direta” do fato conforme ocorrido na realidade nos faz questionar a pertinência do romance. Qual a intenção do autor, em vez de utilizar a própria escritura para narrar o episódio o coloca de forma explícita pala linguagem jornalística? Podemos responder de forma simples que a intenção do autor é provocar o leitor (o que num certo sentido toda obra literária já faz). O leitor incomodado certamente alvejará: isso é literatura? Ou já não basta a violência cotidiana? Mas aí questionamos: os meios de comunicação de massa não estariam ao espetacularizar os fatos os tornando banais? Aquilo que vimos anteriormente: o ser humano não suporta tanto horror. A repetição do horror corrobora para sua extinção. Ao repetir a violência dos mass media a narrativa não estaria, em vez de banalizando-a, investindo numa espécie de memória que tem a intenção de denunciar esta anomalia que corrói a sociedade? Tais fatos entram em diálogo com a narrativa que os repete não para relativizá-los, mas para afugentá-los da amnésia cotidiana. Esta “cultura” da relativização dos fatos não poderá causar danos à construção da própria história? Afinal, sabemos que o historiador é selecionador dos fatos que compõe a história: que história será contada, se as fontes estão cada vez mais impregnadas por essa gama de informações banalizadas?

O romance de Carrero faz sua inserção no cotidiano contemporâneo através do acúmulo de informações. Os textos são arremessados à narrativa, como uma espécie de representação desse mundo informacional. Mas na narrativa o acúmulo de informações não se perde já que tudo dialoga. Na quarta parte desta tese voltaremos a uma leitura mais detalhada deste romance.

Salvador Dali consciente da força do simulacro sobre o cotidiano afirmou certa vez que “os simulacros podem facilmente assumir a forma da realidade e esta, por sua vez, se adaptar às violências dos simulacros” (apud Subirats 2001, p.33). Importunando com sua super-realidade os simulacros midiáticos acabam gerando uma realidade sui generis. Segundo Marshall McLuhan, “ocupar-se do efeito em vez de ocupar-se do significado é uma mudança fundamental da nossa era moderna, já que o efeito abarca a situação total e não apenas um nível do movimento da informação”, em conseqüência temos “a abolição da experiência estética no mesmo processo de estetização da comunicação eletrônica” (apud Subirats 2001, p.41/2).

Assim recordamos a Guerra do Golfo Pérsico: “sua encenação eletrônica significou a perfeita liquidação da realidade”, conforme lembra Subirats (2001, p.42). Na mesma proporção podemos conceber a invasão americana ao Afeganistão. A quantidade irracional e surrealista de materiais bélicos contra um país em ruínas focalizados pelos pontos luminosos de um videogame capaz de minimalizar a tragédia de um povo, arrefecida por uma tecnologia infinitamente pomposa, mas pouco realista, já que as imagens pouco diziam, foram responsáveis pela indiferença de muitos frente às imagens: as luzes simulavam uma realidade da qual pouco se sabia. Ou seja, “as texturas abstratas objetualmente indefinidas, impossível de serem identificadas ou mesmo aproximadas de qualquer referência de nosso entorno, transformavam os objetos anobjetuais dessa destruição numa realidade fantasmática” (Subirats 2001, p.45).

Na guerra do Golfo, por exemplo, os vídeos eram instalados nos próprios mísseis