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O amor sexual e o sentido da espécie

No documento Metafísica prática em Schopenhauer (páginas 107-111)

4. AMOR SEXUAL E METAFÍSICA PRÁTICA

4.2. O amor sexual e o sentido da espécie

O amor erótico é, para Schopenhauer, a manifestação mais veemente da vontade de vida, e é regido por um duplo aspecto afirmativo: a conservação do indivíduo pela afirmação do seu corpo, e a procriação ou propagação da espécie, que também não deixa de ser uma forma de conservação, mas da espécie115. Por conta desse duplo aspecto essencial do amor, Schopenhauer chama-o de "amor sexual", Geschlechtsliebe, pois o ato sexual é o entrecruzamento dessas duas experiências: do instinto sexual e da procriação. Assim, o amor pode ser considerado a partir de dois pontos de vista, do indivíduo e da espécie: no primeiro ponto de vista considera-se o egoísmo, o instinto sexual, o desejo e o sofrimento, e no segundo a prerrogativa da espécie sobre o indivíduo e a reprodução. Assim, em Schopenhauer, Eros também é regido por um duplo aspecto, de criação e de destruição, pois se por um lado ele pode ser considerado como o "primeiro criador", princípio do qual emergem todas as coisas116, por outro lado ele é hostil e cruel, a despeito de seu aspecto infantil; é um demônio caprichoso e despótico: "Flechas mortíferas, cegueira e asas são seus atributos. As últimas indicam a inconstância: via de regra, esta entra em cena com a desilusão, que é a consequência da satisfação"

é a adequação de um objeto com algum esforço determinado da vontade. Além disso, somente existem Ideias de seres naturais e de qualidades gerais da matéria, e por isso elas são os arquétipos inteligíveis das espécies da natureza, todavia não são a vontade mesma. (SCHOPENHAUER, 1950, p. 125; 2015a, §41, p. 243-6; §65, p. 418; 2015b, Cap. 30, pp. 436-8).

115 "Vontade de vida" (Wille zum Leben) é um pleonasmo, já que "vontade" é sempre "vontade de vida": "como o que a vontade sempre quer é a vida, justamente porque a vida nada é senão a exposição daquele querer para a representação, é indiferente e tão somente um pleonasmo se, em vez de simplesmente dizermos "a Vontade", dizermos "a Vontade de vida" (SCHOPENHAUER, 2015a, §54, pp. 317-8).

(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 663). O sentido profundo do amor de Eros é o interesse da espécie que, especialmente no ser humano, passa-se por um interesse individual, com frieza e astúcia, provocando no indivíduo o sofrimento por nunca alcançar a satisfação que procurava.

Do ponto de vista do indivíduo, "todo enamorar-se, por mais etéreo que possa parecer, enraíza-se unicamente no impulso sexual" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 636). Este impulso manifesta-se em graus distintos, e atinge no amor apaixonado, leidenschaftliche Liebe, o seu auge. Da mera carência física até as dores de um grande amor não correspondido, o amor é sempre um sofrimento, com que a palavra "paixão", de origem grega páthos/πάθος, encontra adequadamente a sua correspondência na língua alemã pela expressão Leiden, sofrimento. Tal como a compaixão, o amor sexual também é um evento cotidiano e, ao mesmo tempo, raro: sua cotidianidade é manifesta na frivolidade do coito sexual de toda a natureza animal, e sua raridade aparece no autêntico amor apaixonado, em que duas pessoas formam uma conexão quase milagrosa, em uma adequação que por vezes espanta em sua perfeição. A paixão atinge um grau tão elevado de potência nesses casos que, quando recusada, pode levar ao suicídio da pessoa que não vê possibilidade de encontrar em outro indivíduo no mundo inteiro aquela adequação perfeita da pessoa amada. O amor apaixonado é, por isso, o tema capital de quase todas as obras literárias e poéticas.

Quando, então, retendo-se firmemente isso, considera-se o papel importante que o impulso sexual desempenha, em todas as suas gradações e nuances, não só nas peças de teatro e romances, mas também no mundo real, onde ele, ao lado do amor à vida, dá mostras de si como a mais forte e ativa das molas impulsoras, absorve ininterruptamente a metade das forças e pensamentos da parte mais jovem da humanidade, é a meta final de quase todo esforço humano, exerce influência prejudicial nos mais importantes casos, interrompe a toda hora as mais sérias ocupações, às vezes põe em confusão até mesmo as maiores cabeças, não tem pejo de se intrometer e atrapalhar, com toda sua bagagem, as negociações dos homens de Estado e as investigações dos eruditos, consegue inserir seus bilhetes de amor e suas madeixas até nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos, urde diariamente as piores

e mais intrincadas disputas, rompe as relações mais valiosas, desfaz os laços mais estreitos, às vezes toma por vítima a vida, ou a saúde, às vezes a riqueza, a posição e a felicidade, sim, faz do outrora honesto um inescrupuloso, do até então legal um traidor, por conseguinte, entra em cena em toda parte como um demônio hostil, que a tudo se empenha por subverter, confundir e passar a rasteira; quando se considera tudo isso, é-se levado a exclamar: Para que o barulho?! Para que o ímpeto, o furor, a angústia e a aflição? Trata-se aqui simplesmente de cada João encontrar a sua Maria (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 636). A desmistificação do amor romântico e etéreo, no que tange à literatura e às artes, não diminui, porém, a sua importância, mas, pelo contrário, parte do reconhecimento de que o amor persegue o mais importante de todos os fins da vida, que merece a atenção e seriedade profundas; afinal, "não é a determinação precisa das individualidades da próxima geração um fim muito mais elevado e mais digno que aqueles sentimentos extremados e bolas de sabão suprassensíveis?" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 638).

Que uma determinada criança seja procriada, este é o verdadeiro, embora inconsciente para os amantes, objetivo de todo romance de amor (Ibid., 638). Sob a máscara de um fim egoístico, pela posse da beleza amada, o indivíduo é ludibriado, e consolida o plano secreto do gênio da espécie, a procriação (Ibid., 663). Trata-se da vontade de vida que, a despeito dos interesses dos indivíduos, trama o plano da espécie: tal como uma bruxa – poder-se-ia acrescentar ao pensamento de Schopenhauer –, a vontade enfeitiça dois indivíduos em uma amarração amorosa para obter um indivíduo, fruto desse arranjo. Visivelmente enfeitiçados, os indivíduos são capazes de se abster da própria existência para cumprir a trama e, imediatamente depois de terem-na cumprido, cada qual volta a cair em si como quem é curado de um encantamento, e reclama desiludido: "Fui enganado! Achei que buscava a beleza de minha amada, mas, maldita vontade, queria apenas retirar de mim o ingrediente necessário para completar a sua poção mágica da criação!". Schopenhauer diz que a veemência da vontade é tanta, e a ilusão tão grande, que cada um, depois do gozo obtido, experimenta uma estranha decepção, e se surpreende pela fugacidade de um prazer cobiçado com tanto anelo, mas que em verdade não propicia mais do que qualquer outra satisfação sexual (Ibid., p. 644).

O desejo sexual está para todos os desejos restantes como a espécie está para o indivíduo, portanto, é como o infinito perante o finito. Mas a satisfação não é propriamente aproveitável senão à espécie e por isso não é acessível à consciência do indivíduo, que, aqui, animado pela vontade da espécie, com total sacrifício serviu a um fim que não era de todo o seu. Por conseguinte, cada enamorado, depois da realização final da grande obra, acha-se ludibriado: pois a ilusão desapareceu, por meio da qual o indivíduo foi aqui o enganado da espécie. Em acordo com isso, diz Platão com inteiro acerto: ἡδονη ἁπαντων αλαζονεστατον (voluptas omnium maxime vaniloqua) [não há nada mais impostor que a volúpia] (SCHOPENHAUER, 2015b, p. 644). Precisamente porque no ser humano o cérebro é preponderante em relação aos outros animais, a ilusão da vontade aparece, por um lado, na forma subjetiva do instinto, e, por outro, aparece objetivamente pela ilusão da beleza e da paixão, para onde o instinto se dirige; afinal, de que outro jeito o ser humano seria convencido de que deve procriar? Quando se diz popularmente que "o amor é cego", quer-se dizer também que aquelas qualidades que atraem uma pessoa apaixonada nem sempre expressam uma unanimidade, e em boa parte das vezes as pessoas são atraídas por qualidades reconhecidas apenas por elas mesmas. Schopenhauer explica a dinâmica da atração com base em um argumento químico: para que haja uma inclinação apaixonada, é preciso que as pessoas sejam uma para a outra como o ácido é para a base, isto é, um complemento (Ibid., p. 650), expressão daquela polaridade essencial. Essa dinâmica da atração implica que haja um equilíbrio da polaridade entre as pessoas que sirva como um "complemento do tipo de humanidade no novo indivíduo a ser procriado" (Ibid.). Assim, quanto mais equilibrado é este complemento – todavia um equilíbrio que considera apenas a herança de um novo indivíduo – maior é a paixão entre os seus progenitores. Via de regra, a harmonia serve para evitar um novo indivíduo com anomalias, deficiências e fraquezas, pois a vontade quer sempre se afirmar plenamente e sem desvios, do que surge a obstinação de nossa escolha, pois a tarefa secreta da espécie é conservar o seu tipo mais puro possível (Ibid., 653). A despeito da harmonia para a espécie, a harmonia entre os amantes cai por terra no minuto seguinte da concepção

do herdeiro, e "não muito depois das núpcias dissolve-se numa desarmonia gritante" (Ibid., 651).

No documento Metafísica prática em Schopenhauer (páginas 107-111)