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Simpatia amorosa e o mistério da procriação

No documento Metafísica prática em Schopenhauer (páginas 111-114)

4. AMOR SEXUAL E METAFÍSICA PRÁTICA

4.3. Simpatia amorosa e o mistério da procriação

A obstinação e seleção caprichosa da vontade pelos indivíduos que vão servir de reprodutores, já começa, diz Schopenhauer, com o primeiro olhar apaixonado entre dois amantes, "já no encontro dos seus olhares plenos de anelo acende-se a nova vida, anunciando-se como uma individualidade vindoura harmônica e bem constituída" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 639)117.

Eles sentem o anelo para uma efetiva união e fusão num único ser, para, assim, apenas nele continuarem a viver; tal anelo se satisfaz na criança procriada por eles, na qual as qualidades hereditárias de ambos continuam a viver fundidas e unidas num único ser. Pelo contrário, a aversão mútua, firme e persistente entre um homem e uma moça é o indicador de que a criança que poderiam procriar seria apenas um ser mal organizado, em si desarmônico e infeliz (Ibid.).

Tão inexplicável quanto a individualidade particular e exclusivamente específica de cada ser humano é também uma paixão tão particular e exclusiva entre dois apaixonados, e aqui reside o traço de maior interesse para a tese da metafísica prática no amor sexual: uma união inexplicável de indivíduos que resulta na concepção de outro, por meio do ato sexual. O fenômeno simpático do amor sexual já pode ser detectável no primeiro olhar, o punctum saliens (ponto saliente) da nova geração, o momento em que os dois indivíduos começam a se amar (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, pp. 639-40). Schopenhauer cita um trecho do romance Guzman de Alfarache, de Mateo Alemán:

Para que alguém ame não é necessário que passe muito tempo, que empregue ponderação e faça uma escolha; mas apenas que, naquele primeiro e único olhar, encontre-se uma certa adequação ou

117 Schopenhauer cita Shakespeare quando este diz Who ever lov'd, that lov'd not at first sight?, "Quem já amou, se não amou à primeira vista?" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 657).

concordância mútuos, ou aquilo que, aqui na vida ordinária, costumamos designar uma simpatia de sangue, e que com particular influxo impele as estrelas (Ibid., 657, nota 15)118

A simpatia do amor sexual, isto é, o transpassamento dos limites da individualidade pelo ato reprodutivo, é um esforço da Ideia para entrar na aparência. A Ideia agarra com avidez a matéria, como se antes mesmo do encontro de seus pais a criança já quisesse vir à luz. Esta veemência, que se transfere para o desejo do casal criador, é tanto maior quanto mais determinada for a individualidade do caráter dessa criança; o que explica também os suicídios por amor, especialmente em casos como o de Romeu e Julieta, em que ambos, diante da impossibilidade da consumação do seu amor, se suicidam, pois não parece haver outro propósito para a vida que gerar aquele determinado novo indivíduo. Este, sim, o verdadeiro amor platônico, ou amor celeste, é o amor pela Ideia, muito maior do que o amor pelo indivíduo119.

118 No original: No es necesario, para que uno ame, que pase distancia de tiempo, que siga discurso, ni haga eleccion, sino que con aquella primera y sola vista, concurran juntamente cierta correspondencia ó consonancia, ó lo que acá solemos vulgarmente decir, una confrontacion de sangre, à que por particular incluxo suelen mover las estrellas. Em alemão Schopenhauer grifa a expressão "Sympathie des Blutes", em sua tradução da passagem (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 657).

119 Machado de Assis, em uma crônica conhecida por sua referência explícita ao pensamento de Schopenhauer, ironiza, com fidelidade, a metafísica do amor sexual, ao relatar a história de uma criança torturada até a morte pelos pais. "O autor de si mesmo" é Abílio, o filho de Cristina e Guimarães: "O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os dous se encontraram: 'Guimarães há de ser meu pai e Cristina há de ser minha mãe; é preciso que nasça deles, levando comigo, em resumo, as qualidades que estão separadas nos dous". Com dois anos após o nascimento, Abílio é chagado, encaixotado e levado à estrebaria, onde ficaria até morrer. Schopenhauer é convidado a dialogar com Abílio, quando este talvez pudesse ter exclamado em seus dias de martírio: "Quem mandou aqueles dous casarem-se para me trazerem a este mundo? Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não era nascido? Que banquete é este em que o convidado é que é comido?", ao que o filósofo então responde: "Cala a boca, Abílio. Tu não só ignoras a verdade, mas até esqueces o passado. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando Guimarães passava e olhava para Cristina, e Cristina para ele cada um cuidando de si, tu é que os fizeste atraídos e namorados? Foi a tua

Se o amor apaixonado é o feitiço da natureza para mover um casal à ação de seu interesse, é de se supor que isso também ocorra, em algum grau, nas outras espécies da natureza, pois entre o puro instinto de um inseto e a motivação abstrata do ser humano existe apenas uma diferença de grau (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 27, p. 413). Assim, a paixão humana é análoga ao instinto que move as aranhas a construírem suas teias, as formigas, seus buracos, e as abelhas, suas colmeias. Nem elas e nem os seres humanos sabem exatamente por que trabalham com tanta determinação, em vistas de um fim que eles não conhecem, como um sonâmbulo magnético que, hipnotizado, não sabe o que está fazendo, mas tem de fazê-lo120. O aspecto inconsciente para os indivíduos da finalidade da natureza em suas manifestações faz Schopenhauer caracterizar o instinto como se fosse "um agir conforme um conceito de fim, no entanto completamente destituído dele" (SCHOPENHAUER, 2015a, §28, p. 187). Em um importante capítulo de Sobre a vontade na natureza intitulado "Anatomia comparada" (SCHOPENHAUER, 2013, pp. 83- 111), Schopenhauer examina detalhadamente a sua concepção teleológica da vontade de vida, uma teleologia cega e autopoiética que engendra e conserva a si mesma no mundo, a partir de um impulso originário que se manifesta de diferentes formas em cada espécie. O principal argumento é o de que “o caráter do querer como um todo deve estar na mesma relação para com a forma e a constituição de seu corpo que o ato singular da vontade está para a ação corporal singular que o executa”, isto é, a constituição de cada animal orienta-se segundo a vontade da espécie, e a natureza, que nada faz em vão, dá mostras disso na própria constituição dos corpos (SCHOPENHAUER, 2013, p. 83). Assim, antes mesmo de surgirem os organismos em suas constituições próprias, já existe o desejo e a ânsia pela vida daquela forma específica: o touro chifra porque quer chifrar e o pássaro voa porque quer voar a partir da Ideia que constitui a

ânsia de vir a este mundo que os ligou sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não sei se tua somente ... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as cousas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo XLIV... Anda, Abílio, a verdade é verdade – ainda à hora da morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel..." (ASSIS, 1979, pp. 655-7).

120 Schopenhauer cita Kiefer: "onde a ordem do magnetizador à sonâmbula, para realizar uma determinada ação no estado desperto, foi por ela seguida quando despertou, sem que ela se lembrasse claramente da ordem" (KIEFER apud SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 27, p. 416).

sua espécie, e cada órgão é expressão de uma manifestação universal, concretizado no desejo fixo característico de cada espécie, a vontade de vida121.

A vontade enquanto natura naturans, ou seja, potência criadora, está "imediatamente presente inteira e indivisa em cada uma de suas inumeráveis obras" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 25, p. 388), de modo que a engenhosidade só é percebida porque a natureza humana, habituada ao conhecimento deliberativo, compara as suas obras com as da natureza, criando a ilusão da existência de um ser inteligente por detrás do maquinário da natureza e do universo. É verdade que a percepção humana do mundo nunca abandona o raciocínio artificioso (künstlich), mas na essência não existe novidade e nem erro, a vontade enquanto coisa em si é o onipresente substrato de toda a natureza, e a onipotência originária de exposição e conservação dos organismos (Ibid., p. 393). O amor sexual revela, especialmente no amor apaixonado (leidenschaftliche Liebe), duas verdades essenciais da filosofia, as quais uma decorre da outra: 1) a indestrutibilidade do ser em si, que continua a viver na geração vindoura 2) o ser em si do humano reside mais na espécie do que no indivíduo. Argumenta Schopenhauer com retórica: "Por que o enamorado se entrega com total abandono aos olhos da eleita e está pronto a lhe prestar qualquer sacrifício? – Porque é a sua parte imortal que anseia por ela, provindo tudo o mais da parte mortal" (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 44, p. 666). No fundo, o sujeito apaixonado pensa tratar do próprio assunto, quando na verdade trata do de um terceiro, a espécie à qual este sujeito encontra-se enraizado e conectado, a Ideia de ser humano.

No documento Metafísica prática em Schopenhauer (páginas 111-114)