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1. Análise de alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros

1.3. Análise da Loi de Badinter – França

A Strict Liability teve a sua primeira expressão em França no século XIX no âmbito da compensação por danos causados por animais. A premissa era simples: quem possuía e utilizava os animais em proveito próprio, assumia a responsabilidade pelos danos que estes causassem. A natural perigosidade dos animais, provocada pela sua imprevisibilidade, fez com que a Strict Liability se tornasse uma necessidade223.

Em 1985, através da Lei 85 - 677 de 5 de julho, a Strict Liability é introduzida na legislação francesa, no âmbito da circulação terrestre. O Código de Napoleão de 1804 havia já introduzido

220 “Pedestrians are vulnerable road users who are often seriously injured on the roads. 16% of those killed in 2010–

2011 were pedestrians, while 13% of serious injuries and 7% of minor injuries were to pedestrians”. Danish Road Safety Commission, Every accident is one too many - a shared responsibility, Cit., p. 72.

221 “Inattention may be caused by many things. Studies from Sweden show that tiredness is a factor in at least one in

four fatal accidents. Then there are a large number of potential distractions both outside and inside the vehicle that can take the driver’s attention away from the traffic and create dangerous situations.”, Danish Road Safety Commission, Every accident is one too many - a shared responsibility,Cit., p. 63.

222 Dados retirados de: The Danish Road Safety Commission National Action Plan, Every Accident is one too many – a

shared responsibility, Cit., p. 77.

normas que configuravam responsabilidade objetiva224, no entanto, a Loi de Badinter foi criada no

sentido de melhorar a posição das vítimas nos acidentes de circulação terrestre225. A Loi de Badinter

recebeu o nome do seu impulsionador, Richard Badinter, Ministro da Justiça à época226. A sua

preparação demorou cerca de duas décadas e teve como base as premissas do maior nome da responsabilidade civil em França, André Tunc227.

O caráter específico trazido pela Loi de Badinter verifica-se desde logo pela expressa aplicação das suas normas a vítimas que não sejam condutores de veículos a motor228. Determina

a lei que os lesados serão compensados pelos danos não patrimoniais sofridos, para os quais não tenham contribuído com culpa229.

A Loi de Badinter configura ainda uma proteção superior às vítimas com menos de 16 anos, com mais de setenta anos, ou, independentemente da idade, possuam uma incapacidade permanente de 80%. A Lei determina que este grupo mais vulnerável será sempre compensado de todas as lesões não patrimoniais que sofra230.

O condutor do veículo a motor que tenha também sofrido danos verá a sua compensação limitada ou excluída, atendendo ao grau de culpa com que atuou na verificação do acidente231.

A responsabilidade do condutor do veículo apenas será afastada se este provar que o utilizador vulnerável, devido a um “erro indesculpável”, provocou o acidente ou, se colocou deliberadamente numa posição propícia a sofrer os danos232. Será considerada uma falha

224 Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda BARBOSA, Estudos a propósito da Responsabilidade Objetiva, Cit., p.

19.

225 Eva STEINER, French Law, A Comparative Approach, 2ª Edição, Second Edition, Oxford University Press, 2018, p.

275.

226 JaapHAGE, BramsAKKERMANS, Introduction to Law, Springer, 2014.

227 Cees VanDAM, European Tort Law, Second Edition, Oxford University Press, 2013, p. 408. 228 Art.º 3.º da Lei 85 - 677 de 5 de julho.

229 Art.º 3.º 1ª parte da Lei 85 - 677 de 5 de julho. 230 Art.º 3.º 2ª parte da Lei 85 - 677 de 5 de julho. 231 Art.º 4.º da Lei 85 - 677 de 5 de julho.

232 Artigo 3.º da Lei 85-677 de 5 de Julho, na versão de 14 de Janeiro de 2010, disponível para consulta em:

https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=LEGITEXT000006068902&dateTexte=20100114, (consultado em 20/11/2017).

indesculpável, se o utilizador vulnerável, sem justificação, se colocou numa situação de especial perigosidade, a qual deveria ter previsto233.

Segundo as normas europeias, todos os veículos devem possuir seguro, transferindo-se assim a responsabilidade da compensação do condutor para a seguradora. Esta assume o pagamento da compensação ao lesado, podendo, no entanto, exercer o direito de regresso sobre este, se ficar judicialmente comprovado que o acidente foi provocado por culpa exclusiva do lesado ou por este provocado voluntariamente234. Deste modo, a companhia de seguros assume em

primeira instância a compensação do lesado, podendo posteriormente reaver as quantias pagas. A forma de compensação será em princípio resolvida extrajudicialmente, apenas sendo necessário recurso às vias judiciais caso não haja acordo entre as partes. Este acordo tem início na apresentação, até oito meses após o acidente, de uma proposta por parte da companhia de

233 Cees Van DAM, European Tort Law, cit., p. 409.

234 “Article L211-1: Toute personne physique ou toute personne morale autre que l'Etat, dont la responsabilité civile

peut être engagée en raison de dommages subis par des tiers résultant d'atteintes aux personnes ou aux biens dans la réalisation desquels un véhicule est impliqué, doit, pour faire circuler celui-ci, être couverte par une assurance garantissant cette responsabilité, dans les conditions fixées par décret en Conseil d'Etat. Pour l'application du présent article, on entend par "véhicule" tout véhicule terrestre à moteur, c'est-à-dire tout véhicule automoteur destiné à circuler sur le sol et qui peut être actionné par une force mécanique sans être lié à une voie ferrée, ainsi que toute remorque, même non attelée.

Les contrats d'assurance couvrant la responsabilité mentionnée au premier alinéa du présent article doivent également couvrir la responsabilité civile de toute personne ayant la garde ou la conduite, même non autorisée, du véhicule, à l'exception des professionnels de la réparation, de la vente et du contrôle de l'automobile, ainsi que la responsabilité civile des passagers du véhicule objet de l'assurance. Toutefois, en cas de vol d'un véhicule, ces contrats ne couvrent pas la réparation des dommages subis par les auteurs, coauteurs ou complices du vol.

L'assureur est subrogé dans les droits que possède le créancier de l'indemnité contre la personne responsable de l'accident lorsque la garde ou la conduite du véhicule a été obtenue contre le gré du propriétaire.

Ces contrats doivent être souscrits auprès d'une entreprise d'assurance agréée pour pratiquer les opérations d'assurance contre les accidents résultant de l'emploi de véhicules automobiles.

Les membres de la famille du conducteur ou de l'assuré, ainsi que les élèves d'un établissement d'enseignement de la conduite des véhicules terrestres à moteur agréé, en cours de formation ou d'examen, sont considérés comme des tiers au sens du premier alinéa du présent article”. Code des assurances, disponível para consulta em:

https://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do;jsessionid=BF6C08D343530515FCBE2D6F20441E21.tpdila17 v_1?cidTexte=LEGITEXT000006073984&idArticle=LEGIARTI000006795331&dateTexte=20170507&categorieLien= cid#LEGIARTI000006795331, (consultado em 21/11/2017).

seguros ao lesado – ou, caso o lesado tenha entretanto falecido, à família deste – que contemple uma indemnização pelos danos sofridos. Não estando a situação da vítima ainda estabilizada, a proposta poderá ser provisória, devendo a proposta definitiva ser apresentada no prazo de cinco meses após a consolidação do estado de saúde daquela235. O lesado pode ainda requerer

judicialmente uma indemnização à seguradora pelo agravamento dos danos sofridos, pela demora no pagamento da indemnização236.

Para que a indemnização seja assumida pela seguradora do veículo, é necessário que este seja identificado. Caso o responsável não tenha sido localizado ou não possua um contrato de seguro, será o Fundo de Garantia criado pelo Estado, a assumir a indemnização pelos danos. A polícia deverá elaborar um relatório no qual sejam referidos esses factos e, deverá o mesmo ser remetido para o Fundo de Garantia, num prazo de 10 dias237.

A indemnização pelos danos tem de ser requerida, baseando-se em critérios objetivos - danos patrimoniais, lucros cessantes e danos emergentes - e subjetivos - danos não patrimoniais. O sistema francês não determina um valor limite para as indemnizações238 e, prevê ainda, a livre

escolha dos cidadãos pelo local onde pretendem ser medicamente tratados, o qual não terá qualquer custo, dado que é suportado pelo Estado239.

Não havendo ninguém responsável pelos danos, o lesado será compensado pelo sistema de segurança social francês de forma imediata e automática, independentemente da condição financeira e do facto de o indivíduo em causa não ter pagado todas as suas contribuições sociais240.

A Loi de Badinter representa uma responsabilidade objetiva mais extrema, mas a sua implementação teve um efeito muito positivo, quer ao nível da redução dos tempos de espera pelas indemnizações, quer pela resolução extrajudicial da maioria dos casos em que se verificaram

235 Art.º 12.º da Lei 85 - 677 de 5 de julho. 236 Art.º 22.º da Lei 85 - 677 de 5 de julho.

237 Michel CANNARSA, Compensation for Personal Injury in France, disponível para consulta em:

http://www.jus.unitn.it/cardozo/review/2002/cannarsa.pdf, (consultado em 21/11/2017).

238 Brenda MITCHELL, Report on Strict Liability, disponível para consulta em:

https://www.parliament.act.gov.au/__data/assets/pdf_file/0006/534678/05_Research-Report-on-Strict- Liability.pdf, (consultado em 05/12/2017).

239 MichelCANNARSA, Compensation for Personal Injury in France, cit., p. 15. 240 MichelCANNARSA, Compensation for Personal Injury in France, cit., p. 24.

danos físicos em utilizadores vulneráveis provocados por um veículo a motor241. A Federação

Francesa das Companhias de Seguro, da qual fazem parte 234 companhias de seguros, representando assim 90% do mercado francês de seguradores, apoia a Loi de Badinter, uma vez que os litígios passaram a ser resolvidos maioritariamente fora dos tribunais, permitindo reduzir o número de processos judiciais (e consequentemente os custos) e a atribuição mais célere das indemnizações aos acidentados242.

A introdução desta lei, inserida num programa de melhoria das condições de circulação em segurança, permitiu ainda reduzir o número de sinistros. Entre 1975 e 1998 houve uma redução de 42.6% de queda da mortalidade nas estradas243. O risco de sinistros em França, reduziu

de 140 acidentes por milhar de milhão de quilómetros percorridos em 1957 para cerca de 7 acidentes por milhar de milhão de quilómetros em 2010, significando uma descida de 4,8% por ano. Esta descida é reforçada pela redução do número de mortes que passou de 18.032 em 1972 para cerca de 3.469 em 2016244.

“The mobilization of the French Government and the relevant institutions, particularly civic organizations, together with a strong accident prevention and monitoring policy, reduced traffic fatalities in France by 20%, from 7242 in 2002 to 5732 in 2003. Much remains to be done, but one thing is already clear: it is by changing mentalities that we will, together, manage to win this collective and individual struggle for life”245.

241 ROAD SHARE STREERING GROUP, Roadshare, The Case for Presumed Liability on Scotland’s Roads, cit., p. 22,

(consultado em 30/11/2017).

242 ROAD SHARE STREERING GROUP, Roadshare, The Case for Presumed Liability on Scotland’s Roads, cit., p. 22,

(consultado em 30/11/2017).

243 ROAD SHARE STREERING GROUP, Roadshare, The Case for Presumed Liability on Scotland’s Roads, cit., p. 22,

(consultado em 30/11/2017).

244 Road Safety Development, France, p.3. Disponível para consulta em:

https://ec.europa.eu/transport/road_safety/sites/roadsafety/files/specialist/erso/pdf/forecast/dacota-forecast- factsheet-france_en.pdf,(consultado em 13/02/2018).

245 JacquesCHIRAC, President of France, World report on road traffic injury prevention, 2004, disponível para consulta

em: http://cdrwww.who.int/violence_injury_prevention/publications/road_traffic/world_report/intro.pdf, (consultado em 30/11/2017).