• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: ANÁLISE DOS TEMAS E FIGURAS NAS CANÇÕES-POEMAS

2.6 E depois de uma tarde/ Amor de Índio

2.6.2 Análise da canção Amor de Índio

A canção Amor de Índio foi composta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Alberto de Castro Guedes nasceu em 13 de agosto de 1951. Seu primeiro disco solo foi lançado em 1977, tendo como título A página do Relâmpago. Esse trabalho rendeu ao intérprete e compositor um show de lançamento no Teatro Ipanema, em 1978. Assim, no embalo desse trabalho, lançou, nesse mesmo ano, seu segundo disco, Amor de Índio, cujo nome era justamente uma referência à primeira canção do disco (CAYMMI, 1997, p. 9-21). Sobre seu parceiro nessa canção, basta dizer que Ronaldo Bastos é um dos principais letristas mineiros, tendo feito parceria com vários músicos de importância nacional, como Milton Nascimento e Flávio Venturini. Reproduzimos, a seguir, a letra da canção:

Amor de Índio

Tudo que move é sagrado E remove as montanhas Com todo o cuidado Meu amor

Enquanto a chama arder Todo dia te ver passar Tudo viver a teu lado Com o arco da promessa Do azul pintado

Pra durar

Abelha fazendo o mel Vale o tempo que não voou A estrela caiu do céu O pedido que se pensou O destino que se cumpriu De sentir seu calor E ser todo

Todo dia é de viver Para ser o que for E ser tudo

Sim, todo amor é sagrado E o fruto do trabalho É mais que sagrado Meu amor

Vale a luz do teu suor Lembra que o sono é sagrado E alimenta de horizontes O tempo acordado de viver No inverno te proteger No verão sair pra pescar No outono te conhecer Primavera poder gostar No estio me derreter

Pra na chuva dançar e andar junto O destino que se cumpriu

De sentir seu calor e ser tudo Sim, todo amor é sagrado

(GUEDES; BASTOS, 1978, faixa 1)

Amor é, sem dúvida alguma, o tema principal dessa canção. Entretanto, temos que verificar os matizes desse tema, por meio de uma análise temático-figurativa que nos permita apreender as relações contratuais entre enunciador (EC) e enunciatário. Isso porque, no nível discursivo, tais relações são alimentadas, entre outros mecanismos, pela presença de temas (e figuras) disseminados ao longo do texto. Logo, os temas, ao formarem percursos, e ser revestidos por figuras, mostram-nos qual o contrato específico proposto pelo enunciador da canção sobre o amor: o amor paixão, o amor platônico, o amor carnal, o amor espiritual etc.

Começaremos pelo tema do amor espiritual, verificado na análise de figuras como: “tudo que move é sagrado”, “remove as montanhas”, “Sim, todo amor é sagrado”, “E o fruto do trabalho/ É mais que sagrado/ Meu amor”. Com isso, vemos que o EC busca levar o enunciatário a crer num amor espiritual, que, sobretudo, transforma o olhar do amante numa espécie de “visão sagrada”. Tal visão é tão forte que transforma a figurativização do tempo em durabilidade afetiva, apesar da finitude das coisas: “Enquanto a chama arder/ Todo dia te ver passar/ Tudo viver a teu lado/ Com o arco da promessa/ Do azul pintado/ pra durar/ A abelha fazendo mel/ Vale o tempo que não voou”; e, ao mesmo tempo, reitera o tema do carpe diem, principalmente, em “Todo dia é de viver/ Para ser o que for/ E ser tudo”.

Esse tema do amor espiritual é incrementado pelo tema do destino (ou da inexorabilidade do encontro amoroso), que convoca não só temas mais frequentes do universo religioso, como a fidelidade (“tudo viver a teu lado/ Com o arco da promessa/ Do azul pintado/ Pra durar”), mas também temas evitados no/pelo discurso religioso, como o sexo/ amor carnal (“A estrela caiu do céu/ O pedido que se pensou/ O destino que se cumpriu/ De sentir seu calor/ e ser todo”), seja na indicação do calor dos corpos dos amantes, seja na sugestão imagética do coito – ser todo, significa, assim, a junção de duas partes (corpos) num todo (visualizado como um só corpo).

Ao sugerir a junção de temas como a fidelidade e o sexo, por exemplo, o EC investe num contrato persuasivo no qual o enunciatário deve valorizar positivamente o amor- paixão (união do amor espiritual e do amor carnal). Trata-se de uma formação ideológica compatível, por exemplo, com a que se faz presente em determinados textos de Os cânticos de Salomão, já que “O clímax do Cântico dos Cânticos é o louvor do amor veemente e fiel” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO, 1999, p. 778).

Entretanto, o discurso amoroso presente no universo religioso não é unívoco. A própria Igreja, que usou textos bíblicos para mostrar a junção amor carnal/amor espiritual, usou também a Bíblia para condenar “todo amor profano, considerando-o antítese do amor sagrado. Ela insistia particularmente sobre os perigos do excesso de amor entre esposos” (PRIORE, 2007, p. 123). Aliás, o tema do excesso também se encontra presente na canção, enfatizado, principalmente, pela reiteração do pronome tudo (e variantes), como em: “O destino que se cumpriu/ De sentir seu calor e ser tudo”.

Vejamos, brevemente, como essas questões foram abordadas no discurso religioso. De acordo com Priore (2007), ao longo da Idade Média, prevaleceram os ideais baseados no estoicismo, ou seja, na antiga moral cristã, que via a sexualidade como meio exclusivo de procriação. É por isso que “Santo Agostinho, no século V, resumia o casamento à procriação e ao cuidado com os filhos. O prazer puro e simples era ‘concupiscência da carne’, esterilidade que submetia a razão aos sentidos” (PRIORE, 2007, p. 123), chegando, inclusive a afirmar que a força do desejo não viria de Deus, mas de Satanás. Esses ideais, enquanto formação ideológica, ainda perduraram por bastante tempo. Um exemplo disso pode ser visto nos ideais do filósofo francês Decartes, já no século XVII: “o sexo era, por vezes, mencionado, mas na amizade, a razão tinha que dominar o ardor da carne. E a razão era, neste caso, vista como força ou obtenção divina” (PRIORE, 2007, p. 128-129).

Essa formação ideológica opõe-se àquela presente no discurso do EC. Esta coincidirá com a formação ideológica presente em textos veiculados a partir de meados do século XVIII. Nesse momento histórico, houve a junção das duas formas de amor (espiritual e carnal), vistas até então como opostas, o que permitiu o surgimento do amor-paixão, unindo essas duas vertentes. Nessa formação ideológica vemos o prazer como um direito dos amantes. Portanto, as relações contratuais estabelecidas entre o EC e seu enunciatário visam ao reconhecimento do amor-paixão como realização44 sagrada, evidenciando a junção corpo- alma como essência do amor sentido/vivenciado pelo narrador da canção.

44 Mais uma vez, convocamos uma categoria do nível narrativo, embora ele não seja nosso foco de investigação.