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CAPÍTULO 2: ANÁLISE DOS TEMAS E FIGURAS NAS CANÇÕES-POEMAS

2.3 Pátria minha/ Melodia sentimental

2.3.1 Análise do poema Pátria minha

Nascido no Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, o autor desse poema – Vinícius de Moraes – também exerceu a carreira diplomática, nela ingressando em 1943. Aliás, segundo Menezes (2011, p. 223), “o tempo em que o poeta viveu fora do país, trabalhando como diplomata, coincide com seu gradual afastamento da poesia e com a aproximação a outras artes, como o teatro, o cinema e, principalmente a música popular”. O

poeta manifestou-se contra a ditadura Vargas, pedindo a democracia. Esse posicionamento político repetiu-se durante o regime militar, acarretando a aposentadoria compulsória de Vinicius de Moraes, em 30 de abril de 1969. O poeta morreu em 10 de julho de 1980 (MENEZES, 2011).

Sobre o poema, trata-se de um dos textos do livro homônimo lançado em 1949. Abaixo transcrevemos o texto.

PÁTRIA MINHA

A minha pátria é como se não fosse, é íntima Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo É minha pátria. Por isso, no exílio

Assistindo dormir meu filho

Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi: Não sei. De fato, não sei

Como, por que e quando a minha pátria

Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água Que elaboram e liquefazem a minha mágoa Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...

Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos

E sem meias, pátria minha Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho Pátria, eu semente que nasci no vento

Eu que não vou e não venho, eu que permaneço Em contato com a dor do tempo, eu elemento De ligação entre a ação e o pensamento Eu fio invisível no espaço de todo adeus Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido De flor; tenho-te como um amor morrido A quem se jurou; tenho-te como uma fé

Sem dogma; tenho-te em tudo em que não sinto a jeito Nesta sala estrangeira com lareira

E sem pé direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra Quando tudo passou a ser infinito e nada terra

E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz À espera de ver surgir a Cruz do Sul

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha Amada, idolatrada, salve, salve! Que mais doce esperança acorrentada O não poder dizer-te: aguarda... Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para Rever-te me esqueci de tudo Fui cego, estropiado, surdo, mudo Vi minha humilde morte cara a cara Rasguei poemas, mulheres, horizontes Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não; a minha pátria é desolação

De caminhos, a minha pátria é terra sedenta

E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular Que bebe nuvem, come terra

E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem Uma quentura, um querer bem, um bem Um libertas quae sera tamem

Que um dia traduzi num exame escrito: “Liberta que será também”

E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa Que brinca em teus cabelos e te alisa Pátria minha, e perfuma o teu chão... Que vontade que me vem de adormecer-me Entre teus doces montes, pátria minha Atento à fome em tuas entranhas E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha Teu nome é pátria amada, é patriazinha Não rima com mãe gentil

Vives em mim como uma filha, que és Uma ilha de ternura: a Ilha

Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia E pedirei que peça ao rouxinol do dia Que peça ao sabiá

Para levar-te presto este avigrama:

“Pátria minha, saudades de quem te ama... Vinícius de Moraes”.

(MORAES, 1949/2005, p. 94-96, grifo do autor).

Encontramos nesse poema vários temas, como o exílio, a melancolia, a nacionalidade, o subdesenvolvimento etc. Veremos agora, como alguns desses temas são particularmente importantes para a apreensão da visão de mundo do EP.

Deparamo-nos, assim, com uma (in)definição subjetiva de pátria, e, por conseguinte, de patriotismo ou nacionalismo. Para que o discurso seja coerente, a recorrência de traços deve confirmar o que a análise de “pátria minha” sugere. De fato, ao analisarmos “A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/ É minha pátria/ Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água/ Que elaboram e liquefazem a minha mágoa/ Em longas lágrimas amargas”, percebemos os temas do intimismo e da melancolia, o que demonstra o subjetivismo do narrador ao expor seus sentimentos pela pátria.

Tal subjetivismo tem uma importância fundamental, pois coloca o sentimento de amor à pátria acima de definições. O sentimento do narrador (enquanto projeção do EP) não se enquadra, portanto, em definições objetivas de nacionalidade, como, por exemplo, a nacionalidade baseada em descendência (Ius sanguinis) ou por local de nascimento (Ius solis). É isso que depreendemos da análise de: “Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho/ Pátria, eu semente que nasci no vento/ Eu que não vou e não venho, eu que permaneço/ Em contato com a dor do tempo, eu elemento/ Eu fio invisível no espaço de todo adeus/ Eu, o sem Deus”. Reparemos que a única justificativa dos sentimentos do narrador pela sua pátria é amar tanto. Assim, repete-se o tema do intimismo, ligado, de forma privilegiada, ao tema34 do amor.

É, sobretudo, por meio dessa espécie de amor incondicional que se mostra o caráter peculiar do contrato de veridicção do enunciador do poema (EP). Isso porque o que se exaltam no poema não são os valores nacionais; ao contrário, alguns desses elementos são menosprezados pelo narrador: “Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias / De minha pátria, de minha pátria sem sapatos/ E sem meias, pátria minha/ Tão pobrinha/ Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta/ Lábaro não; a minha pátria é desolação/ De caminhos, a minha pátria é terra sedenta/ Não te direi o nome, pátria minha/ Teu nome é pátria amada, é patriazinha/ Não rima com mãe gentil”. Essa desvalorização, contudo, não se destina a pôr em evidência o tema do antinacionalismo, mas, sim, a ressaltar um nacionalismo que ultrapassa interesses políticos, econômicos etc., remetendo, assim, a uma forma peculiar de amor intimista à pátria.

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Lembramos que lexemas como amor, ódio, amizade etc. também remetem às paixões que, via de regra, são analisadas no nível narrativo, nível esse que, pelas razões já expostas, estamos contemplando apenas de forma pontual em algumas análises.

Esse sentimento é refinado pela presença de temas, como a afetividade e o desejo. É o que sobressai na análise do trecho: “vontade de beijar os olhos de minha pátria/ De niná- la, de passar-lhe a mão pelos cabelos/ Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa/ Que brinca em teus cabelos e te alisa/ Pátria minha, e perfuma o teu chão.../Que vontade que me vem de adormecer-me/Entre teus doces montes, pátria minha/ Atento à fome em tuas entranhas/ E ao batuque em teu coração”. Por meio desses temas chegamos, então, ao tema do lirismo amoroso. Vemos, aliás, traços peculiares que podem ser encontrados em grande parte da poesia de Vinicius de Moraes, o que faz dele, fundamentalmente, “um poeta do amor”, que cantou esse sentimento, de várias formas: “a paixão desenfreada, o sofrimento pela indiferença, ou pela rejeição da amada. A beleza da mulher, sua sensualidade, sua brandura, sua delicadeza e sua força...” (OMRAN, 2010, p. 11).

No entanto, precisamos ressaltar que se trata de uma forma peculiar da visão de mundo do enunciador. De fato, na análise do poema, vemos que, para declarar seu amor à pátria, o EP o faz pelo prisma do lirismo amoroso. Só que isso não significa a exclusão de outros temas. Por exemplo, o subdesenvolvimento (“tão pobrinha”) demonstra certo engajamento político. Mas o que importa é que a visão de mundo que o EP quer passar para seu enunciatário é a de que o amor supera esses outros temas. Com isso, vemos que amar a pátria não é exaltar elementos ditos nacionais, é, simplesmente, dedicar-lhe o amor como se ela fosse a mulher amada.