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CAPÍTULO 1 OS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS SOBRE A

1.2 Análise crítica de Marx: a perspectiva do Estado capitalista

Quem vai ampliar e/ou superar essa atribuição ao homem como um sujeito histórico, com potencialidades de transformação em seu meio, vai ser Karl Marx, pensador alemão do século XIX que vai elaborar em seus diversos textos um importante estudo sobre o modo de produção capitalista e as relações sociais que são por ele produzidos.

No que diz respeito ao Estado, é consensual nos estudos da tradição marxista que o pensador alemão não submeteu esse a um tratamento mais sistemático. Porém, é existente na obra de Marx e Engels, uma concepção genérica sobre o Estado que pode servir como uma espécie de fio condutor para sua análise política.

Uma vez que Marx não desenvolveu uma única e coerente teoria da política e ou do Estado, as concepções marxistas do Estado devem ser deduzidas das críticas de Marx, a Hegel, do desenvolvimento da teoria de Marx sobre a sociedade (incluindo sua teoria da economia política) e de suas análises de conjunturas históricas específicas, tais como: a revolução de 1848, na França, a ditadura de Luís Napoleão, ou a Comuna de Paris de 1871 (CARNOY, 2003, p.65).

Logo, para entendermos o pensamento marxiano e parte da tradição marxista em relação às concepções de Estado, iniciaremos fazendo breves considerações sobre o pensamento de Hegel, que foi um grande filósofo alemão, cuja teoria sobre o Estado foi questionada posteriormente por Karl Marx.

O ponto fundamental de discussão entre estes dois pensadores gira entorno desta concepção (Estado). A obra “A filosofia do direito” de Hegel serviu como base tanto para a exposição das ideias do autor, quanto para o questionamento de Marx. Para Frederico (2010), esta era um obra de clara apologia ao Estado moderno, apresentado como o momento final e triunfante da realidade. Maior filósofo alemão em sua época, Hegel tinha sua filosofia como referência para justificar o Estado prussiano, assim como para criticá-lo.

A filosofia hegeliana legitimava a ordem política existente no momento, ou seja, o Estado prussiano. Era um pensamento brilhante, porém conservador, que descartava praticamente uma especulação sobre o futuro. Entretanto, segundo Frederico (2009), isso ocorreu devido a razões metodológicas – realismo metodológico – que trazia certo apelo ao presente.

Coutinho (2011) afirma que o autor foi crítico da teoria contratualista do Estado. Para Hegel as teorias do contrato social resultam de uma injustificada exploração de um instituto do direito privado para o campo do direito público. Ou seja, seria um grande equívoco valer- se de algo subjetivo como é o contrato, para explicar uma realidade pública, objetiva e

universal como o Estado – que enquanto totalidade é algo anterior e superior aos indivíduos que o compõem.

Na medida em que Hegel identifica Estado e sociedade – ou seja, na medida em que, para ele, o Estado não é um momento da vida social, mas sim a totalidade que integra todos os momentos -, ele termina por negar a possibilidade de que a específica esfera da política seja contratualmente (ou consensualmente) fundada. Em outras palavras: a correta negação do subjetivismo individualista converte-se num objetivismo determinista, no qual a liberdade nada mais é do que “a consciência da necessidade”, sem que haja espaço para uma esfera de intersubjetividade na qual os sujeitos, ainda que no limite de suas determinações objetivas, sejam capazes de “inventar” contratualmente os conteúdos de sua eticidade (COUTINHO, 1994, p.136, grifos do autor).

Mas o que seria eticidade para Hegel? Para o filósofo alemão a sociedade civil se subordina ao Estado, “o que implica não uma repressão, mas sim uma superação das vontades particulares expressas na primeira na vontade universal encarnada nesse último” (COUTINHO, 1994, p. 132).

De acordo com o autor supracitado, para conceptualizar tal superação e ao mesmo tempo legitimar a prioridade do público (universal) sobre o privado (particular) – legitimação que é a principal meta de sua teoria de Estado -, Hegel elabora um conceito fundamental que é a eticidade.

Vivendo em comunidade, os homens constroem determinados valores, determinadas normas de conduta, que regulam e organizam sua ação interativa, emprestando um conteúdo concreto às suas escolhas individuais. Manifestando-se de modo ainda natural na família e de forma inconsciente e fragmentária na sociedade civil, a eticidade encontra no Estado – e no Estado entendido não apenas como uma esfera particular entre outras, não apenas como governo, mas como a manifestação concreta do “espírito objetivo” – a figura efetivamente adequada (COUTINHO, 1994, p.132).

E o que seria então o Estado em suma para o filósofo alemão? De forma simplificada, de acordo com Frederico (2010), o raciocínio de Hegel parte de um único conceito: o de vontade. E, a partir dele, desenvolve os três momentos da vida social: a família, a sociedade civil e o Estado político.

Segundo Coutinho (2011), a primeira forma objetiva de comunidade universalizadora de interesses é a família (figura inicial e ainda natural da eticidade), aquela esfera do ser social que, com base em formas interativas de práxis, estabelece normas comunitárias para a

ação dos indivíduos. A terceira (a mais universal figura da eticidade) seria o Estado. Porém, como mediação entre estas duas esferas aparece a sociedade civil (a segunda figura da eticidade). Estes três momentos manifestariam a existência de um movimento dialético entre as suas vontades, ou seja, no momento da família se manifesta a vontade singular, no momento da sociedade civil a vontade particular e num último momento, do Estado, a vontade universal.

Celso Frederico resume de forma interessante o debate supracitado:

A família é a figura inicial do percurso. Estamos aqui diante de uma totalidade integrada, de um espírito comunitário baseado nos laços de sangue. Num segundo momento, essa totalidade natural se aliena e irrompem as vontades individuais. Estamos aqui na sociedade civil que, inicialmente, é o momento da dilaceração em que os conflitantes interesses individuais se manifestam – é a guerra de todos contra todos. Em seguida, os indivíduos atomizados percebem que pode haver entre eles interesses comuns. Surgem então as diversas corporações que agregam os interesses particulares comuns, anunciando assim a incipiente presença da universalidade. Esta, entretanto, só se realiza plenamente no terceiro momento: o Estado político, aquele órgão que reintegra os interesses antagônicos da sociedade civil. Agora, a vontade universal se torna consciente e racional, materializando- se num indivíduo singular: o monarca (FREDERICO, 2010, p.16 - 17).

É a partir dessa constatação do rei como representante do universal e encarnação da racionalidade feita por Hegel que Marx e os críticos/adversários da monarquia da época vão ficar inconformados.

Para Frederico (2009), é em 1843, o momento decisivo do começo da trajetória do pensamento do Estado para Marx, quando o mesmo lutava contra o Estado prussiano e se defronta com a maior obra de Hegel: “A filosofia do direito”. Esta era para Marx, a mais refinada expressão teórica do Estado moderno. Portanto, ao criticar a obra do velho filósofo alemão, concomitantemente ele criticava a sua realidade.

Desta forma, Marx debruçou-se sobre a obra de Hegel para buscar entender e ao mesmo tempo ter armas e argumentos para criticar o Estado em vigência. Tendo papel revolucionário na crítica a filosofia da época, ele se aproximava do ideário dos jovens- hegelianos, que confrontavam-se com o status quo e a filosofia dominante (hegeliana), por meio da reinterpretação revolucionária da própria filosofia de Hegel, porém, de acordo com as conveniências do momento.

Segundo Frederico (2009), os temas mais debatidos na época eram a religião e a política. Como outro jovem-hegeliano, Feuerbach, já havia praticamente esgotado o debate sobre a religião, restava a crítica da política, entendida como a crítica do Estado político.

Marx, então elege como objeto a ser desmistificado o Estado. No texto Crítica da filosofia do Direito de Hegel autor vai fazer uma análise esmiuçada sobre o texto hegeliano, e vai criticar/protestar contra o “logicismo abstrato que toma a família e a sociedade civil como dois momentos de um silogismo lógico cuja conclusão é o Estado” (FREDERICO, 2009, p.56). Nesse momento ainda preso à dupla influência de Hegel e Feuerbach, o autor tenta desenvolver sua crítica política tendo como referência (como ponto de partida) a concepção hegeliana de Estado. E, vai reivindicar a democracia direta como uma proposta política alternativa àquela monarquia glorificada por Hegel.

Para Marx, haveria não uma integração entre a sociedade civil e o Estado, mas uma separação, um antagonismo. O Estado é uma alienação – teoria da alienação de Feuerbach,

restrita à esfera religiosa estendida para o campo da política por Marx – da sociedade

civil: os indivíduos em vez de exercerem diretamente o poder de decisão, alienam esse poder para a esfera estatal. Superar a alienação implica aqui tomar nas mãos o poder decisório. A perspectiva política de Marx, nesse momento, é a democracia direta. Essa concepção radical de democracia é reivindicada como um meio para suprimir essa forma de alienação que é o Estado. Tratava-se assim de suprimir o Estado e não as classes sociais, já que o texto, refletindo o desconhecimento da economia política, não tratou de esmiuçar as diferenças e antagonismos existentes no interior da sociedade civil (FREDERICO, 2010, p.18 – 19, grifo nosso).

Recapitulando, Hegel entendia a sociedade civil como as esferas das atividades e dos interesses pessoais e corporativos; e o Estado como a sede das atividades e interesses humanos universais. Marx, ainda sem a base da Economia Política (que só vai ter contato posteriormente) em suas análises, acaba aceitando boa parte destas caracterizações. Ou seja, nesse primeiro momento da análise de Estado, ele ainda vai se encontrar sob a influência da tese da separação (entre a sociedade civil e o Estado) que só vai ser futuramente abolida em textos mais maduros.

Contudo, Marx, vai se livrando desta ideia de democracia, e começa a debater sobre dialética e comunismo, e a ruptura com Hegel nesta concepção de Estado só se torna definitiva, quando o autor formula a hipótese do Estado como aparelho material a serviço de uma classe.

O Estado, então, passa a ser o local onde o interesse de uma classe – interesses particulares, portanto – impõem-se a todos como se fossem os verdadeiros interesses universais. Esse Estado não está em nada “alienado” dos interesses particularistas que representa, interesses radicados no interior da sociedade civil. E nada tem de abstrato e fantasmagórico como

sugere o seu ameaçador aparelho repressivo voltado contra os setores bem determinados da sociedade civil (FREDERICO, 2009, p.82).

O contato de Marx com a economia política foi essencial para que o autor pudesse perceber as contradições dentro da sociedade civil. Tendo contato com o movimento operário, em 1844, o autor escreve os Manuscritos econômico-filosóficos utilizando a base do inicio do aprendizado sobre economia política. Com isso, Marx foi alterando sua concepção sobre Estado e sociedade civil, contrapondo-se à teoria que vem de Hegel. Deste modo,

A contradição, assim, passa a se dar não mais entre o Estado abstrato, de um lado, e a sociedade civil atomizada, de outro, mas no próprio interior da sociedade civil. Influenciado pelos autores da Revolução Francesa, Marx descobre a luta de classes como elemento dinâmico a movimentar a realidade social [...] (FREDERICO, 2009, p.123).

Para Coutinho (1994), nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx já mostra como a constituição do Estado é causa e efeito da divisão da sociedade em classes antagônicas, ou seja, em proprietários dos meios de produção e trabalhadores que possuem apenas para a venda, a sua força de trabalho. Logo, a sociedade civil seria o ponto de partida para explicar o Estado, que também deixaria então de ser apenas a encarnação formal e alienada do suposto interesse universal (concepção influenciada pela filosofia hegeliana), passado a ser um organismo que exerce uma função de garantia da propriedade privada, assegurando a reprodução da divisão da sociedade em classes (conservando a “sociedade civil”), e, garantindo, desse modo, a dominação dos burgueses, proprietários dos meios de produção sobre os proletários, os não proprietários desses meios.

“O Estado, assim, é um Estado de classe: não é a encarnação da razão universal, mas sim uma entidade particular que, em nome de um suposto interesse geral, defende os interesses comuns de uma classe particular” (COUTINHO, 1994, p.19). Isso ocorre, pois, sendo o Estado uma expressão da sociedade civil, as formas de regulação social se submetem ao papel exercido pela sociedade civil, já que o Estado não é uma esfera autônoma desta.

No texto Manifesto do Partido Comunista, Marx traz a definição do Estado como o “comitê executivo da burguesia”. Nas palavras do autor: “O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo” (Marx, 2008, p. 12).

De acordo com Frederico (2010, p. 18-19), “Nessa formulação e nas futuras, Marx procura mostrar como os poderosos setores da sociedade civil conseguem capturar o poder

estatal para usá-lo como extensão de seus interesses particulares”. E tais interesses como vamos perceber no desenvolvimento do trabalho continuam se manifestando na contemporaneidade, através do fenômeno da Judicialização (já que, as formas políticas, jurídicas e ideológicas, são solicitadas a se inserir no vazio que se abre nas condições capitalistas de reprodução para a manutenção do modo de produção). Mesmo posteriormente (autores marxistas e o próprio Marx junto com Engels) ao “ampliarem” as suas análises sobre o Estado moderno, o traço da instituição Estado como um instrumento de difusão das ideias de classe em vigência no poder ainda se encontra em extrema atualidade. Entretanto, isso vai ocorrer nos dias atuais de uma forma bem mais refinada, com o aprimoramento de novos aparelhos/aparatos dentro do próprio Estado que possuem a finalidade do “controle social”, instrumento que segundo Mészáros (1987), dá legitimidade à funcionalidade do Estado à garantia de reprodução dos interesses do capital. E a hipótese defendida neste estudo é que o Poder Judiciário é este tipo de instituição que contribui de alguma forma para esse controle da sociedade.

Todavia, anterior mesmo à publicação do Manifesto, o autor já estabelece o que seria a base para esta primeira formulação em relação a sua concepção de Estado. Principalmente nos textos: “A Questão Judaica” e na “Introdução” à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, no qual mais diretamente vai se ater sobre os temas políticos da época (a emancipação dos judeus – fazendo uma crítica ao Estado político e não à teologia como fora feito na época, a realização prática da filosofia etc.).

Na Introdução, o autor vai fazer referência pela primeira vez a uma classe universal, posta como um sujeito revolucionário capaz de abrir caminho para a emancipação humana, o proletariado, através da derrubada do Estado burguês. Utilizando ainda as referencias de Feuerbach e sua crítica à religião, Marx, vai elaborar uma contundente crítica em relação à esfera política (MARX, 2010).

Contudo, vai ser somente quando escreve em parceria com Engels, A ideologia alemã, que a concepção materialista e dialética da história é apresentada contra o idealismo dos jovens-hegelianos, inclusive Feuerbach, que é superado filosoficamente (FREDERICO, 2010).

Nesta obra supracitada, Marx (1986), desenvolve reflexões sobre a dominação de classe através das forças de produção. Ele afirma que tal poder social, é derivado de sua riqueza, e tem sua expressão prático-idealista na forma de Estado existente. Esta análise é

feita através da concepção de história que consiste em desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio atrelada a esse modo de produção (capitalista) e por ele concebido. O autor traz ainda nesse texto a sociedade civil como o fundamento de toda a história. E explicita a sua nova concepção de Estado, ao expor que

[...] na medida em que a propriedade privada se emancipou da comunidade, o Estado alcançou uma existência particular, ao lado e fora da sociedade civil; mas ele não é mais do que a organização que os burgueses criaram para si, tanto em relação ao exterior quanto ao interior, com a finalidade de garantirem reciprocamente suas propriedades e seus interesses (COUTINHO, 1994, p.19).

Marx vê a necessidade de uma transformação massiva dos homens, que para ele só pode se realizar por um movimento prático, por uma revolução. Nesse momento, o autor só vê a possibilidade de derrubada da burguesia através da revolução, pois somente através desta, a classe operária, sujeito histórico da revolução, tem a possibilidade de tomar o poder com a potencialidade de fundar uma nova sociedade.

No texto, o autor ainda expõe um debate fundamental sobre as ideias da classe dominante: para ele a classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual. Desta forma, as ideias dominantes são a expressão ideal das relações materiais dominantes.

A burguesia tende a apresentar o seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade. Colocando suas ideias e interesses como as únicas racionais e universalmente válidas. Pois, existe a necessidade desta classe em apresentar um interesse particular como interesse geral, e esse como dominante, sendo esta uma das estratégias para a dominação de uma classe sobre a outra. Para Marx, as ideias prevalentes na sociedade são produzidas a partir do modo de produção capitalista, que revela o processo de controle da classe burguesa em relação à classe trabalhadora (MARX, 1986).

São os estudos em relação à crítica à economia política que vão levar Marx ao aprofundamento da análise sobre a sociedade civil, o funcionamento da ordem social burguesa e de seu Estado - vendo este de outra forma, organicamente ligado a sociedade civil e não separado como era a proposição de Hegel. Este tem sua gênese nas relações sociais concretas, não podendo ser compreendido de forma simplista como uma entidade em si.

O avanço decisivo de Marx no sentido do “marxismo” ocorre quando, ao descobrir a importância ontológica-social da economia política, ele busca analisar os fundamentos materiais dessa divisão da “sociedade civil” em interesses particulares e reciprocamente antagônicos (COUTINHO, 1994, p.19).

No texto 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx (1986) aprofunda sua análise principalmente sobre a sociedade civil e suas classes sociais. Para Coutinho (1994), enquanto no Manifesto o autor simplificou os antagonismos de classe, dividindo a sociedade em campos opostos, burguesia e proletariado, no 18 de Brumário, ele se refere como base para fazer sua análise das configurações assumidas pelo Estado Francês posteriormente à Revolução de 1848, a um quantitativo bem mais amplo de classes e frações de classe, ou seja, volta-se para a análise da sociedade de uma forma bem mais atenta e percebe para além do proletariado, a existência da burguesia industrial, comercial e financeira, da pequena burguesia, em campesinato, em lúmpen-proletariado o que proporciona uma análise mais rica e concreta do Estado e das relações sociais.