• Nenhum resultado encontrado

2.2 ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS

2.2.2 Abordagem analítica

2.2.2.2 Análise discursiva

Como Gill (2002) destaca, não existe uma única “análise do discurso”, mas muitos estilos diferentes de análise, no entanto todas partilham uma rejeição à noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, partilham também da convicção da importância central do discurso na construção da vida social. Um aspecto necessário para o analista do discurso é mergulhar no material estudado. Gill aponta que o analista do discurso está interessado no detalhe das passagens do discurso, embora fragmentadas e contraditórias, e com o que é realmente dito ou escrito, não com alguma ideia geral que parece ser pretendida. O que se faz é produzir leituras de textos e contextos que estão garantidas por uma atenção cuidadosa aos detalhes, e que emprestam coerência ao discurso em estudo.

Para Maingueneau, o tom do discurso confere autoridade ao que é dito. Esse tom reflete não só “a dimensão propriamente vocal, mas também o conjunto das determinações físicas e psíquicas ligadas pelas representações coletivas à personagem do enunciador” (Maingueneau, 2011, p.98). Dessa forma, o que é dito e o tom com que é dito são igualmente inseparáveis.

O autor ainda ressalta que: “além disso, todo enunciador é também seu próprio coenunciador, que controla e, eventualmente, corrige o que diz” (MAINGUENEAU, 2006, p.23). Não basta ouvir um discurso para ser dele um coenunciador, a identificação do coenunciador nem sempre é evidente, os participantes podem estar implicados na interação ou fora do jogo interlocutivo, exercendo apenas o papel de testemunhas. Nesse sentido, Maingueneau (2006, p.23) distingue o coenunciador modelo (ou ideal) do coenunciador efetivo (público).

para enunciar, o locutor é, efetivamente, obrigado a construir para si uma representação de um coenunciador modelo (dotado de um certo saber sobre o mundo, de certos preconceitos, etc). No oral, ele pode modificar no curso da enunciação se o coenunciador emite sinais divergentes.[ ] Ao estudar um discurso, pode-se com base em índices variados, reconstruir o coenunciador modelo que ele implica. Quanto aos públicos... eles diferem necessariamente do coenunciador modelo construído pelo discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p.23)

O autor afirma ainda, que o poder de persuasão de um discurso consiste, em parte, em levar o ouvinte a se identificar com a movimentação de um corpo investido

de valores socialmente especificados. Tal perspectiva desencadeia a questão da eficácia do discurso, o coenunciador é alguém que tem acesso ao dito através de uma maneira de dizer baseada numa maneira de ser. Contudo, a unidade de análise relevante não é o discurso, mas o espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos. Desse modo, o interdiscurso tem precedência sobre o discurso.

Nessa visão, o que se analisa não são os discursos, mas a relação constitutiva dos interdiscursos. Assim, Maingueneau (2008) propõe um procedimento de uma semântica global para integrar os discursos, tanto na ordem do enunciado, quanto no da enunciação. Uma semântica global possibilita a distinção do fundamental e superficial, do essencial e acessório, visa a significância discursiva em seu conjunto, postula enfim a existência de um princípio dinâmico que rege o conjunto dos planos de uma língua. Ao se referir ao esquema construtor global, o autor aponta algumas marcas discursivas para que se analise uma determinada categoria como: o vocabulário, os temas, o estatuto de enunciador e do destinatário, a dêixis enunciativa e o modo de enunciação.

Com isso, Maingueneau (2008), destaca que não há uma sequência lógica a ser seguida, mas sim tendo como a única finalidade ilustrar a variedade das dimensões abarcadas pela perspectiva de uma semântica global, que nada impede de isolar outras ou de repartir diferentemente as divisões propostas.

O vocabulário designa conjuntos discursivos delimitados, em que há uma congruência notável entre a área de significação linguística de um termo e o sistema de restrições de um discurso. O vocabulário corresponde a palavras pertencentes a um determinado universo discursivo. Os temas designam aquilo de que um discurso trata, em qualquer nível que seja. Segundo Maingueneau (2008, p.81), “os temas mais importantes são aqueles a que recaem diretamente sobre as articulações essenciais do modelo semântico.” O autor resume em várias proposições a questão dos temas no espaço discursivo:

1) Um discurso dado integra semanticamente todos os seus temas, ou seja, eles estão todos de acordo com seu sistema de restrições.

2) Esses temas se dividem em dois subconjuntos: os temas impostos e os temas específicos.

2’) Esses próprios temas impostos se dividem em temas compatíveis e em temas incompatíveis. Os primeiros convergem semanticamente com o sistema de restrições; os segundos, não, mas mesmo assim estão integrados, em virtude da proposição (1).

2’’) Os temas específicos são próprios a um discurso. Sua presença se explica por sua relação semântica privilegiada com o sistema de restrições. (MAINGUENEAU, 2008, p.84)

Para o autor, os diversos modos de subjetividade enunciativa dependem igualmente da competência discursiva, e cada discurso define o estatuto que o enunciador deve se atribuir e o que deve atribuir a seu destinatário para legitimar seu dizer.

Quanto a dêixis discursiva, Maingueneau (2008) afirma que ela se manifesta no nível do universo de sentido que uma formação discursiva constrói através de sua enunciação. Para o autor, o ato de enunciação supõe a instauração de uma dêixis espaciotemporal que cada discurso constrói em função de seu próprio universo. Maingueneau afirma que “essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e temporal, define de fato uma instância de enunciação legítima, delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2008, p.89).

Já em relação ao modo de enunciação, o autor chama de maneira de dizer. Esse modo de dizer não repousa sobre um único enunciador, uma vez que a interação é preponderante e o sujeito que fala não é necessariamente a instância que se encarrega da enunciação. Maingueneau aborda três dimensões no modo de enunciação:

1. O discurso, através do corpo textual, faz o enunciador encarnar-se, dá-lhe corpo;

2. Esse fenômeno funda a ‘incorporação’ pelos sujeitos de esquemas que definem uma forma concreta, socialmente caracterizável, de habitar o mundo, de entrar em relação com os outros;

3. Essa dupla ‘incorporação’ assegura, ela própria, a ‘incorporação imaginária’ dos destinatários no corpo dos adeptos do discurso.

Nessa perspectiva, o destinatário não é somente um consumidor de ‘ideias’. Ele acede a uma ‘maneira de ser’ através de uma ‘maneira de dizer’. (MAINGUENEAU, 2008, p.93-94)

O autor alerta para a distinção fundamental entre duas maneiras de enunciar, dois planos de enunciação, embreado e não embreado, conforme a relação que se estabelece entre o enunciado e a situação de enunciação. Os enunciados embreados

comportam embreantes6 que estejam em relação com a situação de enunciação.

Maingueneau (2011) complementa dizendo que geralmente esse tipo de enunciado contém, além de embreantes, outras marcas da presença do enunciador: apreciações, interjeições, exclamações, ordens, interpelação do coenunciador. Eles constituem a imensa maioria dos enunciados produzidos. Os enunciados não embreados são os enunciados desprovidos de embreantes, isolados da situação de enunciação. Segundo o autor, eles não são interpretados em relação à situação de enunciação; procuram construir universos autônomos. Apresentam-se como se estivessem desligados de sua situação de enunciação. Como exemplo Maingueneau (2011) traz as generalizações.

Um outro elemento destacado pelo autor é o modo de coesão. Maingueneau (2006) afirma que o modo de coesão próprio de cada formação discursiva remete a uma teoria da ‘anáfora’ discursiva, ou seja, à maneira pela qual um discurso constrói sua rede de remissões internas. Esse domínio, segundo o autor, recobre fenômenos muito diversos, entre os quais o recorte discursivo e os encadeamentos. Para Maingueneau (2006),

analisar a coesão de um texto é apreendê-la como um encadeamento, no qual fenômenos linguísticos bastante diversos fazem, ao mesmo tempo, progredir o texto e asseguram sua continuidade por repetições. Em particular:

• A repetição de constituintes;

• As unidades ‘anafóricas’ ou catafóricas’ que se interpenetram graças a outros constituintes, situados antes (anáfora) ou depois (catáfora) no contexto: pronomes, substituições lexicais...

• Elipses;

• A progressão temática;

• O emprego dos tempos verbais;

• Conectivos entre frases de oposição (no entanto...), de causa/consequência (é por isso que, então...), de adição (além disso...), de tempo (em seguida...) ...;

• Marcadores que secionam o texto, tornando perceptível sua configuração (em primeiro lugar, por outro lado...);

• Inferências que podem estar inscritas na estrutura linguística ou repousar sobre um saber enciclopédico. (MAINGUENEAU, 2006, p.25- 26)

6 Segundo Maingueneau enbreantes são unidades linguísticas cujo valor referencial depende do

ambiente espaço-temporal de sua ocorrência. Eu é um embreante porque seu referente é identificado como o indivíduo que, em cada ocorrência, em cada acontecimento enunciativo, está em condições de dizer eu. Os embreantes permitem opor os enunciados que organizam suas marcações com relação à situação de enunciação e aqueles que constroem marcações através de um jogo de envios internos ao enunciado. (MAINGUENEAU, 2006, p.49)

Contudo, a semântica global não se destina somente a analisar ideias, mas especifica o funcionamento discursivo, que em graus diversos investe nas vivências dos sujeitos. A análise discursiva proposta por Maingueneau possibilitou a localização essencial das principais marcas discursivas da constituição da identidade docente.