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ANÁLISE DISCURSIVA DO DIÁRIO 2: “TURIPEREGRINAÇÃO A LOURDES

5.1 Análise discursiva do DIÁRIO

Comecemos por fornecer uma definição de discurso já disponibilizada no DIÁRIO 1: “O discurso é, antes de mais, tudo o que é dito, e ao mesmo tempo a forma como é dito” (Camlong 1984: 121). O discurso é o dizer, é a maté- ria linguística (palavras, frases, pontuação, ritmo) composta pela gramática, pela temática e pelo idioleto, o estilo de cada escrevente, como acabamos de exemplificar nas notas estilísticas deste diário. A escrevente tem à sua dispo- sição, dada a sua proficiência em língua materna, um conjunto de pautas ou um instrumentário de vocabulário, de combinações sintáticas, retóricas, ou seja, idioletais existentes no sistema linguístico português que esta controla na perfeição.

Antes de mais importa notar que a produção do tecido discursivo do DIÁRIO 2 assenta na estrutura tradicional da construção dum texto escrito. É constituído, grosso modo, por uma abertura com as motivações da diarista para a escrita do texto viático, um desenvolvimento com a descrição mais de- talhada ou menos do desenrolar da viagem por etapas cronológicas marcadas pelos dias da viagem, desde a saída de casa e da sua cidade natal (dia 26 de setembro de 1958), narrando a viagem dia após dia com os dados cronológi- cos e espaciais precisos, seguindo um programa estipulado pelo agente turís- tico escolhido pela narradora-viajante e terminando com um encerramento que relata o regresso a casa, à sua cidade e fecha com as impressões gerais da viagem.

Para a abordagem linguística do presente diário, socorremo-nos da análise vocabular e discursiva facultada pelo programa de estatística lexical (STA- BLEX 6) da autoria de André Camlong já utilizado na abordagem linguística e discursiva do DIÁRIO 1.

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Para concretizar a análise vocabular do presente diário, efetuamos uma segunda edição do DIÁRIO 2, uma edição uniformizada, na qual juntamos datas, topónimos, vários complementos com vista à aplicação do programa de estatística lexical. A referida metodologia de estatística paramétrica ba- seia-se na “complementaridade de uma ferramenta — informática — e de estatística paramétrica —, permite um tratamento integral e exaustivo do texto e apresenta-se como científico, por ser descritivo, objectivo e induti- vo” (Zapparoli; Camlong 2002: 25). A metodologia em causa tem em conta a análise dos dados globais e permite atingir os dados particulares, através duma leitura horizontal, comparativa ou contrastiva e duma leitura vertical executada de variável a variável. No DIÁRIO 1, fizemos uma leitura compa- rativa das 23 viagens ao santuário de Fátima, neste diário, visto que existe apenas uma turiperegrinação não aplicamos a metodologia duma forma tão completa.

No estudo vocabular que fizemos ao DIÁRIO 2, dado que temos ape- nas um discurso e não vários (23) como no DIÁRIO 1, tivemos de seguir outra metodologia. Dividimos o discurso em 11 pequenos textos relativos aos relatos de cada dia de viagem, de 26 de agosto a 5 de setembro de 1958. Não fizemos uma análise comparativa e contrastiva tão completa como a do DIÁRIO 1, porque os textos são muito pequenos, com muito pouco voca- bulário e teríamos resultados pouco satisfatórios. Resolvemos, então, fazer uma análise vocabular e temática quantitativa. Essa abordagem está estriba- da em gráficos de barras dos vocábulos mais representativos das temáticos do DIÁRIO 2.

Tal como fizemos para o DIÁRIO 1, exemplificamos abaixo para o DIÁ- RIO 2 as coordenadas enunciativas pessoais, espaciais e temporais presentes no “eixo do discurso”, bem como as referências intertextuais explícitas encon- tradas no “eixo dos discursos no discurso” (Fonseca 1994: 315), seguindo a análise enunciativo-discursiva proposta por Joaquim Fonseca.

Como explanou o mencionado linguista: “Todo o discurso é imediata- mente dominado por uma situação enunciativa, que se organiza em torno das coordenadas Eu-Tu / Aqui / Agora” (Fonseca 1994: 315). “É a partir desse sistema de coordenadas – o EU/TU – AQUI – AGORA da enunciação – que se realizam as operações de referenciação que tornam possível a significação e que constituem a base do funcionamento da deixis” (Fonseca 1996: 439).

O segundo eixo encontrável nos discursos é “eixo dos discursos no discur- so”: a introdução de discursos doutros autores nomeados (discursos explíci- tos), outros insinuados (discursos implícitos) na formação discursiva, e ain- da discursos, por exemplo, doutros textos viáticos da mesma diarista, tanto explícitos como implícitos. Na peugada de Michel Foucault, que advoga que

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um discurso se constrói na interconexão com outros, isto é, no interior do in- terdiscurso duma formação social, ou relembrando as suas palavras: “(...) On ne peut dire une phrase, on ne peut la faire accéder à une existence d’énoncé sans que se trouve mis en œuvre un espace collatéral. Un énoncé a toujours des marges peuplées d’autres énoncés” (Foucault 1969: 134).

Na verdade, os diários em análise estão recheados doutros discursos, al- guns da própria escrevente, encontrando-se registados noutros diários do seu arquivo, outros discursos são de autores da sua época histórica que foram citados, assimilados nos seus discursos (Maingueneau 1997: 82).

Pegando nos dados quantitativos da análise vocabular exposta, circuns- crevemos os campos temáticos, ligando-os à análise proposta por Fonseca de “eixo dos discursos” e do “eixo dos discursos no discurso”.

Iniciando a análise pelo levantamento das coordenadas pessoais do “eixo do discurso” verificamos que ocorrem, no vocabulário analisado, vocábulos e expressões que remetem para a escrevente do discurso o “eu”. Das coorde- nadas pessoais assomam nos deíticos pessoais e possessivos da 1.ª pessoa do singular e plural “eu, me f. 4, meu f. 2, minhas aquisições, nossa f. 4, nosso f. 2”. Usa, umas vezes, a 1.ª pessoa do singular através dos deíticos pessoais e das formas verbais na 1.ª pessoa do singular: “vibro, tive”, na página 3, “per- corri as proximidades, tudo vendo, e admirando as magníficas vistas sobre a montanha”, na página 26, “vi”, na página 27, “Tudo me encanta!”, na página 7. Porém é mais frequente o uso da 1.ª pessoa do plural nas formas verbais e nos deíticos pessoais e possessivos, englobando nessa pessoa do discurso a irmã, Maria Amélia “Amélia e eu”, frequência 1, sua companheira nesta viagem cultural e espiritual ao santuário de Lourdes e, por vezes, também se refere aos outros turiperegrinos. Atente-se nalguns exemplos: “directos a Vilar Formoso, em regresso à nossa Pátria de cuja paisagem todos nós já

sentíamos saudades. Rapidamente se passou o percurso até à Guarda, tendo

ainda os olhos repletos de tanta beleza artística que nestes 12 dias de viagem

me foi dada admirar. Com a maior alegria novamente nos reunimos no Res-

taurante Cristal, confraternizando no excelente almoço que nos foi servido, comprovativo, mais uma vez, da saborosa culinária portuguesa”, na página 51.

Em relação às coordenadas temporais do discurso da turiperegrinação a Lourdes, estas surgem nas desinências dos tempos verbais, referentes fre- quentemente a tempos do passado, uma vez que a diarista escreve sobre acontecimentos vividos no momento anterior à escrita do texto viático: “par- timos, atravessámos dispusemos, instalámos, entrámos chegámos, saímos”, entre muitas outras formas. Ocorrem vocábulos e expressões indiciadoras de tempo, nas datas dos dias da peregrinação, nas variadas frações de tempo, nos adjuntos adverbiais de tempo ou deíticos e expressões temporais: “26 de

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agosto a 5 de setembro, 26 de agosto de 1958, 4 de setembro, 5 de setembro de 1958, 12 dias, 12 horas, 13 horas, às 14h, logo, ao entardecer, a noite, um dia, dia 30, dia 1 de setembro, dia 2 de setembro, dia 3, dia 30, dia 31, dia 4, dia 5, caía a tarde do dia 30, centenário das Aparições de Nossa Senhora, etc.”. Como podemos constatar surgem as datas referentes aos dias da viagem, os horários das visitas, das refeições, das chegadas e partidas dos hotéis, entre outros.

Quanto às coordenadas espaciais ou locativas, estas emergem igualmente através de deíticos e expressões locativas, topónimos, nomes hagiográficos associados ao santuário de Lourdes. Vejamos alguns exemplos, na página 6: “Aqui e além, rebanho de cabras e ovelhas; pequenas aldeias com casinhas velhas e pobres feitas, quase, só à base de barro. Assim chegámos, ao en- tardecer, a Ciudad Rodrigo, apreciando nas proximidades localidades mais verdejantes e povoadas. O céu foi-se nublando e a noite principiou a cair”. Neste extrato, ocorrem deíticos locativos, adjuntos adverbiais de tempo e es- paço, nomes com valor semântico de espaço. Quanto a topónimos, ocorrem inúmeros: “Guarda, Ávila, Bayonne, Beira Alta, Biarritz, Burgos, caminho de Burgos, caminho de Lourdes, caminho de Saragoça, avenidas de Madrid mo- derno, Avenue Bernardette Soubirou, basílica da Imaculada, Basílica subter- rânea de Pio XII, etc.”

No âmbito do “eixo dos discursos no discurso” de Fonseca ou da interdis- cursividade de Maingueneau, elencaremos o encaixe de discursos explícitos doutros autores, na narrativa viática de turiperegrinação a Lourdes. Um mo- delo mais claro deste encaixe discursivo acontece no episódio da morte do filho do coronel Moscardó, nas páginas 41 e 42, nas quais a redatora trans- creve entre aspas o diálogo de despedida do pai e do jovem Luís Moscardó, certamente copiado durante a visita.

“É este o texto do quadro:

‘Últimas palavras trocadas entre o Coronel Moscardó e o seu filho Luis e o chefe das milícias, no memorável dia 22 – VII – 936:

O chefe das milícias: São vocês os responsáveis pelas mortes e crimes que estão ocorrendo. Exijo que entregue o Alcácer no prazo de 10 minutos. Se assim não proceder julgarei o seu filho Luis que tenho aqui, em meu poder.

Coronel Moscardó: – Assim o creio.

Chefe das milícias: – Para que veja que é verdade, vai agora falar-lhe o seu filho Luis.

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[P. 42]

Coronel Moscardó: – Que há filho?

Luis: – Nada; dizem que me vão fuzilar se não entregares o Alcácer. Coronel: – Pois encomenda a tua alma a Deus, dá um grito de ‘Viva a Espanha’, e morre como um patriota!

Luis: – Um beijo muito grande, Papá!

Coronel: – Um beijo muito grande meu filho! Coronel dirigindo-se

ao chefe das milícias: – Pode dar por findo o prazo que me deu, pois que o Alcácer jamais se renderá’ ”.

Ainda no domínio da intertextualidade podemos mencionar um extrato em que a escrevente evoca uma obra clássica da literatura mundial: “Contos de Mil e uma Noites”.

“Nestas galerias vi as mais estranhas esculturas naturais que se possam imaginar, mais me parecendo estar numa gruta dos ‘Contos de Mil e uma Noites’ ”, na página 27, fazendo uma remissão para uma obra intemporal dum autor anónimo.

No fecho do diário, assomam dois discursos doutros autores, citados entre aspas, um primeiro recupera o texto que identifica histórica e culturalmente a cidade do Porto, o segundo é uma quadra do poeta António Correia de Oliveira dedicado à cidade natal da diarista: o Porto.

“Cansada e saudosa de tudo quanto é nosso, mas plenamente satisfeita com todo o programa da peregrinação, rigorosamente cumprido, regressámos à ‘Antiga Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade da Virgem’ a Quem o insigne poeta, António Correia de Oliveira, suplicou em singela e expressiva quadra:

‘Senhora da Conceição: Como guardaste o Menino. Aos teus braços, ao teu colo,

Resguarda o nosso Destino!...’ ”, na página 53.

Quanto aos discursos implícitos, sugeridos nas entrelinhas do discurso viático, encontramos as representações discursivas e imagéticas dos luga- res históricos visitados construídas e divulgadas pela propaganda do Estado Novo. Atente-se nas palavras da narradora-viajante: “Depois de muito apre- ciarmos a bela paisagem e termos observado, em Santa Comba Dão, a peque-

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na casa, toda florida, em que nasceu o Doutor Oliveira Salazar, chegámos à Guarda...”, na página 5 e nas páginas 52-3: “Quando após o triunfo da Causa Nacionalista o Generalíssimo Franco entrou nas ruínas da gloriosa fortaleza, o Coronel Moscardó, o valoroso defensor do Alcácer de Toledo...”.

As expressões valorativas usadas pela enunciadora relativamente a situa- ções ou locais vivenciados pelos ditadores Salazar e Franco, tais como: “bela paisagem”, “pequena casa, toda florida”, assim como “triunfo da Causa Na- cionalista o Generalíssimo Franco”, “gloriosa fortaleza”, “valoroso defensor” deixam antever uma simpatia da diarista por estes ditadores fascistas e seus ideais políticos.

Depois de termos efetuado uma análise discursiva do DIÁRIO 2, passa- mos à análise vocabular e temática.