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Análise do discurso sob a perspectiva da cultura colaborativa

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1. PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

1.1. DIÁLOGOS E A BUSCA POR UM CONCEITO INTEGRADOR

1.1.2. Análise do discurso sob a perspectiva da cultura colaborativa

A cultura participativa vem sendo intensificada concomitante à ampliação quantitativa e qualitativa dos dispositivos que privilegiam as formas de expressão humana. O sistema midiático é mais do que o suporte tecnológico que o sustenta. Jenkis Green e Ford (2014, p.20) afirmam que “o crescimento da comunicação em rede, especialmente quando associada às práticas da cultura participativa, cria uma diversidade de novos recursos e facilita novas intervenções para uma variedade de grupos que há muito tempo lutam para se fazer ouvir”.

Apesar de ligar-se, em grande medida, às produções criadas exclusivas para a internet, é importante destacar que os conteúdos dirigidos à TV sofreram mudanças com vistas à tentativa de tornar o conteúdo mais interativo. Além disso, a distribuição de vídeos dirigidos a este suporte nem sempre é controlada, pois a reprodução de muitos conteúdos (às vezes, sem autorização) é feita e disseminada pela web. Outro ponto a destacar é que a opinião dos telespectadores sobre o que é assistido pode ser emitida pelas redes sociais no instante em que o programa é exibido. Portanto, seja qual for o suporte a ser analisado, é difícil não contextualizá-lo neste momento de extensa conexão. As narrativas devem privilegiar a cultura participativa e devem estar abertas às diversas contribuições dos interlocutores (preparando-se, contudo, para extensões discursivas que podem contrapor a emissão principiante). No decorrer da tese, discutiremos alguns exemplos de situações em que parte da população brasileira se manifestou em relação a alguns discursos da mídia sobre a Copa do Mundo no Brasil e a situação político-social do país.

Nessa medida, além de não podermos desconsiderar o contexto de convergência, a atividade do interlocutor deve ser valorizada. O locutor não sobrepõe o receptor. A imposição não se constitui uma estratégia positiva. A figura do destinatário passa a

constituir-se um coenunciador. Como afirma Maingueneau (2013), os interlocutores são levados a negociar ou buscar um acordo nos momentos conflitantes.

O jornalismo e a publicidade possuem uma espécie de contrato implícito, regido por algumas normas (nem sempre tão claras) específicas de cada gênero, que faz com que os interlocutores entendam suas finalidades. Um texto publicitário e um texto jornalístico são apropriados de formas diferentes pelo receptor, não apenas pelo seu conteúdo, mas por entender que cada área possui finalidades diferentes. Quando o receptor entende que houve uma “quebra” de contrato ao consumir um conteúdo jornalístico, por exemplo, este pode expressar seu julgamento nos diversos recursos disponíveis. É importante destacar, portanto, que apesar de existirem aproximações nos discursos, os locutores devem se preparar para possíveis indagações de consumidores quando perceberam equívocos nas finalidades da divulgação dos conteúdos. As regras discursivas e textuais podem ser flexíveis nos dois campos, mas é preciso estabelecer algumas normas processuais (e também deontológicas) no jornalismo e na publicidade para que os propósitos das divulgações sejam claros.

O discurso é interativo porque toda atividade verbal é uma interatividade (MAINGUENEAU, 2013). Já afirmamos que tomaremos o destinatário como um coenunciador, pois há sempre uma troca, mesmo que de forma implícita. Além do discurso ser interativo, é também contextualizado. Como esclarece Maingueneau (2013, p. 61): “o ‘mesmo’ enunciado em dois lugares distintos corresponde a dois discursos distintos”. Se pensarmos que a busca pelo apoio da torcida foi intencionada e propagada pelo jornalismo e pela publicidade, não podemos, contudo, argumentar que são dois discursos iguais porque seus mecanismos (“contratos”) são diferentes. O discurso da mídia é orientado a partir da perspectiva do locutor e do contexto temporal em que se estabelece (apesar de que nem sempre os resultados esperados são os resultados obtidos no momento de assimilação).

Com o argumento do discurso orientado, podemos dizer também que é construído como cenografia. Na visão de Maingueneau (2008, p. 51),

a situação da enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se constrói como cenografia por meio da enunciação. Aqui – grafia é um processo de inscrição legitimamente que traça um círculo: o discurso implica um enunciador e co-enunciador, um lugar e um momento da enunciação que valida a própria instância que permite sua existência. Por este ponto de vista, a cenografia está ao mesmo tempo na nascente e no desaguadouro da obra (grifo do autor).

O autor explora três cenas envolvidas numa enunciação: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. A cena englobante diz respeito à tipologia do discurso (ex: discurso religioso, político, publicitário etc.). Para a interpretação, é importante que o leitor esteja situado da cena englobante e, portanto, saber para qual finalidade o material foi produzido. A cena genérica trata das especificidades e do papel de cada gênero do discurso (por exemplo: um panfleto de campanha eleitoral. Trata-se de um candidato dirigindo-se a eleitores) (MAINGUENEAU, 2013). Por fim, a cenografia que leva o conjunto da cena englobante e cena genérica a um segundo plano. O leitor é enlaçado por outra cena. Nas palavras do autor:

Quanto a cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável, etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. A cenografia não é, pois, um quadro, um ambiente, como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de fala (MAINGUENEAU, 2008, p. 70).

A cenografia legitima sua existência enquanto enunciado. O discurso pretende convencer o receptor a partir da cena de enunciação que ele próprio coloca em vigor e por meio da qual se legitima. A cenografia é, portanto:

[...] ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra, ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para anunciar como convém, segundo o caso – a política, a filosofia, a ciência -, ou para promover certa mercadoria (MAINGUENEAU, 2013, p. 98).

Para tentarmos aplicar estes conceitos, vamos exemplificar com uma publicidade sobre a Copa do Mundo 2014.

Figura 1: Peça publicitária da cerveja Brahma18

- Cena englobante: Discurso publicitário

- Cena genérica: Anúncio publicitário [de uma cerveja, com tema Copa do Mundo 2014 e direcionado ao público consumidor e à torcida da Seleção Brasileira].

- Cenografia: Os símbolos festivos legitimam o enunciado “Imagina a festa”, remetendo o imaginário de jogos da seleção, cerveja e festa.

Essa legitimidade vai além das proposições, pois o enunciador é notado “através de um ‘tom’ que implica certa determinação de seu próprio corpo, à medida do mundo que instaura em seu discurso [...] Ela [a legitimação] é habitada pela evidência de uma corporalidade que se dá no próprio movimento da leitura” (MAINGUENEAU, 2008, p.53). Isto significa que por trás do posicionamento de um discurso há representações da personalidade do enunciador. Este é o ethos retórico que emana a partir do que foi mostrado pelo discurso. A prova de ethos, afirma Maingueneau (2008, p. 56), “consiste em causar boa impressão de si, capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades à instância que é posta como fonte do acontecimento anunciativo”. Porém, alinhados com o que já dissertamos, o público reconstrói representações do ethos e, portanto, não necessariamente o ethos visado seja o

ethos produzido.

A especificação de um ethos remete à figura do “fiador”, que é a representação do corpo de um enunciador revelado através do discurso. É a concepção “encarnada” do

ethos (MAINGUENEAU, 2008, p. 65). O fiador está ligado diretamente a representações

coletivas estereotipadas que também ajudam a legitimar o discurso. Maingueneau (2013, p. 108) conclui que a “qualidade do ethos remete, com efeito, à imagem desse ‘fiador’ que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado”. Na publicidade e no jornalismo, a imagem do fiador é especialmente importante. Na publicidade, esta figura pode atestar confiança, eficiência, garantia e outras qualidades a um produto, ideia ou serviço. No jornalismo (as diversas editorias e suas especificidades) também se busca locutores que transmitam mais credibilidade à notícia. Na Copa do Mundo 2014, ex e atuais jogadores da Seleção Brasileira foram explorados maciçamente em publicidades e produções jornalísticas. Além destes personagens, narradores e jornalistas esportivos eram apropriados como “fiadores” do discurso jornalístico sobre o evento.

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