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1 BREVE PANORAMA ACERCA DO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO SOBRE

3.1 Análise do registro da performance musical em Nelson Freire

Em sua tese de doutorado, Cristiane Lima faz uma ampla reflexão sobre os desafios enfrentados pelo cinema de documentário na tentativa de inscrever a música em sua estrutura de modo a engajar a escuta do espectador (LIMA, 2015: 25).

Partindo da problemática envolvida no registro da invisibilidade musical, a autora recorre aos apontamentos dos teóricos Jean-Louis Comolli (2004) e Michel Chion (1995) acerca do referido assunto. Ambos compactuam de visões críticas similares no que diz respeito à maneira pela qual os filmes costumam registrar o músico em performance. Segundo Comolli, a linguagem documentária é repleta de possibilidades que proporcionam que a filmagem de um músico tocando vá muito além da mera constituição de um ―documento de arquivos sobre a relação do corpo deste músico e sua música‖ (COMOLLI, 2004: 322).

As reflexões de Chion são, de certa forma, complementares as de Comolli, uma vez que o teórico ressalta que uma das grande potencialidades da linguagem cinematográfica é justamente a de interpretar a natureza invisível do fenômeno musical (CHION, 1995: 260).

Como bem pontua Lima, ―embora os filmes documentários sobre música sejam cada vez mais recorrentes no Brasil, poucos buscaram confrontar esse invisível que caracterizaria a experiência musical.‖ (LIMA, 2015: 27). Nesse ponto Nelson Freire destaca-se, pois o filme é repleto de episódios nos quais a música é trazida ao primeiro plano da narrativa fílmica, de modo a proporcionar ao espectador um contato com o invisível da apreciação musical. Conforme observou Cezar Migliorin (2004), ―a música é o momento supremo, o verdadeiro

acontecimento, é onde o filme está. [...] é na música que o filme vai buscar a sua inspiração nas possibilidades do contato entre filme e espectador [...]‖.

Uma das maneiras pela qual o espectador é sensorialmente engajado ao filme está ligada ao modo como Nelson Freire inscreve a performance musical e a música em sua estrutura narrativa. A estratégia de Salles para que esse efeito fosse atingido baseou-se na orientação das filmagens e da montagem das performances musicais tendo como base a partitura da peça executada por Nelson e pelos membros das orquestras durante os ensaios e as apresentações:

[...] a gente decidiu filmar todos os ensaios. A cada novo ensaio eu cobria aquilo que eu não tinha filmado no ensaio anterior. Por exemplo, no Rachmaninoff, em que ele (Nelson) dialoga com a flauta e com o clarinete no segundo movimento, num ensaio eu me preocupava com o clarinete e com ele. No ensaio seguinte eu me preocupava com a flauta. Mas é claro que em algum momento entram os violinos, enfim... havia uma decupagem pela partitura que me dizia, então, o que estava faltando. Lógico que não é tão sistemático, não é tão germânico como eu estou te dizendo. Havia um pouco também de improviso. Eu achava que agora eu precisava ter o clarinete... E aí, na ilha de edição, a gente ia vendo que câmera, neste compasso, de todos os concertos que a gente filmou, de todos os vários ensaios desta mesma peça, qual a câmera melhor.41

No trecho citado, Salles descreve o modo pelo qual a partitura da peça Rachmaninoff

Concerto nº2 (2º movimento) norteou a filmagem e a montagem do episódio ―uma conversa entre o piano, a flauta e o clarinete‖ no qual Nelson, a flautista Natalia Setchkariova e o clarinetista Adil Fiodorov executam a obra de Rachmaninoff. A decupagem das filmagens e da montagem através da partitura, orientada, sobretudo, pelos compassos da peça, é um procedimento que faz com que a música alimente e irrigue o filme, de modo a interferir em sua própria estrutura. Em Nelson Freire há um esforço de filmar a música que direciona a duração, a composição e a combinação dos planos que compõe o filme. O tempo e o movimento da peça musical contagiam o documentário, e a materialidade da música manifesta-se na própria materialidade do filme.

Além de ―uma conversa entre o piano, a flauta e o clarinete‖ Nelson Freire é composto por diversos outros episódios nos quais a materialidade da música articula a plasticidade do documentário. No episódio ―na Rússia, pela primeira vez‖ acompanhamos Nelson e Orquestra Filarmônica de São Petersburgo executarem, sob a regência do maestro Alexandre Dimitriev,

41Entrevista não publicada realizada no ano de 2003 pela profa. Dr. Suzana Reck Miranda, gentilmente cedida

o "Concerto para piano e orquestra nº 2, opus 18‖ de Rachmaninoff. A filmagem e a montagem do episódio obedecem à dinâmica própria da intensidade da música registrada. Vê- se que os movimentos de câmera do operador Toca Seabra, bem como a montagem, seguiram a variação do volume e da quantidade de notas executadas em determinados trechos da peça. Quanto mais rápidas eram as notas executadas e mais intenso era o volume, mais rápidos foram os movimentos de câmera de Seabra, assim como menor foi a duração de cada um dos planos que compuseram esse trecho. Por outro lado, os trechos com menores intensidades de volumes e quantidade menores de notas foram preenchidos por uma quantidade também menor de planos, compostos de movimentos de câmera mais suaves. Desse modo, toda a vitalidade e a energia da execução da música contagiaram o seu registro no filme.

―Valsa‖ é outro episódio no qual a música exerce uma influência sobre os processos de registro da performance musical e da montagem. Ao longo do episódio, acompanhamos Nelson e Martha executarem juntos a obra Suíte para dois pianos, opus 17 nº2 (2º movimento) do compositor russo Rachmaninoff. ―Valsa‖ é marcado por uma montagem que alterna planos muito parecidos de Nelson e Martha, que buscam ilustrar a forma como a interpretação de um complementa-se perfeitamente a do outro. É interessante observar que, apesar de semelhantes, os planos dos pianistas apresentam uma diferença significativa: enquanto Nelson é localizado mais à esquerda do plano, Martha é enquadrada mais a direita (FIG. 12). Em nossa leitura esse espelhamento dos planos busca ressaltar que, embora existam características musicais específicas que diferenciam Nelson e Martha enquanto pianistas, a relação de cumplicidade dos dois é tão profunda que essas diferenças acabam tornando-se complementares, e não antagônicas. A harmonia musical dos pianistas impressiona até mesmo o renomado crítico musical francês Alain Lompech:

[...] como é que estes dois pianistas conseguem respirar ao mesmo tempo, ter as mesmas ideias ao mesmo tempo, pois quando você os ouve tocar separadamente eles têm uma natureza muito diferente... Porém quando estão juntos, de repente, não é um duo, é uma só pessoa e que não é o resultado dos dois, é uma coisa que não consigo compreender [...]42

42Transcrição de trecho da entrevista concedida por Alain Lompech a João Moreira Salles, que integra

FIG. 12– O espelhamento dos planos de Nelson e Martha. FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).