• Nenhum resultado encontrado

1 BREVE PANORAMA ACERCA DO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO SOBRE

4.1 Nelson Freire e o retrato em diálogo

Nelson Freire é uma obra com o foco voltado principalmente para os acontecimentos do presente, ou seja, aqueles que se passam no momento da tomada. É por meio do registro de apresentações e ensaios do pianista, bem como dos momentos que antecedem e precedem esses eventos, que o filme apresenta ao espectador fragmentos da delicada e respeitosa relação que Nelson tem com a música.

Ainda que o documentário contemple alguns acontecimentos ligados ao passado do pianista, resgatando aspectos pessoais e profissionais de sua vida, o filme em nada se assemelha àquilo que Bourdieu chama de ―biografia comum‖, termo por ele usado para identificar obras que abordam histórias de vida de uma forma cronológica objetiva e informativa (BOURDIEU, 1996: 184). Conforme foi apontado anteriormente, o teórico tece críticas a esse tipo de abordagem, cujo esforço é o de narrar a história de uma vida em uma estrutura cronologicamente orientada, que aproxima fatos temporalmente desconexos de modo a preencher possíveis lacunas na trajetória de vida do personagem biografado.

Conforme já mencionamos, Bourdieu relaciona esse tipo de abordagem biográfica à estrutura narrativa da literatura clássica. Em contraponto a esse tipo de tratamento biográfico, o autor, apoiando-se nas palavras de Allain Robbe-Grillet (1984) aponta que novas abordagens foram desenvolvendo-se na prática biográfica a partir do surgimento do romance moderno.

[...] o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório. (GRILLET, 1984: 208 citado em BOURDIEU, 1996: 185).

Nesse sentido, a construção biográfica de Nelson Freire nos parece mais próxima da perspectiva narrativa do romance moderno do que a do romance clássico. Ademais, no que se refere especificamente ao campo da prática dos documentários, os aspectos biográficos que compõem o filme alinham-se ao que Cláudia Mesquita (2010) intitula de ―retrato em diálogo‖. Segundo a pesquisadora, os filmes desenvolvidos à luz da referida abordagem abandonam as pretensões biográficas tradicionais – ―privilégio à atuação pública do retratado; sugestão de personalidade coerente e estável (espécie de ―identidade‑mesmidade‖, em que o passado prenuncia o futuro)‖ (MESQUITA, 2010: 107) - e propõem a construção de uma ―narrativa biográfica possível‖ através do diálogo estabelecido entre o cineasta e o personagem retratado. Sobre esse conceito, Mesquita explica:

Se uma biografia mais tradicional — como Jango — enumera feitos, amarra fatos numa cadeia causal, enaltece, encerra significações, os filmes aqui analisados ficam mais bem definidos como ―retratos‖: em primeiro lugar, porque abordam os sujeitos vivos (na filmagem, ao menos), valorizando o encontro contingente, o ―instante minúsculo‖ e o que dele resulta — mesmo que haja neles, também, uma medida biográfica, já que a dimensão contingente do retrato se articula, de diferentes maneiras, com a construção de uma trajetória no tempo para o retratado. (MESQUITA, 2010: 108).

Tendo em vista a relação desenvolvida entre o diretor João Moreira Salles e o pianista Nelson Freire durante a realização do documentário, bem como as especificidades narrativas da obra, acreditamos que o conceito de retrato em diálogo pode muito bem ser aplicado a

Nelson Freire. Ao longo do documentário acompanhamos a sutil revelação de partes fragmentadas da história de vida de Nelson. Diferentemente do que se observa em grande parte dos documentários musicais brasileiros alinhados à tendência biográfica, desenvolvidos à luz dos preceitos de uma biografia tradicional, Nelson Freire não apresenta ao espectador uma seleção daqueles que seriam, segundo o juízo dos realizadores do filme, os acontecimentos mais relevantes da vida da pianista; o filme tampouco propõe um ordenamento lógico e linear para os fatos que integram sua estrutura narrativa. Em entrevista

Salles afirmou que ―o filme só tem aquilo que o Nelson ofereceu para o filme‖. Para exemplificar essa afirmação o diretor descreveu o seguinte fato:

Tem fatos que são públicos da vida dele que não estão no filme porque ele não quis falar. E ele não quis falar não porque não possa falar. Por exemplo, a morte dos pais dele, que é traumática, uma história muito triste, é pública. No ultimo dia perguntei: ―você quer falar sobre isto?‖ e ele disse ―não, não quero falar. Não porque eu não possa falar, não é um trauma que me torna afásico, eu posso contar pra você, que é meu amigo, você vai entender. Eu vou dividir uma coisa com você que é importante pra mim, portanto eu só quero que essas palavras cheguem ao ouvido de quem sabe entender a importância que elas têm. Eu não quero falar da morte dos meus pais pro público porque eu não sei quem é o público, seria uma espécie de banalização do fato, de trivialização desse amor que eu sinto por eles. 48

Assim, coube ao próprio Nelson elencar quais pontos de sua trajetória estariam no filme, e os aspectos biográficos que integram a obra são o resultado da combinação do tratamento dado ao diretor para aquilo que foi fornecido pelo músico, e não por meio de uma vontade unilateral de João Moreira Salles com o objetivo construir uma ―biografia comum‖ (BOURDIEU, 1996) sobre uma verdade unívoca, estável e coerente a respeito da vida de Nelson. É por esse viés que o filme compõe e apresenta o retrato de Nelson Freire ao espectador, ou seja, através da composição do personagem ―segundo a perspectiva daquele que retrata e segundo a relação em que ambos (cineasta, personagem) se engajam.‖ (MESQUITA, 2010: 108).

Sobre esse assunto, o diretor faz uma reflexão interessante que corrobora a nossa análise acerca dos aspectos biográficos do filme. Buscando compreender os motivos que levaram Nelson Freire - sujeito avesso à exposição excessiva - a aceitar a realização do documentário, Salles desenvolveu duas hipóteses49. Na primeira delas, a participação de Nelson é explicada pelo desejo do pianista em ter registros audiovisuais de sua carreira, buscando evitar que ocorresse com ele o mesmo que ocorreu com Guiomar Novaes, que mesmo sendo uma das maiores pianistas da história do Brasil, possui apenas um único registro audiovisual de cerca de 40 segundos.

48Declaração de João Moreira Salles ao site Críticos na entrevista ―O elogio do recato‖, publicada em 9 de maio

de 2003. Disponível em: <http://criticos.com.br/?p=269&cat=2>. Acesso em: 20 de junho de 2014.

49Declaração de João Moreira Salles ao site Críticos na entrevista ―O elogio do recato‖, publicada em 9 de maio

A outra hipótese é a de que, nas palavras de Salles, Nelson ―quis que o filme fosse feito porque ele quis declarar o seu amor por tudo àquilo que é importante na vida dele‖50. O pianista parece corroborar com essa hipótese ao afirmar em entrevista:

Sou o resultado de outras pessoas. Não me fiz sozinho. Por ter sido menino prodígio, muita gente pensa que, se eu estudasse com xis ou ipsilone, seria a mesma coisa. Não é verdade. Gostaria que todos soubessem. Meninos prodígios existem muitos; que acabam meninos, acabam prodígios. Ter histórias da minha professora, do meu pai, foi algo muito importante para mim.51

Estas palavras de Salles e Freire nos encorajam a afirmar que em Nelson Freire há uma espécie de inversão na chave da biografia. Não é o filme que presta uma homenagem ao pianista, mas sim o pianista que homenageia, através do filme, as pessoas que marcaram a sua trajetória de vida.

Para a construção dessa homenagem Nelson compartilhou com o Salles parte de seu acervo afetivo pessoal, constituído de diversas fotos, recortes de jornal, e de duas cartas endereçadas a ele, uma escrita pelo seu pai e outra por sua professora Nise Obino. Assim, é através da homenagem prestada por Nelson a outras pessoas que o espectador contempla fragmentos de informações relacionadas à vida do pianista.

Desse modo, podemos dizer que no filme Nelson fala de sua história de dois modos distintos, porém complementares: através do discurso verbalizado que constitui a única entrevista que permeia todo o filme; e por meio das fotos, dos recortes de jornais, e das cartas, que integram o seu arquivo pessoal e que revelam detalhes íntimos de sua existência. Para compreendermos melhor essa questão, prosseguiremos com a análise dos episódios que proporcionam uma ampla reflexão acerca do assunto, que são ―uma carta‖ e ―homenagem a Nise Obino‖.

O episódio ―uma carta‖ é aberto com a imagem (FIG. 15) de um antigo papel datilografado combinada a uma voz over, que logo percebemos tratar-se da narração do conteúdo da própria carta. Iniciada pela expressão ―meu filhinho‖, o narrador informa-nos os

50Declaração de João Moreira Salles ao site Críticos na entrevista ―O elogio do recato‖, publicada em 9 de maio

de 2003. Disponível em: <http://criticos.com.br/?p=269&cat=2>. Acesso em: 20 de junho de 2014.

51Entrevista que integra o texto ―João Moreira Salles filma retrato não-verbal de Nelson Freire‖ de autoria de

Silvana Arantes, publicado originalmente no Caderno Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, no dia 29/04/2003. A cópia digital encontra-se disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2904200306.htm>. Acesso em 25 de jun. 2015.

motivos que levaram a escritura da carta: em função da mudança de toda a família para o Rio de Janeiro ―única e exclusivamente‖ por causa de Nelson, bem como com o objetivo de narrar alguns fatos relacionados à vida do pianista, ―para que sirvam de orientação para tua

biografia‖.

FIG. 15 – Imagens da carta escrita pelo pai de Nelson. FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).

Imagens da carta e imagens de fotos antigas (FIG.16) são intercaladas enquanto o narrador, lendo a carta, relembra os problemas de saúde que Nelson enfrentou durante a infância em Boa Esperança, Minas Gerais: ―eras um menino lindo, robusto e corado, porém,

eras doente. Quanto sofremos tua a mãe e eu, por ver-te a definhar, dia a dia, e a choramingar, vitimado amiúde por alergia rebelde que a tudo resistia‖ .

FIG. 16– Fotos do pianista durante a infância.

FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).

Em seguida o narrador descreve uma viagem que Nelson fez com seus pais em 1984 à cidade de Campanha, com o objetivo de visitar as irmãs internas do pianista, Nelma e Norma. São mostradas fotos de alunas do internato, enquanto o narrador conta que na presente ocasião, Nelson, que tinha apenas quatro anos, tocou piano para parte das alunas e para irmã superiora que, entusiasmada com a performance dele, disse para as alunas fixarem bem na memória aquele momento, para que recordassem no futuro quando o Nelson, já crescido, viesse a impressionar o mundo. Nesse momento surgem imagens de recortes de antigos jornais nos quais a precocidade do pianista ganha destaque (FIG. 17).

FIG. 17 – Recortes de antigos jornais que enfatizam o talento precoce de Nelson. FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).

Em seguida, vemos fotos antigas de Nelson ainda garoto combinadas a imagens da carta, enquanto o narrador prossegue relembrando a dedicação dos pais ao aprendizado do pianista, que uma vez por mês era levado pela mãe até a cidade de Varginha para que tivesse aula com o maestro Fernandez, que após doze lições afirmou que não havia mais nada a ensinar a Nelson, aconselhando que a família se mudasse para o Rio de Janeiro para que o jovem pianista prosseguisse com os estudos.

Dando sequência à leitura da carta, o narrador nos informa que em junho de 1950, após refletirem muito, os pais de Nelson decidem deixar o interior de Minas Gerais e seguir com a família para Rio de Janeiro, ―com a finalidade primordial de acompanhar‖ os passos de Nelson rumo à cidade na qual as aptidões dele poderiam “desenvolver-se ilimitadamente”. Ao longo desse trecho imagens da carta alternam-se com imagens de fotos da família, e com imagens da cidade do Rio de Janeiro. (FIG. 18)

A carta chega ao seu fim. O autor se despede carinhosamente com os dizeres

“Atenciosamente, Papai”. Com a imagem de uma foto do pai de Nelson o episódio termina.

FIG. 18 – A esquerda uma foto dos pais de Nelson, ao centro uma foto da família, e a direita a foto do pai de Nelson que encerra o episódio.

FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).

Em ―uma carta‖, Nelson prestou sua homenagem ao grande esforço e a toda dedicação da família, sobretudo dos pais, que possibilitaram que ele prosseguisse com os estudos e se tornasse um pianista renomado. É interessante observar que essa homenagem é construída sem a necessidade de que o pianista se fizesse fisicamente presente no episódio: o espectador

não o vê, tampouco o ouve. O sentimento de Nelson se materializa através do conteúdo da carta escrita por seu pai, que é narrada por Eduardo Coutinho, e das fotos e dos recortes de jornal vistos ao longo do episódio. Nelson compartilha seu acervo afetivo pessoal com o filme. A carta, as fotos e os recortes de jornal revelaram detalhes íntimos de sua existência. É através deles que o espectador é informado sobre alguns aspectos da vida do pianista e, principalmente, é através desses detalhes íntimos que o espectador compreende, ao menos em parte, toda a gratidão e o amor que o pianista sente pelos pais.

Nesse sentido, Nelson Freire contrapõe-se às críticas que Jean Claude Bernardet direciona aos documentários brasileiros que fazem um uso excessivo da entrevista, que não por acaso é o elemento preponderante nos documentários musicais alinhados à tendência

biográfica. O teórico observa que o recurso é comumente adotado pelos documentaristas com o objetivo de passar a palavra para o outro, de dar voz ao sujeito retratado. Contudo, questiona Bernardet52: ―que fala do outro é essa, se é sempre motivada pelas perguntas do cineasta?‖ Prosseguindo em seu questionamento, aponta: ―Além disso, o outro só fala sobre temas propostos por perguntas, não sobre o que gostaria de falar‖.

Podemos pensar que o cuidado e o respeito com que Salles se aproximou de Nelson fizeram com que o pianista confiasse parte de seu acervo pessoal ao diretor, o que, por sua vez, proporcionou que a ―voz‖ de Nelson ganhasse uma dimensão ampla na obra. Em Nelson

Freire, é como se a voz do pianista rompesse a barreira do discurso verbalizado, não se limitando apenas ao espaço ocupado por suas respostas às perguntas realizadas por Salles na entrevista que integra o filme. No episódio ―uma carta‖, ao aderir os arquivos pessoais do pianista à escritura do documentário, Salles, de certo modo, proporcionou que Nelson ―falasse‖ daquilo que gostaria de falar sem a necessidade de recorrer ao seu discurso oral: as cartas, as fotos e os recortes de jornais falam por ele.

Já no episódio ―homenagem a Nise Obino‖ o discurso verbalizado do pianista é combinado a um discurso afetivo que se manifesta nos elementos que compõe o seu arquivo pessoal. Diferentemente de ―uma carta‖, em ―homenagem a Nise Obino‖ Nelson encontra-se fisicamente presente. No inicio do episódio é o próprio Nelson quem relata as dificuldades que enfrentou no Rio de Janeiro. Ele conta dos problemas que teve para se adaptar aos métodos de aprendizado. A troca constante de professores fez com que família cogitasse

52As indagações de Jean- Claude Bernardet foram retiradas do debate realizado por ele e por Ismail Xavier no

Centro Cultural de São Paulo, no dia 15 de agosto de 2003. A transcrição completa do texto, realizada por Cleber Eduardo, encontra-se disponível em <http://www.contracampo.com.br/53/ismailbernardet.htm>. Acesso em: 8 de julho de 2015.

voltar para o interior de Minas Gerais “o prodígio estava acabando né... já tinha dado o que tinha que dar...”. Em seguida ele explica o cerne do problema: ―não havia amor, tinha que haver... se não há isso... eu viro uma toupeira, sabe?”

Em seguida Nelson descreve a impressão que teve de Nise Obino na primeira vez em que ela foi a sua casa. Ele, garoto tímido, disse ter ficado impressionado com a espontaneidade e a beleza da professora: "eu tava na varanda, e ela desceu de um taxi preto,

fumando, desquitada... chegou falando de política... oposições... escandalizando a família mineira... e eu fiquei fascinado". Acompanhamos trechos da entrevista combinados a imagens de fotos de Nise (FIG. 19) enquanto ouvimos Nelson dizer do amor que existiu entre os dois, que ia muito além da relação aluno-professor. Em seguida, ele menciona ter recebido uma carta de Nise na qual ela escreve sobre o encontro inicial que tiveram.

FIG. 19 – Fotos de Nise Obino pertencentes ao acervo pessoal de Nelson. FONTE: Frames do filme Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003).

A partir desse momento passamos a acompanhar a leitura da carta narrada em voz over por Denise Obino Boeckel, filha de Nise. Imagens da carta alternam-se a uma série de fotos organizadas em sequência (FIG.20). Nise conta à impressão que teve ao ver o pequeno pianista ―correndo mãozinhas tão pequenas‖ pelo piano: ―era tão cômico, era tão comovente,

e era tão diferente... era qualquer coisa fora desse mundo, não dava para classificar de feio ou bonito‖. Por fim, a pianista conclui: ―nesse momento, vendo bem tudo aquilo, eu vejo que

te amei, porque disse para mim mesma: que bom, ele já tem o seu mundo, também para ele o resto será o resto. Novembro, 1983, Nise.".

FIG.20 – Uma imagem da carta e duas imagens do arranjo de fotos de Nise Obino, nas quais Nelson aparece diversas vezes ao lado da antiga professora.

A entrevista é retomada. Nelson diz: ―ela não está mais aqui... mas acho que não

existe um dia em que eu não falo com ela‖. Ele sorri e o episódio termina.

Assim como acontece no episódio ―uma carta‖, em ―homenagem a Nise Obino‖ Nelson também presta uma homenagem, que nesse caso é dedicada à professora que trouxe amor à música, não permitindo que o pequeno pianista abandonasse precocemente a carreira. O afeto e o amor de Nise fizeram com que Nelson seguisse em frente e se tornasse um grande pianista.

Ao longo do episódio, as fotos, a carta e o relato pessoal de Nelson atravessam o tempo, resgatam acontecimentos do passado e inscrevem fragmentos da história do pianista na narrativa do filme. Além disso, tanto no referido episódio, quanto no ―uma carta‖, as cartas possibilitam que outras vozes se manifestem na escritura do documentário. As palavras de Nise Obino e do pai do pianista são depoimentos indiretos sobre fatos ligados às dificuldades enfrentadas por Nelson durante sua infância e no início de sua carreira.

Essa constatação contribui para uma compreensão ainda mais ampla de como o respeito compartilhado por Salles e Nelson foi determinante na realização do filme. Salles compreendeu a importância afetiva que Nelson dá àquelas cartas e, por isso, inseriu-as no filme. Isto nos permite interpretar que o próprio Nelson é quem, de fato, escolhe aqueles que ―falam‖ sobre ele no documentário. Além do mais, ao abdicar do uso de entrevistas ―tradicionais‖, o filme reforça o privilégio dado aos fatos afetivos que realmente importam para o sujeito retratado, segundo o critério de valorização do próprio sujeito. Acerca desse assunto, disse o diretor em entrevista:

[...] não me interessava mais fazer cinebiografia, em que o crítico aparece e fala que o Nelson Freire é um extraordinário pianista. Isso não tem força, não me interessa. Eu sabia que o que eu queria eram pequenos fatos. Qualquer história valia contanto que fosse afetivamente interessante [...] como a da carta do pai [...] que no filme cumpre um papel fundamental porque é um momento em que você tem uma informação biográfica, só que não de forma desapaixonada [...]53

No entanto, não podemos deixar de enfatizar a importância do depoimento do próprio Nelson na obra. Ao longo do filme o espectador acompanha diversos trechos da entrevista que Salles realizou com Nelson no último dia de filmagem. Em alguns desses trechos Nelson, de fato, conta uma parcela de sua história de vida. Porém, a aura de afeto oriunda do modo como

53Declaração de João Moreira Salles ao site Cineweb na entrevista ―João Moreira Salles filma o Brasil delicado