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Capítulo 1: Caminhos percorridos: indicações metodológicas

1.4 Análise dos dados

“A tradição oral africana me ensinou que o ensinamento se dá de boca perfumada a ouvidos dóceis e limpos. Por isso de macia cera moldei os meus ouvidos” (Ronilda Ribeiro).

Como pesquisadora, passei por momentos de reflexão sobre a responsabilidade com o “material” que estava em minhas mãos, com a riqueza dos depoimentos, com os fragmentos de vidas falados aos meus ouvidos. Confesso que tive medo de não corresponder à grandeza dos elementos trazidos pelas memórias das pessoas entrevistadas. Elementos permeados por um conjunto de lutas e sofrimentos e compromissos com a educação, de forma geral, e com a população negra especificamente. Experiências e atuações marcadas por recuos, avanços, radicalidades, empolgações e persistência.

Exercitei a difícil arte da escuta, difícil pelo próprio ritmo de vida cheio de tantos “não tenho tempo”. Difícil por estar acostumada a falar mais que ouvir, viciada no ofício de ser professora, de ter mais direito a palavra do que talvez deveria. Ao mesmo tempo, não pude deixar de me indignar diante de casos narrados de preconceito e discriminação racial sofridos pelos professores e seus alunos. Tais relatos fizeram- me recordar minhas vivências de mulher negra professora, que já havia passado pela experiência de direção e me deparado com uma série de impedimentos para dar espaço a negros e negras nas diversas atividades realizadas na escola cotidianamente.

Ao mergulhar nos depoimentos dos professores, senti que existe o poder da palavra, mas a escuta é um privilégio. Escutar o que o outro diz, fazer parte, mesmo que por momentos, de uma vida que mistura passado e presente, ser tentada por análises psicológicas, por desejos de apoiar, de ajudar aquele que, em certos momentos, parece solicitar uma espécie de apoio, de confirmação de suas idéias e ações.

Estava diante de alguns desafios, o desafio de articular e entrelaçar tempos diferentes, memória mais atual, memória de infância e de juventude, essas nem tão distantes dependendo dos impactos causados ou da forma como foram experienciadas. O desafio de entender momentos de silêncio diante de algumas perguntas, de coisas que não foram ditas por escolhas ou caladas

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inconscientemente. Fragmentos, pedaços que, talvez, pudessem ajudar na compreensão mais abrangente do que nos fora dito.13

Silêncios e não ditos tão comuns para nós que lidamos com o tema das relações raciais não só em termos acadêmicos, como através de nossa própria existência como mulheres e homens negros. O silêncio que acomoda, que não cria conflito, que não radicaliza. O silêncio que privilegia alguns setores de nossa sociedade em detrimento de outros, o silêncio que em sua metamorfose se transforma em omissão. O silêncio que impede a efetivação de políticas públicas de combate ao racismo, o silêncio que aborta potencialidades humanas, o silêncio que coloca a nós, negras e negros, na condição de desumanos.

Silêncios que, também, podem significar uma forma de resistência à opressão racista, ao desmantelamento da cultura e tradição africana. Nesse aspecto, parece- me fundamental a forma como durante muito tempo, os adeptos das religiões afro- brasileiras encontraram para fugir da perseguição. O silenciamento de sua condição de pessoas do candomblé ou da umbanda. Silêncios esses que garantiram, em muitos casos, a existência dessas práticas religiosas que eram legalmente proibidas. Atualmente, mesmo não sendo proibidas, as religiões afro-brasileiras são alvo do preconceito e diversas pessoas ainda silenciam o fato de pertencerem a elas. Tais posicionamentos podem refletir tanto o medo de ser discriminado, quanto a preservação de seus valores religiosos e culturais em momentos de intolerância religiosa. Sobre os silêncios, Thompson (1992, p. 204) dirá que “a lição importante a aprender é estar atento àquilo que não está sendo dito, e a considerar o que significa os silêncios. Os significados mais simples são provavelmente os mais convincentes”.

Para definir a composição das entrevistas a serem analisadas, foram selecionados cinco profissionais com percursos particulares que permitiram trazer à tona questões que desejava investigar, a saber: a concepção dos professores sobre as relações raciais na escola e sua relação com os percursos biográficos desses. Considerando que somente um homem foi entrevistado, além de particularidades com relação a

experiência escolar e outros que apresentaremos no Capítulo Três,14 ficamos com o seguinte quadro para análise:

Entrevistado Idade Rede em que atua

Modalidade de ensino

Projeto com a questão racial

Luiz Gama 32 Estadual Médio Sim

Antonieta de Barros

39 Municipal Fundamental Sim

Maria Brandão 40 Municipal Fundamental Sim Carolina de Jesus 48 Estadual Ed. Infantil Não

Luiza Mahin 50 Estadual Médio Não

A partir das leituras das entrevistas, foram selecionados para a análise aspectos que pudessem contribuir para uma melhor elucidação das questões apontadas para a pesquisa. As categorias temáticas foram:

• experiência escolar;

• vivências com a discriminação racial;

• o processo de tomada de consciência da existência da discriminação racial; • a carreira docente;

• relações raciais na escola; • as práticas pedagógicas; • o contexto escolar de trabalho.

Esses temas me permitiram uma maior aproximação dos elementos que pudessem reconstituir o percurso biográfico dos professores, suas vivências com a discriminação racial e formas de encarar essas situações tanto no passado como no presente.

14 Com relação a essas particularidades temos: pessoas que tiveram parte de sua trajetória no interior, trajetórias escolares

em escolas particulares e públicas, experiências escolares predominantemente no em escola pública, descontinuidade ou não nos estudos etc.

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Com relação ao material das entrevistas, procurei fazer as análises dando atenção à especificidade de cada uma, e também, busquei identificar pontos comuns. Não tratei nenhuma entrevista como um caso fechado em si. Procurei ver se na biografia dos sujeitos, havia percursos e contextos vividos que poderiam ter contribuído com a forma de conceber as relações raciais em suas vidas e em suas práticas pedagógicas, bem como o que propiciava a realização ou não de projetos sobre a temática nas escolas em que trabalham. Tudo isso, procurando identificar contextos que pudessem ajudar a compreender os posicionamentos atuais dos (as) professores (as).

Com relação à importância dos percursos biográficos nos estudos sobre professores Moita (2002) acredita que o recurso da história de vida é o mais indicado para

perceber o processo dinâmico das interações que cada pessoa estabeleceu em sua vida:

Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa, permanecendo ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com seus contextos. Numa história de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as coincidências no tempo e no espaço, as transferências de preocupações e de interesses, os quadros de referência presentes nos vários espaços do quotidiano (MOITA, 2002, p. 116-117).

Apesar de Moita ter tido acesso a aspectos mais abrangentes da vida das professoras com as quais trabalhou, a forma como procedeu em suas análises me trouxe subsídios para pensar a forma de interpretar os dados empíricos surgidos das entrevistas com professores negros. Principalmente, no que se refere à perspectiva metodológica adotada por ela que se tornou rica para a análise que empreendi. Cito algumas contribuições:

• o papel do investigador é fazer emergir os sentidos que cada pessoa pode encontrar nas relações entre as várias dimensões da sua vida;

• o quadro de análise interpretativo das histórias de vida é elaborado de um modo coerente com o objeto de pesquisa e o corpus biográfico recolhido;

• cada história de vida, cada percurso, cada processo de formação é único, existe uma singularidade de cada história, de cada vida.

Os campos de estudos que me permitiram compreender e analisar as entrevistas foram, principalmente, os voltados para a questão das relações raciais e educação e, mais especificamente, sobre professores negros e também os que trabalharam na perspectiva da história de vida de professores. No capítulo seguinte, abordarei a constituição desses campos de estudo e suas contribuições para minha pesquisa.

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