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Nesse momento, passaremos a uma análise e discussão cuidadosa a respeito dos registros que, num diálogo frutífero com a teoria, nos permitiu a construção de novos olhares sobre a ecolalia no autismo. Como foi explicitado anteriormente, para que fosse mantida a identidade dos participantes em sigilo, eles foram identificados por nomes fictícios: Pedro e João. A partir dos nossos objetivos e das etapas da análise anteriormente delineadas e descritas, procuramos realizar uma discussão com base nos seguintes aspectos:

- Caracterizar de forma pormenorizada, as produções ecolálicas dos dois pré- adolescentes, sujeitos dessa investigação;

- Destacar as mudanças qualitativas advindas das produções linguísticas dos participantes, especificamente da ecolalia. Procurando discutir a possibilidade de possíveis mudanças na posição subjetiva assumida por Pedro e João frente à língua;

- Destacar as singularidades nas produções ecolálicas, a partir de um confronto da análise da ecolalia de Pedro e de João;

- Estabelecer um diálogo teórico entre o campo da patologia da linguagem e o campo da aquisição da linguagem.

Através dessa análise, procuramos nos afastar das explicações a respeito da ecolalia advindas da polaridade “normal versus patológico”, supondo que o estudo aprofundado da ecolalia, poderia nos ajudar a compreender a complexa relação que o autista estabelece com a linguagem. Face ao exposto, passaremos a seguir para análise do primeiro sujeito.

5.1 Sujeito 1 - Pedro - O Malabarista dos Blocos Ecolálicos

a) Quem é Pedro? (um pouco da sua história)

Pedro tinha 12 anos na ocasião das filmagens e foi diagnosticado de acordo com o CID 10 como portador da síndrome do autismo infantil precoce. Ele participava de um grupo de terapia no Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL) e também fazia tratamento individual. Pedro fora adotado por uma família de classe média onde a mãe, Janice, que era dona de casa, não podia ter filhos. O pai, Paulo, era Engenheiro Civil. Segundo consta no prontuário, desde cedo, Janice, percebia que havia “algo errado com o garoto”; ele teve um atraso significativo na aquisição da linguagem, apresentava fixação em

objetos e movimentos estereotipados. Também consta nas anotações clínicas que os pais adotivos não se entendiam, brigavam constantemente e discordavam acerca da maneira de educar Pedro. Nessas brigas, vários objetos eram quebrados, tendo o pai relatado uma vez que Pedro ficara agressivo e havia quebrado muitas coisas dentro de casa. Outro aspecto interessante, destacado nas anotações clínicas, é que Pedro, no momento das filmagens, estava passando por diversas transformações em seu corpo, já que estava ingressando na adolescência.

Segundo a equipe do CPPL, esse fato era gerador de angústia para Pedro e para os seus pais que pareciam não aceitar que ele agora já não era mais uma criança. Também consta nesse prontuário que Pedro começara a despertar para sexualidade, masturbando-se constantemente. De todos os participantes do grupo, ele era o que, em geral, mais verbalizava, sendo sua fala marcadamente ecolálica. No grupo terapêutico Pedro apresentava uma série de estereotipias e fixação por certos objetos, também insistia em determinadas atividades ou movimentos, como, por exemplo, acender e apagar a luz várias vezes seguidas, ou brincar sempre com um carrinho que provocava muito barulho.

b) A ecolalia de Pedro

Ao nos defrontarmos com a fala de Pedro, logo podemos nos lembrar de Lacan (1986) quando diz que os autistas são personagens “bastante verbosos”. De fato, ele, é, dentre todas as crianças do grupo terapêutico, a que mais fala. Entretanto percebemos que, embora ele fale muito, do ponto de vista qualitativo, o seu vocabulário é restrito, principalmente se tomarmos como referência um adolescente entre 12 e 13 anos que não apresenta tal diagnóstico.

Nosso primeiro olhar sobre os dados nos levou a uma espécie de subordinação à sua fala ecolálica, de modo que se tornou difícil fazer uma outra leitura. Parecia que estávamos diante da descrição de Kanner no seu artigo de 1943: tudo parecia caótico, intraduzível e sem sentido. A fala parecia cristalizada, rígida e causava, a nós investigadoras, um sentimento de estranhamento que não era traduzível em palavras. Pedro alternava momentos de silêncio com momentos nos quais disparava como uma “metralhadora” repetições insistentes e persistentes que pareciam “atropelar” o outro. Na medida em que nos aprofundávamos na leitura dos dados, passamos a nos questionar se poderia haver algum tipo de organização subjacente a essas produções, aparentemente, sem sentido.

Foi quando observamos algo que parece se destacar nas produções ecolálicas de Pedro e que não foi apreendido num primeiro momento. Em sua fala, Pedro parecia insistir em determinados significantes como: quebrar, apagar, desligar, acabar, rasgar, fazer barulho, explodir, bater. Podemos perceber que, do ponto de vista semântico, esses significantes guardam algum tipo de relação entre si, parecem formar uma cadeia associativa por fazerem referência a uma destruição ou esfacelamento: algo que estava inteiro e se quebrou, explodiu, rasgou, uma luz que estava acesa e foi apagada, ou estava apagada e alguém acendeu. A seguir, mostraremos abaixo alguns exemplos retirados do corpus que ilustram a predominância de tais significantes na fala de Pedro:

L: Lia T2: Terapeuta 2 T3: Terapeuta 3 P: Poliana B: Bárbara H: Hélio

A: Adriano Al: Alexandra Episódio 1:

P: Não desligue o trator, desligou. Des-li-gou. Não vai desligar o trator. O trator fica parado.

L: mas olhe, ele vai ficar com tanta saudade de Bárbara, sabia? Vai ficar com muita saudade de Bárbara.

P: Não vai. Olhe, não desligue o trator não. O trator tá parado. (Paulo brinca com o trator)

Episódio 2: T.: De quem?

[...] - É Alexandra que tá demorando, é Paulo? T.: Em Paulo? [...]

P.: Tá quebrado. Hoje está tudo quebrado. Episódio 3:

P: Quebrou o trator! Não desligue não!!

Episódio 4: P: Hélio, Hélio!

L: Hélio não veio ontem. P: Hélio aprontou ontem. T2: o que? foi mesmo?

P: Apagou a luz. Ficou tudo no escuro. T2: então foi o que Lia e ... disseram. P: Lia, Hélio apagou a luz!

T2: O que foi que ela fez? Ela brigou com ele foi?

P: Não vai apagar a luz! Hélio, não vai apagar a luz não, Hélio! Pode acender tudo, pode!

Episódio 5:

P: O avião vai subir. O avião vai quebrar. Agora eu vou consertar a pilha do avião T3- E o avião tem pilha?

P- O avião tá quebrado. P- O avião tá descendo na pista [...]

P- O avião desceu na pista. Episódio 6:

P.: Eu vou quebrar o vídeo game de Zazá. [...]

P: Pronto, eu vou quebrar o vídeo game de Zazá! L: Você não vai quebrar é nada!! Nada!

T3: Você não precisa quebrar nada! [...]

P.: Não dá para quebrar não. Não dá para quebrar. [...]

P.: Eita! Tá quebrado, foi você que quebrou. P: Quebrou

T1: Oh, Hélio! P.: Hélio rasgou. L: Não, não

P: Hélio rasgou o avião do combate. L: da força aérea brasileira só tem essa! T2: Olha, Hélio tem o avião dele!

P.: Eu vou explodir. Explodir não. Eu vou explodir o seu avião

Com tais exemplos, quisemos apontar para a grande incidência desses significantes na fala de Pedro. A partir disso, poderíamos levantar as seguintes questões: será que as produções ecolálicas nas crianças autistas emergem ao acaso? Será que poderíamos falar num movimento de seleção/eleição subjacente à emergência dessas produções?

Fazendo, mais uma vez, um breve retorno a Kanner, observamos que esse autor concebe a fala ecolálica como “expressões irrelevantes”, “frases mecânicas”, “sem sentido”. Para ele, expressões como “através da escuridão as nuvens brilhando”, “O peixe tem dentes afiados e morde as criancinhas”, “Carrancas comem criancinhas e bebem óleo” proferidas pelas 11 crianças por ele estudadas eram consideradas como não possuindo nenhum sentido, pois eram descontextualizadas e, aparentemente, não guardavam nenhuma relação entre si. Ao dizer que a fala da criança autista é “um eco de tudo o que lhe pôde ser dito” (KANNER, 1997, p. 159). O mesmo autor não pensou na possibilidade de que poderia estar havendo, na fala desses sujeitos um movimento de seleção determinando o que viria ou não à tona.

A partir desse momento, poderíamos lançar mão de alguns dados da história de vida de Pedro que podem levantar algumas questões interessantes para esse instigante debate. Gostaríamos de ressaltar que não pretendemos fazer nenhuma afirmação categórica, apenas levantar algumas indagações que nos pareceram pertinentes. Como foi visto acima, nos registros das anotações clínicas do CPPL consta que os pais de Pedro brigavam muito e diversas vezes objetos foram quebrados e destruídos dentro de casa, esse fato parece guardar algum tipo de relação com os significantes de destruição proferidos insistentemente por Pedro, principalmente o quebrar. Além disso, podemos, ainda, pensar que esses significantes (quebrar, explodir, rasgar) poderiam fazer alguma alusão às vivências de Pedro em relação às transformações que irrompiam no seu corpo. Estendendo, ainda, nossa reflexão na direção das teses lacanianas, a partir das quais poderíamos pensar que algo que explode, que quebra poderia estar fazendo alusão ao “fantasma do corpo esfacelado”, destacado por Lacan (apud DOR, 1995), supostamente vivido pela criança autista.

No chamado Estádio do Espelho, Lacan afirma que a estruturação do eu irá depender da identificação primordial da criança com a sua própria imagem, o que acabará com a vivência singular designada como fantasma do corpo esfacelado, através do qual a criança experimenta o seu corpo como algo disperso, não unificado. Para autores lacanianos como Jerusalinsky (1993) e Rodriguez (1999), por exemplo, a criança autista não passaria pelo estádio do espelho, dessa forma, estaria presa a essa vivência de um corpo esfacelado. Assim nesse confronto dos dados com a teoria, podemos sugerir, à partir dessa possibilidade de interpretação, que a fala do autista não seria , como defendem alguns autores, esvaziada de sentido, mas que poderia guardar uma relação com suas vivências subjetivas. Queremos ressaltar, porém, que essas são possibilidades de interpretação que precisam ser analisadas com maior profundidade.

Depois dessa breve exposição a respeito da ecolalia de Pedro, passaremos a afunilar a análise, buscando discutir, diante dos dados, a existência de mudanças qualitativas ao longo do tempo na ecolalia de Pedro, o que poderia estar indicando mudanças na sua posição subjetiva diante da língua.

De um modo geral, pudemos identificar, na fala ecolálica de Pedro, três (3) principais posições6, as quais poderiam estacar indicando mudanças na sua relação com a linguagem. Vale ressaltar que não foi possível apreendermos uma superação de uma posição

6 O termo posição não está fazendo uma referência a posição da criança rumo a aquisição de linguagem proposta

em detrimento da outra, o que estaria mais próximo da ideia de estágios. Em outros termos, ressaltamos que elas operavam ao mesmo tempo, apontando que a criança, constantemente, transitava entre essas posições. Faremos a seguir, a apresentação dessas posições:

a) 1ª Posição: Fala cristalizada: a predominância dos blocos ecolálicos

Nessa posição, as verbalizações ecolálicas de Pedro podem ser metaforizadas como blocos aparentemente cristalizados e impenetráveis, apresentando, portanto, pouca movimentação e um suposto caráter de imutabilidade. Tais blocos eram compostos de pedaços das falas da terapeuta, falas de televisão, falas de outras pessoas (pai/mãe) e outros que não pudemos identificar a fonte. Podemos observar que eles não apresentavam fragmentação, circulação ou deslizamento de significantes.

Os chamados blocos verbais na fala de Pedro, em grande parte, pareciam descontextualizados e, aparentemente, não faziam laço com a fala do outro. Pedro parecia estar funcionando na lógica da exclusão como apontou Jeruzalinky (1993). Em outras palavras, a ecolalia parecia excluir o outro enquanto representante da língua. Esse momento, portanto, parecia estar significando uma determinada posição ocupada diante da língua: a de permanecer fora (RODRIGUEZ, 1999). O exemplo abaixo ilustra o que foi explicitado:

Episódio 7: As terapeutas estavam fazendo uma peça teatral onde cada um