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O que pode nos dizer a Psicanálise acerca da ecolalia?

3.6 Levantando questões sobre a ecolalia

3.6.1 O que pode nos dizer a Psicanálise acerca da ecolalia?

Pode-se dizer que a psicanálise lacaniana, também tem trazido contribuições para a compreensão da fala ecolálica. Para Jerusalinsky, implicaria numa mera repetição fônica de significante, sem produção e circulação de significação, por a criança “estar completamente hipotecada à decisão do Outro, por estar numa colagem absoluta ao Outro” (JERUZALINSKY, 1993, p. 66).

Lasnik-Penot (1997), uma outra referência no estudo do autismo, considera que esse tipo de verbalizações nem mereceria o nome de “repetição”, no sentido metapsicológico do termo, - na medida em que uma repetição, na psicanálise, implica em diferença que, enquanto tal, pertence à ordem do simbólico. Tais verbalizações não mereceriam o nome de repetição por tenderem, segundo essa autora, a tornarem-se rapidamente estereotipias, as quais consistiriam num esvaziamento do ato de tudo o que é de um valor pré-simbólico, restando, segundo ela, apenas um vestígio de um trabalho humano que começou a acontecer.

Rodriguez (In: ALBERTI, 1999) traz em seu artigo o “Dizer Autista” o conceito lacaniano de holófrase. Segundo esse autor, Lacan no seminário-Livro XI (1973/1878) afirma que, quando não existe um intervalo entre Si e S2 (primeira dupla de significantes), ou seja, quando há urna colagem nesses significantes pode-se falar em holófrase. Segundo Lacan, a holófrase impossibilitaria a o desenvolvimento da metáfora do sujeito ou do sujeito como metáfora, visto que, nessa perspectiva, a metáfora exige que, na cadeia significante, sempre falte um significante, de forma que favoreçam enlaces metonímicos ao longo da cadeia. Entretanto, se falta o intervalo há a formação da estrutura holofrásica, caracterizando, assim, a linguagem rígida e em bloco do autista.

Pode-se dizer que, ao falar sobre a ecolalia Rodriguez (In: ALBERTI, 1999) propõe que tal manifestação verbal estaria indicando, no autismo, uma posição diante da língua que se caracterizaria por um permanecer literalmente fora. Pode-se inferir que na perspectiva lacaniana as propostas negativas (ou de exclusão) supõem a proposta positiva de que o referido permanecer fora não implicaria uma ausência da língua no autismo, mas estaria

significando uma determinada posição ocupada diante da língua (CARVALHO; REGO; MENDES, 2003).

Pudemos observar, a partir das discussões elaboradas nesse capítulo, que, nas posturas cognitivistas, a ecolalia tem sido tomada, na maioria das vezes, como uma falha na comunicação. Na psicanálise, por sua vez, a ecolalia, além de ser assumida como uma produção esvaziada de sentido, seria, ainda, a denúncia da ausência de um sujeito. Assim, confrontadas com a negatividade destacada por essas posições teóricas, vimo-nos convocadas a uma atividade reflexiva acerca de uma possível positividade presente na fala ecolálica. Em outros termos, procuramos, a partir do estudo aprofundado da ecolalia, sair da cristalização do discurso da negatividade, abrindo dessa forma a possibilidade de um novo olhar.

Esta investigação não teve por objetivo contrapor ou por em xeque as perspectivas assumidas por alguns teóricos, mas levantar questões que merecem ser discutidas e aprofundadas. As questões relacionadas à linguagem no autismo se impõem ao pesquisador que pretende estudar o grande mistério que representa esta patologia. Ousamos tentar abordá- las, não tomando por base um falso objetivismo, ou uma postura dicotômica do tipo normal versus patológico, correto versus incorreto, mas a partir de uma reflexão acerca da relação singular que o autista estabelece com a linguagem.

4 MÉTODO

4.1 Participantes

Foram investigados dois (2) pré-adolescentes diagnosticados como autistas (F.840)3. a) Caracterização do primeiro participante: O primeiro participante, a quem chamaremos de Pedro4, tinha idade de doze (12) anos na ocasião das filmagens e participava de atividades de terapia grupai e individual na instituição Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL) localizada na região metropolitana do Recife. Pertencia ao nível sócio econômico médio e frequentava uma escola especial particular.

b) Caracterização do segundo participante: O segundo participante, a quem chamaremos de João5, tinha idade de onze (11) anos na ocasião das filmagens e participava de atividades de terapia grupai e individual no Centro Médico Psicopedagógico Infantil (CEMPI), serviço da prefeitura do Recife, localizado no Hospital Geral Otávio de Freitas (HGOF). Pertencia ao nível sócio econômico baixo e estudava em classe especial numa escola pública estadual.

Ambos os serviços são especializados no atendimento a crianças e adolescentes portadores de “transtornos invasivos do desenvolvimento”. Além disso, são compostos por uma equipe interdisciplinar com profissionais das seguintes especialidades: psicologia, psiquiatria, terapia ocupacional, pedagogia e fonoaudiologia. Esses serviços também possuem em comum o fato de utilizarem a Psicanálise como ferramenta teórico-prática, isto é, tanto para compreensão como para terapêutica do autismo. O tratamento nessas instituições possui o objetivo de reverter a posição subjetiva em que a criança tem sido colocada em relação ao significante (JERUZALINSKY, 1993). Dessa forma, apesar de serem tratadas em instituições diferentes, os participantes eram submetidos ao mesmo tipo de tratamento.

Os ensinamentos psicanalíticos adquirem uma importância fundamental num trabalho desta natureza, na medida em que não permitem que a criança seja vista enquanto um conjunto de partes isoladas, mas como um sujeito de desejo. O referencial teórico adotado por essas instituições coincide com a compreensão que nessa investigação, adotamos acerca do autismo. Foram utilizados alguns critérios básicos para escolha dos participantes:

3 Autismo infantil (F.84-0) é uma síndrome enquadrada pela classificação de transtornos mentais e de

comportamento da CID-10 (1993) no grupo dos “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento”.

4 Nome fictício. 5 Nome fictício.

- Ambos os participantes eram diagnosticados como portadores de Autismo Infantil conforme os critérios diagnósticos da classificação de transtornos mentais e de comportamento (CID 10).

- Apresentavam manifestações linguísticas, sobretudo, a fala ecolálica. - A sua participação no estudo só ocorreu mediante o consentimento dos pais

Vale ressaltar que o controle do nível sócio econômico não se fez importante para os objetivos da presente investigação, posto que os estudos mais recentes no campo do autismo sugerem que essa variável não se apresenta como relevante, podendo o autismo acometer qualquer criança independente da classe social a qual ela pertence.

Dessa forma, esses estudos não confirmaram a observação inicial de Kanner (1997) de que haveria um predomínio dessa síndrome nas classes mais favorecidas.

4.2 Material

- Transcrições dos registros em vídeo das sessões de terapia em grupo digitadas no editor de texto Word e impressos para facilitar a leitura;

- Prontuários da instituição onde os participantes eram atendidos, tais prontuários continham alguns dados sobre a história de vida de Pedro e João.

4.3 Procedimento

Na presente investigação, foram realizados dois estudos de caso. Segundo Nasio (2001), o estudo de caso traz em si três funções: a função didática, a metafórica e a heurística. De acordo com o autor, a função didática do caso consiste em sua capacidade de transmitir ao leitor conceitos teóricos de uma maneira prática, assim, segundo Nasio, o leitor vai da “cena à ideia, do concreto ao abstrato” (NASIO, 2001, p. 13), em outros termos, a partir da leitura de um caso prático pode-se visualizar melhor alguns conceitos teóricos e elaborar outros.

No que se refere à função metafórica, o autor defende, pensando nos grandes casos da psicanálise, que, muitas vezes, o caso estabelece uma relação tal com o conceito que se torna metáfora dele e diz: “é frequente [...] a observação clinica e o conceito que ela ilustra estarem tão intimamente imbricados, que a observação substitui um conceito e se torna

metáfora dele” (NASIO, 2001, p. 16). Dessa maneira, podemos ver como, por exemplo, “o caso Dora” que se tornou metáfora da histeria, ou como “o caso Schereber” que se tornou metáfora da psicose.

Finalmente, Nasio destaca a função heurística do caso. Essa se refere à capacidade que um caso possui de ser gerador de novos conceitos, o que vai além de suas funções didática e metafórica. Assim, diz o autor: “às vezes a fecundidade do caso é tão frutífera, que vemos proliferarem novas hipóteses que enriquecem e adensam a trama da teoria” (NASIO, 2001, p. 17).

Diante do que foi discutido acima, podemos justificar a utilização dos estudos de caso nessa investigação. Podemos dizer que, na medicina, o caso remontaria um sujeito anônimo que é representativo de uma doença, entretanto, nessa investigação, lançamos mão da concepção psicanalítica de caso, onde esse exprime a própria singularidade do ser. Dessa forma, procuramos nos afastar da compreensão da ecolalia enquanto um déficit na linguagem, uma marca da patologia e tentamos compreendê-la com mais profundidade nos seus aspectos mais singulares.

Os dados das duas crianças foram cedidos por outras investigadoras que os registraram e os transcreveram. Esses registros contêm os processos dialógicos entre os participantes da pesquisa e seus interlocutores (outras crianças e terapeutas) e contemplam tanto os registros linguísticos como as manifestações não verbais (entonação, gestos, apontar, expressões fisionômicas). A seguir descreveremos como foi construído o corpus de cada sujeito.

a) O corpus de Pedro

Os dados de Pedro foram registrados no CPPL (Centro de Psicanálise e Linguagem) por outros investigadores e já foram utilizados e analisados em outros trabalhos de pesquisa, sendo tais dados, portanto, pertencentes a um Banco de Dados cuja organização encontra-se sob os cuidados da Professora Glória Carvalho. Vale destacar que as autorizações para a utilização desses registros foram concedidas pelos membros da Instituição e pelos pais do menino que disponibilizaram tais dados para atividades investigativas.

Os registros foram feitos semanalmente, durante um período de seis meses, totalizando 19 (dezenove) registros em vídeo com duração média de 40 minutos cada um, tendo sido transcritos logo após as filmagens. O grupo filmado era constituído de 5 (cinco)

pré-adolescentes diagnosticados como autistas, de ambos os sexos com idade média de 12 anos (2) duas terapeutas, (1) terapeuta ocupacional e (1) uma estagiária. Vale ressaltar que dentre todos os participantes do grupo, Pedro foi escolhido, mais especificamente, além dos critérios já descritos pela peculiaridade da sua verbalização, marcadamente ecolálica.

b) O corpus de João

Os dados de João foram coletados no Centro Médico e Psicopedagógico Infantil (CEMPI) e registrados durante sessões de terapia em grupo. Esse grupo era composto por (4) quatro crianças entre 9 (nove) e 11 (onze) anos de idade, do sexo masculino que apresentavam diagnóstico de autismo e 4 (quatro) terapeutas. Os registros foram feitos semanalmente durante aproximadamente 3 (três) meses, totalizando um número de 10 (dez) registros com duração média de 40 (quarenta) minutos cada um. As filmagens foram autorizadas pela mãe do menino que disponibilizou o uso dos dados para fins de pesquisa. Os registros feitos em vídeo foram posteriormente transcritos e impressos. Esses registros pertencerão ao Banco de Dados do CEMPI que se encontra em construção sob os cuidados dos profissionais da instituição. João também foi escolhido por apresentar uma fala predominantemente ecolálica.

Diante disso, optamos pelo modelo longitudinal de pesquisa, já que os registros foram feitos durante um certo período de tempo e o objetivo dessa pesquisa era o de aprofundar a investigação da fala ecolálica no autismo. Esse tipo de metodologia permitiu um estudo mais acurado do fenômeno linguístico (ecolalia) em situação de interação e de dinâmica, fornecendo um quadro detalhado dessa manifestação verbal. Vale ressaltar que sabemos das limitações desse tipo de operacionalização metodológica, tais como, a impossibilidade de realizar extensas generalizações dos resultados, a dificuldade de replicabilidade e a não contemplação do rigor estatístico. Entretanto, consideramos que essa abordagem metodológica era a única capaz de ser fiel aos objetivos propostos nesse trabalho.

Após esta exposição dos caminhos metodológicos, passaremos para a explicitação do procedimento da análise que mostrará passo a passo como foram tratados e analisados os dados dessa pesquisa.