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A pesquisa: procedimentos metodológicos e operacionais

3. Análise dos relatos

Segundo Kofes (1994), as “estórias de vida”58 podem ser consideradas como:

[...] fontes de informações (falam de uma experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a dimensão subjetiva e interpretativa do sujeito); como reflexão (contêm uma análise sobre a experiência vivida. Neste sentido, o próprio entrevistado articula reflexão e evocação). Caberia ao pesquisador, ao ler a narrativa da estória de vida, levar em conta estes elementos, considerá-la na situação da entrevista e também entrecruzá-la com outras narrativas. (KOFES, 1994, p. 120)

O trabalho de recuperação das estórias de vida dos jovens e das suas esferas de sociabilidade não seguiu um padrão linear. Apoiamo-nos nos relatos dos jovens e nas entrevistas com pais e coordenadores da escola. Partimos das entrevistas com os jovens. Num segundo momento, entrevistamos seus pais. Em alguns casos, não conseguimos entrevistar os pais – porque o jovem não morava mais com eles ou porque os pais se recusaram a dar entrevistas. Fizemos, então, uma nova rodada de entrevistas com as coordenadoras, procurando captar a visão da equipe escolar sobre os jovens. As coordenadoras não se recordavam de alguns deles. Por fim, quando identificamos uma situação de crise, fizemos uma nova conversa para explorar a percepção do jovem sobre aquele momento, com ênfase nos efeitos da crise sobre as suas trajetórias de vida e escolar.

A análise dos dados coletados foi um dos momentos mais difíceis desta pesquisa. Ela implicou um longo esforço de análise do conteúdo dos depoimentos. Foi realizado um trabalho de seleção e tratamento das entrevistas, organização e reorganização dos dados de

58 Amparado no texto de Bertaux (1980), consideramos o conceito de estória de vida no mesmo sentido que o de relato de vida.

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forma a transformar as narrativas em categorias de análise. Queiroz descreve o processo de análise de relatos orais:

[...] análise, em seu sentido essencial, significa decompor um texto, fragmentá-lo em seus elementos fundamentais, isto é, separar claramente os diversos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que é compatível com a síntese que se busca. (QUEIROZ, 1988, p. 19)

O tratamento dos dados neste tipo de pesquisa envolve diversas fases. Em primeiro lugar, o material é coletado e organizado de acordo com o objetivo da pesquisa. Uma análise preliminar do material organizado nos permite algumas inferências. Uma nova análise permite uma melhor compreensão do material. Só então chegamos à explicação do fenômeno observado. (QUEIROZ, 1988)

Bourdieu, por sua vez, destaca a importância da “construção dos espaços” em que ocorrem os acontecimentos biográficos:

Não podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontado com o mesmo espaço dos possíveis. (BOURDIEU, 2000, p. 190)

Vale ressaltar, contudo, que não se pretende nesta pesquisa estabelecer tipologias passíveis de generalização, mas mostrar a pluralidade de situações encontradas.

Desta forma, o primeiro passo foi organizar os relatos dos jovens em uma tabela com os elementos que se destacaram ao longo das entrevistas. Esta tabela permitiu uma visão mais global dos casos. As categorias analíticas foram ganhando força ao longo deste esforço de tratamento dos dados.

A tabela encontra-se no apêndice 1. Nas linhas, listamos os jovens entrevistados. Nas colunas, os atributos e esferas de sociabilidade. Destacamos os seguintes atributos: idade, cor, local de nascimento, posição no domicílio, local de nascimento dos pais ou responsáveis, escolaridade dos pais ou responsáveis, renda familiar, situação no mercado de trabalho do responsável, condições de moradia. Quanto às esferas de sociabilidade, listamos a escola, o trabalho, a igreja, o programa social e a vizinhança/lazer.

Como podemos notar, encontramos entre os entrevistados certa heterogeneidade em termos de atributos individuais e das dimensões socioeconômicas e culturais. Os jovens apresentam diferenças quanto à idade, à cor, à renda familiar, às condições de moradia, ao

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tipo de família – monoparental ou biparental, à escolaridade e à situação dos pais ou responsáveis no mercado de trabalho. Esses fatores certamente influenciaram a sua trajetória escolar. No entanto, identificamos jovens com atributos e condições socioeconômicas similares, mas trajetórias escolares distintas. Nestes casos, as relações estabelecidas com os elos das esferas de sociabilidade e as formas como lidaram com as situações de crise parecem explicar as diferenças encontradas. São estes elementos que exploraremos nos próximos capítulos.

Inicialmente, pensamos nas trajetórias escolares de forma dual. Por esta classificação, os jovens ficariam distribuídos em dois grupos antagônicos:

1. Alunos com trajetória escolar contínua; 2. Alunos com trajetória escolar descontínua.

As situações encontradas em campo apontaram, contudo, para uma situação mais complexa do que a dualidade. As trajetórias são dinâmicas, alterando-se em função da experiência concreta dos indivíduos e da forma como eles a vivenciam.

Por outro lado, a análise da tabela indica que o processo de socialização e de educação é afetado pelo efeito combinado de diversas instâncias. Mais do que um ou alguns elementos específicos, o que parece afetar as trajetórias escolares dos entrevistados é a combinação destes elementos.

O conceito de configuração de Norbert Elias parece ser o instrumento mais adequado para a análise dos efeitos combinados das esferas de sociabilidade. O autor utiliza o conceito como um instrumento que permite tratar a sociedade e o indivíduo como elementos distintos, mas inseparáveis.

De acordo com Lahire (2008), não podemos tratar ator e estrutura como objetos opostos. As estruturas cognitivas dos indivíduos são elaboradas no interior de relações sociais e através de práticas de linguagem específicas:

Se as estruturas mentais de um ser social se constituem através das formas de relações sociais e as estruturas objetivas são uma ‘medida’ particular dessa realidade intersubjetiva, desse tecido de interdependências sociais, compreenderemos realmente, então, que não se trata de duas realidades diferentes, sendo uma (as estruturas mentais) o produto da interiorização da outra (as estruturas objetivas), mas duas apreensões de uma mesma realidade. (LAHIRE, 2008, p. 354)

O conceito de configuração permite tratar a interdependência entre os indivíduos que compõem as diferentes instâncias de socialização:

91 [...] conceitos como família ou escola referem-se essencialmente a grupos de seres humanos interdependentes, a configurações específicas que as pessoas formam umas com as outras [...] estas pessoas constituem teias de interdependência ou configurações de muitos tipos, tais como famílias, escolas, cidades, estratos sociais ou estados (ELIAS, 2008, p. 13-15)

As instâncias configuram uma forma permanente e dinâmica de relação. O exemplo de um jogo de cartas ajuda a esclarecer o conceito. O curso tomado pelo jogo é resultado das ações de indivíduos interdependentes. O jogo é relativamente autônomo quanto à ação individual de cada jogador, mas não independe deles. O padrão mutável criado pelo conjunto de jogadores forma a configuração.

Partimos, portanto, deste conceito para compreendermos as situações encontradas em campo. Como instrumento de análise, o conceito permite a observação das partes compósitas da configuração de forma integrada e não como objetos separados:

Torna-se necessário não só explorar uma unidade compósita em termos das suas partes componentes, como também o modo como esses componentes individuais se ligam uns aos outros de modo a formarem uma unidade. [...] só podemos compreender muitos aspectos do comportamento ou das ações individuais se começarmos pelo estudo do tipo de sua interdependência, da estrutura de suas sociedades, em resumo, das configurações que formam uns com os outros. (ELIAS, 2008, p. 78-79)

Em suma, a principal contribuição do conceito de Elias para este trabalho reside na ênfase na relação de interdependência entre os indivíduos e as diferentes instâncias de socialização. Acreditamos que a organização dos relatos em configurações permite uma melhor visualização dos efeitos combinados e dinâmicos que as diferentes esferas de sociabilidade (ou agentes destas esferas) exercem sobre a trajetória escolar dos jovens.

As configurações

Como dito anteriormente, em cada uma das narrativas apresentadas observamos distintos arranjos entre as esferas de sociabilidade investigadas. As esferas coexistem numa relação de interdependência. Esses arranjos, por sua vez, modificam-se ao longo do tempo, podendo afetar – positiva ou negativamente – a trajetória escolar dos jovens. Nesta

pesquisa, as seguintes esferas de sociabilidade se destacaram nos relatos dos jovens: a família, a escola, a vizinhança, o trabalho, a igreja, os programas sociais e o lazer.

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Além das esferas, um importante elemento para a orientação ou reorientação das trajetórias escolares foi a forma como os jovens vivenciam as situações de crise, suas representações e as consequentes reorientações de condutas.

Assim, fizemos um esforço para identificar configurações que exprimissem a variedade de situações encontradas em campo. Em cada configuração, uma ou mais esferas de sociabilidade se destacam na orientação ou reorientação das trajetórias escolares dos jovens ali incluídos. O fato de pertencerem à mesma configuração não significa, contudo, que as vivências e representações dos jovens sobre suas diversas esferas de sociabilidade sejam idênticas, mas sim que categorias comuns aparecem e dão pistas para a compreensão das trajetórias (ou percursos) escolares dos jovens.

Como afirma Kofes (1994), a estória de vida contém, ao mesmo tempo, elementos que são singulares – as experiências e a sua interpretação são individuais – e elementos de interconexão desta experiência com as outras.

Em nosso caso, a estória de vida de cada um dos jovens entrevistados apresenta elementos singulares, de interconexão com os jovens reunidos na mesma configuração e, ainda, de interconexão com os outros jovens entrevistados.

O Quadro 1 apresenta as seis configurações e a distribuição dos jovens.59 Vale ressaltar que não foi possível incluir os 23 jovens entrevistados nas configurações. Um deles ficou de fora porque sua narrativa não formou, com as outras configurações nem sozinha, um campo de significação. Isso não impediu, contudo, que o seu relato fosse incluído na análise.

Quadro 1 – Configurações

Configurações Jovens

1 Família como espaço primordial de definição da trajetória escolar. Pedro, Denise,