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Análise dos textos ‘exemplares’ da ‘tradição’ de estudos do contato do PB com línguas africanas (Historiografia Descritiva)

LÍNGUAS AFRICANAS

PARA UMA HISTORIOGRAFIA DOS ESTUDOS DA RELAÇÃO DO PB COM LÍNGUAS AFRICANAS

6.2 Análise dos textos ‘exemplares’ da ‘tradição’ de estudos do contato do PB com línguas africanas (Historiografia Descritiva)

Feita a atividade de documentação (estabelecida por uma ‘epi-Historiografia’), passamos, nos capítulos 4 e 5, à historiografia descritiva/interpretativa, efetuando a

análise de um corpus selecionado como ‘exemplar’ (observadas as tendências apontadas no capítulo 3). Destacamos aqui alguns aspectos relevantes de nossa análise.

6.2.1 Perfil biográfico dos autores, constituição geral das obras e contextos de produção e circulação de conhecimento

Sobre o perfil biográfico dos autores, podemos destacar que os estudiosos sobre o tema se tornaram cada vez mais especializados, acompanhando a tendência geral da área de Letras e Linguística no Brasil. De homens “comuns”, simplesmente interessados no tema, a partir da fundação dos cursos de Letras – nos anos 1930 - passam a ser especialistas, que, a cada novo período, exibem uma visão mais treinada e pontual sobre os objetos investigados.

Do primeiro grupo de autores aqui analisados – Macedo Soares (1942[1874- 1890]), Mendonça (1933), Raimundo (1935[1933]), e Silva Neto (1950) –, somente Silva Neto pôde desfrutar de um contexto de circulação de ideias mais marcado pela especialização, exercendo a função de professor e pesquisador universitário.

Já no segundo grupo que formamos para as análises, não há apenas

“interessados” no tema; ele é composto por investigadores como Naro, Scherre, Petter,

Pessoa de Castro, Baxter, Lucchesi e Ribeiro, todos pesquisadores longamente treinados em relação aos avanços teóricos e metodológicos da Linguística contemporânea. São pesquisadores que se tornaram, ao longo de muitos anos de tratamento do tema, autores- referência na área, com produção de forte impacto; são, ademais, pesquisadores que contribuem para a formação de novas gerações de investigadores, garantindo, com isso, certa continuidade dos tipos de abordagem que implementaram e contribuindo para a vivacidade do tema na área de Letras e Linguística.

181 | Com relação à constituição das obras de maneira geral e às suas formas de circulação, observamos uma mudança de preferência dos meios de publicação: de livros (de um autor e com visadas amplas) para: a) artigos, às vezes resultantes de apresentações em eventos; b) teses e dissertações; c) livros organizados, que reúnem capítulos elaborados por diferentes pesquisadores, fato que também está em consonância com as transformações dos contextos de produção e circulação de conhecimento, como procuramos apontar no capítulo 5. Nesse sentido, torna-se, no segundo macro-período aqui estudado, mais rara a circulação de obras de pretensão analítica mais abrangente, como as dos autores do primeiro grupo analisado; os textos contemporâneos, como pudemos observar, tendem a ter temática mais circunscrita e orientação teórica mais específica (e mais claramente definida).

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6.2.2 ‘Horizonte de retrospecção’

Múltiplos são os diálogos, convergentes e divergentes, estabelecidos pelos autores dos dois grupos com outros estudiosos e com outros textos, sejam da subárea do contato linguístico, sejam das diferentes escolas da Linguística, sejam de áreas correlatas (como a História, a Etnografia, a Antropologia, a Sociologia). De fato, a complexidade do tema leva todos autores examinados, em maior ou em menor medida, a mobilizar uma rede diversificada de informações.

Ademais, está também presente em todos os autores selecionados a queixa acerca da carência de dados, tanto linguísticos quanto sobre os falantes e seus contextos. A questão das ‘fontes’ passa, assim, a figurar como um problema admitido (e evidentemente dividido com os estudos que se realizam em outras áreas, dadas as profundas lacunas que cercam o conhecimento sobre os africanos e seus primeiros descendentes no Brasil).

No primeiro grupo de autores analisados, verificamos um outro traço comum, presente em maior ou menor grau: a forma difusa e imprecisa de fazer referências bibliográficas, que gera a dificuldade de identificação de autores e obras referidos. Nesse caso, Macedo Soares parece ser o exemplo mais emblemático: as informações estão incompletas e excessivamente abreviadas, traço mais ou menos comum até meados do século XX. Como afirmamos no Capítulo 4, supomos que essa característica possa estar relacionada à relação autor/público-leitor visado; tal leitor seria, em tese, conhecedor das referências relevantes, que não eram ainda tão abundantes; um leitor

182 | que não necessitaria de tantos detalhamentos para identificar o ainda parco conjunto de textos em circulação na especialidade em formação no Brasil.

Vimos que Silva Neto menciona os trabalhos de Macedo Soares, Mendonça e Raimundo. Somente este último desfruta de algum reconhecimento: Silva Neto julga pertinentes as análises que Raimundo realiza da fala do negro a partir dos trabalhos de Gil Vicente. Quanto aos demais autores, verificamos discordância ou reprovação, seja nas considerações feitas sobre o PB, de maneira geral, seja naquelas mais específicas, sobre a relação com as línguas africanas.

O conceito de ‘horizonte de retrospecção’ se revelou útil em nossa análise, na

medida em que permitiu confirmar sua relação com os ‘programas de investigação’ desenvolvidos. Por exemplo, nesse diálogo convergente de Silva Neto com Raimundo, vislumbra-se uma aproximação de perspectiva entre investigadores cujos trabalhos foram publicados com um intervalo cronológico considerável; por outro lado, a

divergência entre os ‘horizontes de retrospecção’ dos contemporâneos Mendonça e

Raimundo, demonstrada no capítulo 4, indica uma diferenciação fundamental entre seus textos, tidos em diferentes revisões históricas como semelhantes. Os dois autores falam a partir de perspectivas muito distintas, como vimos.

Nos textos mais recentes, mesmo quando é possível observar uma rede de referências comuns, é notável a diversidade nos modos de utilizá-las. Entre essas referências comuns, estão os textos dos autores do grupo anterior, tornados, ao longo da história, espécies de “clássicos” da área. Petter, como vimos, é quem realiza uma retrospectiva que consideramos a mais abrangente entre as avaliadas: todos os demais autores que selecionamos, anteriores ou contemporâneos a ela, são mencionados na sua tese de livre-docência. É possível que a natureza do trabalho tenha imposto uma revisão mais ampla e detalhada do que as possíveis de se realizar em artigos e coletâneas de textos organizadas (formatos assumidos pelos demais textos dessa segunda fase que analisamos).

Entre Naro & Scherre, de um lado, e Lucchesi, Baxter e Ribeiro, de outro lado, instaura-se uma retórica de ruptura bastante explícita. Divisam-se duas interpretações conflitantes nesse cenário de reflexões contemporâneo. Comparativamente, Petter adota um tom conciliador, ao considerá-las, ambas, perspectivas legítimas, ainda que discorde da de Lucchesi, Baxter e Ribeiro.

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Destacamos aqui alguns resultados referentes ao ‘programa de investigação’ em

que se inserem os textos. Tal conceito, como vimos no Capítulo 1, organiza-se em torno de três parâmetros: ‘visão de língua’, ‘incidência da análise’ e ‘técnica’.

Conforme discutiremos na próxima seção, consideramos mais adequado não

categorizar os trabalhos rigidamente em ‘programas de investigação’, mas, sim,

procurar destacar os traços predominantes nos textos selecionados. Por exemplo, o tratamento formal de dados, guardadas as devidas proporções entre diferentes modelos teóricos e metodológicos (mais ou menos explícitos, mais ou menos apreendidos ou

“incorporados” pelos diferentes atores a cada período e a cada contexto), é comum a

todos, em virtude da própria natureza do tema, o que não justifica a inclusão de todos os

trabalhos no ‘programa de investigação descritivista’.

O conceito de ‘programa de investigação’ foi responsável por nos guiar em

nossas análises e reflexões sem, no entanto, engessar nossa perspectiva. Em outras palavras, não tivemos como motivação propor uma classificação, mas buscar compreender os textos selecionados inclusive em seu eventual ecletismo. Nesse sentido, aparando as especificidades, pudemos verificar duas tendências preponderantes, uma mais descritivista e outra mais sociocultural, que sempre se mesclam em algum nível, mas que parecem se alternar, em termos de preponderância nas diferentes obras.

Assim, no primeiro grupo, Raimundo apresenta tendência mais descritivista; Macedo Soares, Mendonça e Silva Neto parecem inclinar-se mais à orientação sociocultural. Quanto ao segundo grupo, é possível dizer que se apresentam como híbridos, tanto descritivistas quanto socioculturalistas, Naro & Scherre, Lucchesi, Baxter e Ribeiro, Petter e Castro; somente nesta última pudemos identificar com maior clareza o predomínio da tendência sociocultural1. Sem nos atermos a detalhes apresentados nos Capítulos 4 e 5, vamos aos nossos resultados gerais:

6.2.3.1 ‘Visão de língua’

Quanto a esse parâmetro, observamos que todos os autores reconhecem a natureza complexa do objeto em estudo, que tem aspectos sociais, históricos, antropológicos constitutivos; no entanto, como já observamos, varia o nível de

184 | integração dessa premissa às análises linguísticas realizadas. Autores como Mendonça, Macedo Soares e Pessoa de Castro colocam os elementos extralinguísticos como mais centrais na descrição dos fenômenos linguísticos em análise. Nos demais textos analisados, esses elementos, igualmente mobilizados, parecem funcionar como contextualizadores das descrições linguísticas.

6.2.3.2 ‘Incidência de análise’

Nos trabalhos de Macedo Soares, Petter e Pessoa de Castro, observamos um destaque para o tratamento do léxico. Nesse grupo, Petter se diferencia dos demais, pois sua abordagem é relativa a uma teoria da gramática de base lexicalista. Já em Mendonça, Raimundo, Silva Neto – como vimos, obras correspondentes a visadas de pretensão mais abrangente sobre o tema –, são contemplados todos os níveis de

descrição: fonético, lexical, morfológico e sintático, ainda que nos dois primeiros autores também haja destaque para o léxico. Já em Naro & Scherre e em Lucchesi, Baxter e Ribeiro, privilegia-se a análise de dados morfossintáticos e sintáticos, sem referência especial às unidades lexicais.

Também é de se destacar, quanto à ‘incidência’, que a “descoberta da África” no

Brasil e o interesse – apenas declarado ou efetivado – pelo contexto africano e pelas outras variedades do Português, que não o PB e o PE, são importantíssimos desenvolvimentos da área, alcançados apenas a partir do último quartel do século XX. Com efeito, essas alterações no foco são capazes de revolucionar a área, na medida em que, potencialmente, amenizam problemas reais e persistentes, como o de escassez de

‘fontes’ de dados para análise (linguística ou extralinguística). 6.2.3.3 ‘Fontes’

Relevada a questão persistente de efetiva escassez de dados, cumpre observar que, no primeiro grupo, de maneira geral, predomina a apresentação dos dados sem a identificação de ‘fonte’. Já nos trabalhos contemporâneos, observamos o uso de ‘fontes’ de origens bastante diversificadas, incrementadas a partir do momento em que se começa a considerar os aspectos mencionados no item anterior – aspectos esses que, inclusive, tornam recomendável a realização de trabalhos de campo. As ‘fontes’ tendem, nesse segundo momento, a ser claramente identificadas.

185 | 6.2.3.3.1 ‘Técnica’

Como afirmamos antes, ao lado dos textos de visada abrangente, que perpassam diferentes níveis de análise linguística, quanto à metodologia empregada, observamos que há, nos outros textos, dois eixos centrais: aquele que se centra na seleção e no exame de dados de natureza léxico-semântica, e aquele que privilegia o exame de fenômenos morfossintáticos. As análises léxico-semânticas em geral privilegiam o

roteiro característico do ‘programa descritivista’: determinação de contextos, segmentação, comutação, estudo das relações de proporcionalidade entre os elementos e, eventualmente, estabelecimento de relação entre as formas linguísticas e funções comunicativas. Nos estudos que privilegiam a análise sintática e morfossintática, ocorre a inserção de fatos linguísticos em uma análise das sociedades ou das culturas, ou em uma teoria da estratificação social ou da evolução linguístico-social, que caracterizam o ‘programa sociocultural’ (esta última tendência apoiada nos desenvolvimentos da Sociolinguística e nos estudos de mudança paramétrica). No entanto, tal como afirmamos em 6.2.3, essas tendências parecem se mesclar em propostas híbridas ou ecléticas, que assimilam traços dos dois ‘programas’.

6.3 Proposta preliminar de periodização para os estudos da relação do PB com