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4.4 ANÁLISE DISCUSSÃO 5

4.4.1 ANÁLISE 4: EXEMPLO 1

T-1) Pesq – Todo mundo já conhecia aqui esse desenho animado? O que vocês notaram do comportamento dos personagens? Vocês viram o cachorro Mutley, tudo que ele faz é pra ganhar alguma coisa de recompensa, né verdade? Será que no mundo as coisas são parecidas? T-2) Airton – Às vezes são...

T-3) Pesq – Às vezes são?

T-4) Airton – È. O povo faz as coisas por interesse.

T-5) Pesq – Airton disse, acabou de dizer que as pessoas fazem as coisas por interesse.

T-6) Airton – Por interesse...

T-7) Pesq – O cachorro Mutley é mais ou menos assim? O que vocês... T-8) Airton – Ele tava com interesse de ganhar medalha.

T-9) Pesq – De ganhar medalha. E será que se ele não ganhasse... RISOS.

T-10) Moisés – Ele não ajudava. T-11) Airton – Ele não ajudava.

T-12) Pesq – Muitas vezes a gente faz as coisas por interesse, pra ganhar algo em troca. Né verdade? O que é que vocês acham dessa maneira? T-13) Airton – É errado.

T-14) Pesq – Tu acha errado? Por quê?

Como o foco da análise é o discurso moral dos menores, destaca-se, nesse segmento inicial, a transição que ocorre nas falas, partindo de enunciados descritivos e desembocando em enunciados avaliativos. Os turnos T-2 e T-4 de Airton são apenas pontos de vista que partem das intuições e constatações do menor, desacompanhados de justificativas. Nessa mesma direção, o turno T-6: “ele tava com interesse de ganhar medalha”, também de Airton, é uma síntese que narra alguns eventos do desenho. Esse panorama muda quando o pesquisador pede uma apreciação das ações descritas anteriormente, momento marcado pelo turno T-12: “o que é que vocês acham dessa maneira?”.

O verbo Achar – típico marcador de opinião, segundo Koch (2004, p 72) –, presente a T-12, tem o poder de modificar a cena discursiva. O verbo Achar opera uma transformação no discurso, implicando a ocorrência de enunciados modais: marcados subjetivamente. Lozano, Peña-Marín e Abril (1984, p. 61) defendem que a lógica formal e as abordagens semióticas têm suas fronteiras delimitadas pela “presença de um sujeito enunciador”. A enunciação do verbo Achar, pedindo a “opinião” dos participantes, constitui-se em um acontecimento discursivo relevante, justamente por precipitar a ocorrência de enunciados subjetivamente modalizados.

Bakhtin (2003, p. 290) caracteriza o que ele chama de “gêneros avaliativos”, como enunciados marcados notadamente pela apreciação axiológica do sujeito falante frente aos quadros tratados em seu discurso. Quando Airton em T-13 enuncia o “é errado”, entendemos que sua fala tangencia o mundo moral. Enunciados construídos a partir das categorias do “certo” e do “errado”, quando predicam ações, estão enraizados na dimensão moral do ser humano.

No contexto da discussão, estão sendo avaliadas ações rotuladas pelos participantes como ações que ocorrem “por interesse” ou, como o pesquisador trata

no turno inaugural, ações voltadas “pra ganhar alguma coisa de recompensa”. No paradigma cognitivista, as ações movidas pelo interesse particular tipificam os momentos menos sofisticados da vida moral das pessoas.

Reconstruindo a argumentação de Airton, e tomando por base que ele está se opondo às ações avaliadas, ter-se-ia, numa possível categorização de seu ponto de vista na tipologia kohlberguiana, um enquadramento de suas posições acima do segundo estágio de desenvolvimento moral, onde encontramos a moralidade individualista, ou hedonista. No entanto, como bem nos adverte o próprio Kohlberg (1963, p. 10), a classificação do raciocínio moral em um determinado estágio deve- se muito mais a apresentação das motivações e justificativas para a ação avaliada pelos participantes do que pela constatação empírica da ocorrência de um determinado julgamento moral.

Souto e Leitão (2003) descrevem ações discursivas efetuadas por um professor numa aula de filosofia, que instauram o discurso argumentativo. Uma dessas ações básicas é o pedido por justificativa após a apresentação de um ponto de vista isolado de justificação. Na atual entrevista, essa ação – o pedido por justificativas – ocorre no turno T-14: “tu acha errado? Por quê?”.

A réplica, T-15: ”a gente deve fazer a coisa certa...”, analisada por um estudo interno da linguagem, isto é, considerando como unidade analítica a “frase” e seu encadeamento lógico, tenderia a ser entendida como mero paralogismo do tipo: “a gente deve fazer o certo porque senão é errado”. Raciocínio considerado inválido do ponto de vista da lógica formal, desde que montado nas contradições dos próprios termos.

Indo além de uma abordagem formalista, enxergamos, em T-15, importante material analítico. Ao investigar a constituição discursiva da moralidade, entendemos

que a enunciação do verbo “Dever” confere um colorido axiológico à fala de Airton. Há algo a mais no turno de Airton. Não é apenas o certo oposto ao errado. É um “certo” que “deve” ser assumido enquanto tal. No turno de Airton, ouve-se a “voz” da instituição. Defendemos que os sentidos subjacentes a T-15 ganham compreensibilidade quando o enunciado de Airton é remetido à “linguagem social” institucional.

“Linguagens sociais” ou “vozes sociais” são expressões utilizadas por Bakhtin (2006, p. 275) para falar da língua enquanto conjunto semiótico-axiológico com os quais determinados grupos dizem o mundo. “Vozes sociais” são linguagens socialmente singularizadas. É plausível supor que, inseridas em uma unidade sócio- educativa, as atividades rotineiras da instituição tenham como eixo condutor categorias deônticas – que dizem respeito à “conduta” – e, consequentemente, atividades que mobilizam frequentemente discursos pautados em conceitos como “certo” e “errado”.

Bakhtin (2006) toma o romance polifônico de Dostoievski como metáfora exemplar para diferenciar a lingüística tradicional do que ele chama de “metalingüística” ou “translingüística”. Bakhtin não passa ao largo das contribuições da lingüística, mas foca nas “relações dialógicas”, relações fundamentais para o entendimento da linguagem e da comunicação humana, porém relegadas até então. Sendo conceito-chave na teoria da linguagem bakhtiniana, relações dialógicas são “relações de sentido”, que ocorrem unicamente quando se perscruta a origem responsiva dos enunciados. No plano do sentido, cada texto está em relação dialógica com discursos que o antecedem e que potencialmente o sucedem. Tomando como referencial os pressupostos bakhtinianos, entendemos que o argumento de Airton (não se deve agir por interesse, porque devemos fazer a coisa

certa) é atravessado pela voz institucional, a qual ele leva em conta na constituição de seu enunciado.

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