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A partir da última década do século XX, as teorias socioculturais, ainda que de forma reduzida, têm alimentado pesquisas que substancialmente se diferenciam

do paradigma cognitivista (CRAWFORD, 2001; TAPPAN, 1991, 1998, 2006; TURNER; CHAMBERS, 2006). O ponto básico que confere uma dimensão comum aos estudos aludidos anteriormente consiste no entendimento das relações sujeito/mundo como relações mediadas por sistemas simbólicos disponibilizados culturalmente. Nessa vertente, desponta a relevância da linguagem, desde que esta é concebida como sistema de mediação semiótica por excelência, sendo, portanto, chave para compreensão do desenvolvimento e julgamento moral. Na vanguarda dessas pesquisas, Tappan (1991, p. 246, 247) explora as articulações estabelecidas entre linguagem, narrativa e experiência moral. Concebendo a moral a partir do paradigma da narração, o autor destaca quatro aspectos importantes encontrados no relato sobre as experiências morais de uma criança5:

a) A linguagem é usada como “ferramenta” para a resolução de dilemas morais;

b) a construção narrativa analisada é compreendida como emergindo de um diálogo interno, onde diferentes vozes sociais, presentes ao mundo cultural da entrevistada, comparecem;

c) o raciocínio moral que se torna fenômeno na narrativa analisada, não pode ser enquadrado nas tradicionais categorias de justiça e cuidado sem um conhecimento minucioso do contexto cultural da entrevistada;

5No artigo referido, o autor analisa uma entrevista com uma garota de 8 anos de idade, que narra uma situação de dilema moral real. A situação conflituosa acontece no memento em que a entrevistada diz não saber exatamente o que é o certo ou errado quando tem de decidir sobre como deve cuidar de sua irmã mais nova na ausência dos pais. A situação específica consiste na proibição que a entrevistada impõe à irmã acerca de ligar TV, na ausência dos pais. Susan (a garota da entrevista) relata não deixar sua pequena irmã ligar a TV, para evitar que ela leve um choque, ou que aconteça algum pequeno acidente. Susan fala em consultar um pequeno livro de anotações contendo uma série de regras que funcionam como instrumento regulador de suas ações.

d) as narrativas acerca de dilemas morais não dão acesso ao mundo histórico ou psicológico das pessoas, porém fornecem indicativos de como a linguagem e outras formas do discurso organizam o discurso moral da entrevistada. A importância do estudo se dá pelo deslocamento da unidade de análise, que no paradigma cognitivo-desenvolvimentista elege o sujeito tomado em sua individualidade, e agora recai nos modos de a linguagem conferir forma ao discurso moral. Tappan (1991) destaca, ainda, os aspectos educacionais implícitos nesse estudo pioneiro. A perspectiva pedagógica que emerge de sua pesquisa implica propostas educacionais pelas quais professores e educadores passem a construir e implantar atividades em que os educandos possam “organizar” discursivamente suas experiências morais. Uma questão aberta pelo estudo acima diz respeito ao entendimento das razões que fariam as narrativas serem realmente efetivas para a construção da moralidade.

Trabalhando na lacuna acima, Tappan (1998) e Crawford (2001) se valem de conceitos vygotskyanos que são evocados para ajudar na compreensão da constituição do discurso e da consciência moral. Tappan (1998) entende que a dimensão moral não deve ser concebida como um sistema construído sobre princípios universais (perspectiva kohlberguiana) nem deve ser entendida como um corpo normativo de condutas que estaria a regrar a conduta das pessoas (abordagem tributária do kantismo e neokantismo). Por outro lado, a moralidade não pode ser reduzida a esquemas interiores aos indivíduos – perspectiva encontrada na pesquisa neo-kohlberguiana. Tappan (1998, p. 144-145) propõe que a dimensão moral deva ser entendida como uma atividade mediada por:

uma linguagem moral vernacular que fundamentalmente molda as formas pelas quais as pessoas pensam, sentem e agem. Esta linguagem moral vernacular

é, sobretudo, compartilhada por pessoas que participam conjuntamente nas mesmas atividades, que estão engajados em práticas sociais/morais semelhantes [...] Este modelo de concepção para o funcionamento moral, como atividade sócio-cultural, tem profundas implicações para o entendimento das articulações entre educação moral e desenvolvimento moral. Desde uma perspectiva vygotskyana, a educação moral envolve processos de participação guiada onde crianças são assistidas por pais, educadores e membros mais competentes no sentido de alcançar novos e mais sofisticados patamares de funcionamento moral.

Criticando também o sistema categórico baseado na idéia de estágio adotado pelo paradigma cognitivo-desenvolvimentista, Crawford (2001), traça um paralelo entre o desenvolvimento moral e o desenvolvimento do pensamento conceitual, como concebido por Vygotsky. A união entre essas duas esferas do funcionamento psíquico (desenvolvimento moral e o processo de formação de conceitos) acontece pela natureza semiótica subjacente aos dois processos: ambos consistem em atividades que envolvem criação e atribuição de sentidos. Esta visão opõe-se à proposta hierarquizada, baseada em estágios desenvolvimentistas, encontrada no modelo de inspiração piagetiana, por propor uma visão do funcionamento moral que “diverge fortemente das teorias de estágios, que enxergam a moralidade essencialmente como um comportamento governado por regras”. O modelo teórico traçado por Crawford (2001) sugere que a moralidade genuína é, antes de tudo, uma atitude de atribuição de sentidos com vistas a regular a interação entre indivíduos. A escolha moral não é um reflexo de estruturas morais internas ao agente. Na visão do autor, uma decisão moral genuína cria uma:

forma pessoal de estar-no-mundo. A escolha moral verdadeira, como o pensamento conceitual, presume um controle sobre o ambiente e a capacidade de

antecipar os impactos na exterioridade e, neste sentido, ela tem a propriedade de criar sentidos. (CRAWFORD, 2001, p. 118).

Tal proposta defende que a moralidade genuína presume pessoas com habilidades responsivas, ou seja, pessoas capazes de responder moralmente a uma dada situação, fato que a tornou importante no planejamento da pesquisa ora relatada, uma vez que investigamos a constituição discursiva da moralidade. As atividades alvo da investigação pressupõem um engajamento argumentativo dos mesmos frente a dilemas axiológicos. Nesse movimento discursivo, os participantes passam a atribuir sentidos morais aos problemas. Assim, encontramos um paralelo entre as propostas encontradas acima e as situações por nós investigadas.

O desdobramento da pesquisa acerca do desenvolvimento moral sob as luzes das teorias sócio-culturais se dá pelo entendimento do funcionamento moral como ação mediada (TAPPAN, 2006). Nesse trabalho, o autor defende que as experiências morais cotidianas são o verdadeiro foco da investigação acerca da moralidade humana e se mostra especialmente interessado em “entender as formas pelas quais os ‘artefatos’, ‘ferramentas’ e ‘símbolos’ de ordem social/histórica/cultural/institucional exercem uma mediação sobre o funcionamento moral individual.” (TAPPAN, 2006, p. 128).

Tappan (2006) entende o funcionamento moral como uma forma de ação mediada (WERTSCH, 1998) e o desenvolvimento moral como o processo gradual pelo o qual os indivíduos se apropriam de “significados morais mediacionais”. No estudo referido, o autor trabalha sobre dados coletados sob o enfoque cognitivista- desenvolvimentista e os analisa sob o prisma das teorias socioculturais, enfatizando o conceito de ação mediada. Tratar o julgamento moral e o desenvolvimento moral

como ação mediada representou a principal contribuição de ordem teórica oferecida pelos estudos que têm sua origem nas abordagens de cunho sociocultural.

Tal como proposto por Wertsch (1998), o conceito de “ação mediada” engloba dois elementos básicos: um sujeito em ação (o agente), e sistemas (físicos ou simbólicos). Na elaboração deste construto teórico, Wertsch (1998) apresenta vários exemplos elucidativos. Destacamos aqui o “salto com vara” – uma das modalidades do atletismo. Atletas conseguem a façanha de saltar vários metros, fato que poderia ser ingenuamente percebido como fruto apenas de um empenho pessoal. O autor sustenta, porém, que a chave para a compreensão do “feito atlético” encontra-se na unidade composta pelo atleta e seu instrumento. A análise de Wertsch não se restringe, no entanto, aos instrumentos físicos (a vara do saltador, no caso); considera, também, os instrumentos de ordem lingüística e semiótica (livros, vídeos sobre o esporte, instrução do treinador, comentário dos pares, etc.) que guiam a ação de saltar. Esses recursos de ordem lingüística soam como “vozes” que organizam e moldam a ação do saltador. Consideramos que a constituição do discurso moral dos participantes do presente estudo pode ganhar mais compreensibilidade quando considerada analogamente.

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