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Análise da implicação da pesquisadora-gestora e notas sobre a escrita do texto

4 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

4.1 Análise da implicação da pesquisadora-gestora e notas sobre a escrita do texto

Nós, que fazemos a gestão, que ocupamos algum lugar de Governo ou conduzimos alguma ‘intervenção’ institucional, também não somos ‘folhas em branco’, não somos portadores de qualquer neutralidade axiológica. Interrogamos a partir de determinados lugares, disputando, também, ‘ nosso projeto’, que entendemos como justo e necessário. Temos o direito e a obrigação de apresentar nossos ‘textos’, prenhes de conceitos/categorias/sentidos. Mas, assumamos que nosso texto – nós, que ocupamos o lugar de gestor/Governo – admite ser misturado a outros para compor um novo, muitas vezes surpreendentemente diferente dos que portávamos antes do encontro (CECILIO, 2007, p. 348).

Segundo Monceau (2002), a problemática da análise da implicação do pesquisador aparece pela primeira vez, de forma explícita, no livro Lapsus des intellectuels,34 em que Lourau apontava que o intelectual construía seu estatuto na e pela recusa de analisar suas implicações materiais, sociais e políticas.

Por considerarmos o pesquisador elemento fundamental e instrumento da pesquisa qualitativa, de forma coerente com a postura epistemológica e o referencial teórico escolhidos, a análise da implicação dos apoiadores e trabalhadores das ESFs será constantemente alimentada com a análise da implicação da pesquisadora, que deverá ser abordada não somente em profundidade, como de forma transversal a todo o trabalho investigativo.

Romagnoli (2012) apresenta o paradigma do pesquisador implicado, fazendo um contraponto à busca pela neutralidade e verdade observada nas pesquisas psicológicas:

Na tentativa de operar na contramão dessa tendência, que ainda é majoritária no cenário acadêmico, emerge o pesquisador implicado. Implicação da qual não podemos escapar, desafio cuja análise é circunstancial e provisória. Análise que se sustenta em um paradigma ético-político, em que não há neutralidade e nem é possível fazer uma pesquisa de ‘ fora’. Ou seja, o pesquisador ocupa um lugar privilegiado para analisar as relações de poder, inclusive as que o perpassam.

Não concebemos, dessa forma, que o poder ou a ideologia, inevitáveis, possam comprometer o rigor científico. Como nos lembra Monceau (2008a), a questão não é nos

livrarmos de nossas ideologias, mas tentar analisá-las coletivamente: aí está o verdadeiro trabalho científico, segundo ele. Assim, procuramos, desde o início, dar visibilidade à experiência e à história da pesquisadora e coordenadora do AMSM de Santa Luzia – que ocupa um híbrido lugar de agente participante de uma ordem, de uma militância na Saúde Coletiva e, neste momento, de agente pesquisadora – desvelando as instituições que a atravessam: a Saúde Coletiva, a militância, a formação profissional, a relação com o trabalho e com sua remuneração, etc. Em resumo, trata-se de dar visibilidade às linhas de constituição tanto do dispositivo matricial quanto do dispositivo do processo de pesquisa em questão. A esse respeito, cabe também lembrar que o próprio coletivo pesquisador é, ele mesmo, atravessado por instituições outras que não as abordadas diretamente nesta pesquisa, o que compõe um campo de interferências ilimitado, sobre o qual se situa nossa investigação.

Para colaborar na explicitação da análise da implicação da pesquisadora intercessora35, adotamos o uso da escrita diarística36 (LOURAU, 1997a), no formato de anotações de informações e reflexões feitas no campo de pesquisa (que era também o campo de trabalho da pesquisadora) e ao longo do período de redação da tese, permitindo o conhecimento de aspectos relevantes darelação que ela estabelece com o AMSM e com a construção do texto final. Referimo-nos ao conjunto de anotações feitas nessas duas situações como “diário de pesquisa”, do qual, pelo seu grande volume de anotações, optamos por apresentar apenas alguns fragmentos, que serão inseridos ao longo da tese sem sofrer reanálise porque já são, por si mesmos, a explicitação da própria reflexão da pesquisadora. Esse extratexto37 (LOURAU, 2004b) tem a finalidade de permitir ao coletivo pesquisador, bem como ao futuro leitor, a base para construir suas próprias intervenções sobre a análise de implicação da pesquisadora intercessora, sobrescrevendo seu texto a esse e dando continuidade ao hipertexto do campo de forças em questão.

Aceitamos, tanto quanto possível,38 o convite feito por Lourau (2004b): transformar o extratexto da escrita diarística, com ou sem coloração intimista, em procedimento de trabalho, “[...] transportá-lo para longe dos recônditos da introdução, das notas de pé de página ou de fim de capítulo, dos anexos e partes documentais, etc., até atingir a página plena do texto [...]” (LOURAU, 2004b, p. 252). Para o autor, o diário permite que se conheça a pesquisa despida

35 Ver “Introdução”.

36 Do original: écriture diaristique (LOURAU, 1997a). 37 Do original: hors-texte (LOURAU, 2004b).

38 Merino (1997-1998) lembra, ao discutir a análise de implicação do pesquisador, que, assim como o analisante,

da “indumentária de domingo” (LOURAU, 1993, p. 79), fazendo clara referência à desnaturalização das instituições que ele pode promover, na qual incluímos tanto o AMSM quanto a própria atividade científica, com os quais a pesquisadora está implicada, de forma primária e secundária39, respectivamente (LOURAU, 2004b).

Se o uso do diário pode parecer um arroubo narcísico, cumpre lembrar que sua função é deslocar o pesquisador do centro e precipitá-lo no campo de interferências caro à AI, o que dá visibilidade à escrita como atravessada pela complexidade institucional.

Enfim, podemos afirmar que o texto desta tese é uma versão implicada (construída segundo as implicações) da implicação da pesquisadora, dos trabalhadores das ESFs e apoiadores na instituição do Apoio Matricial de Santa Luzia, além daquela, mais do que presente, da orientadora. Então, no momento em que o leitor chegar a ler estas linhas, esta versão já terá sido reescrita e problematizada pelo coletivo pesquisador em ação, o que contribuirá para a análise de implicação dos participantes desse processo. Ao final, a história já será efetivamente uma história de muitos e sempre em movimento.

Leio em Guillier e Samson (1997-1998) que a análise das implicações, como prática social, não é simples nem sem risco. Sei que os riscos são muitos, mas também me são vitais. Sobre eles, há uma epígrafe escolhida por Lourau para abrir um de seus livros que não me sai da cabeça: ‘Uma instituição é perdida quando aquele que está dentro, ao invés de se achar muito honrado, começa a pensar... quando no lugar de estar dentro de sua instituição, de ser, estar e viver e de funcionar simplesmente, como instituído, naturalmente...; quando a instituição não lhe basta mais... quando ele começa a pesar, quando ele começa a se perguntar se ele não é uma besta velha...’40

Não acredito na perda total. Acredito na transformação... (Diário de pesquisa, 22 de agosto de 2012).41

39 Lourau (2004b, p. 255) aponta a existência de dois tipos de implicação: primárias e secundárias. As primárias

(na própria situação de intervenção) compreendem: “1. implicações do pesquisador-praticante com seu objeto de pesquisa/intervenção; 2. implicação na instituição de pesquisa ou outra instituição de pertencimento e, antes de tudo, na equipe de pesquisa/intervenção; 3. implicação na encomenda social e nas demandas sociais”. As secundárias (no campo de análise) compreendem “4. implicações sociais, históricas, dos modelos utilizados (implicações epistemológicas); 5. implicações na escritura ou qualquer outro meio que sirva à exposição da pesquisa”. Assim como Lourau (2004b), por não nos agradar o caráter esquemático dessa diferenciação, preferimos abordar as implicações primárias e secundárias sob a denominação única de “implicação”, embora façamos referência frequente às implicações em jogo tanto na situação de intervenção quanto no campo de análise.

40 Do original: Une institution est perdue quand celui qui est dedans, au lieu de s’en trouver très honoré,

commence à penser..., quand au lieu d’être dans son institution, d’être, d’y être, et d’y vivre et d’y fonctionner simplement, comme institué, naturellement...; quand l’institution ne lui suffit plus... quand il commence à peser, quand il commence à mesurer, quand il commence à se demander s’il n’est pas une vielle bête... (PÉGUY, 1907 apud LOURAU, 1996, epígrafe).