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TURMA COMPOSIÇÃO FAMILIAR

3.1.5 Análise microgenética de videogravações

Segundo Triviños (2009), os pesquisadores qualitativos tendem a analisar seus dados de maneira indutiva, onde os significados e a interpretação surgem da percepção do fenômeno visto num contexto. Dessa forma, chega-se ao nível de abstração, ao conceito. Porém, ao mesmo tempo, ao descobrir sua aparência e essência, está-se avaliando um suporte teórico que atua dedutivamente, que só alcança a validade à luz da prática social. De acordo Silva; Santos e Rhodes (2014), diversos autores se envolvem em discussões acerca da influência do pesquisador nesse momento de análise pelo vídeo. Numa perspectiva de análise interpretativa dos fenômenos estudados, assume-se que pesquisadores são sempre mobilizados por critérios teóricos e metodológicos ao construírem conhecimentos sobre as evidências encontradas. Desse modo, ainda que a videografia represente um avanço para a evolução das técnicas metodológicas em pesquisa, a utilização desse recurso estará sempre condicionada pela perspectiva teórica adotada pelo pesquisador. Assume-se neste trabalho a postura metodológica proposta em (PEDROSA; CARVALHO, 2005) em que o dado científico é uma informação

construída, pois não existe independentemente do observador. É o observador quem o elege ao status de dado, como fruto de sua reflexão e sensibilidade.

No início da análise de videogravações o pesquisador precisará definir o que transcreverá, se será todo o vídeo ou trechos específicos. A decisão de recortar um episódio em determinados momentos depende do que se quer evidenciar e do que é relevante para a discussão na pesquisa. Alerta-se, no entanto, que, antes mesmo de se pensar sobre qual decisão tomar e sobre a forma de estruturar a análise dos dados, é preciso certificar-se sobre como o dado está sendo concebido, pois ao se transcrever um áudio ou um vídeo, o pesquisador cria mundos que não são simplesmente reapresentações, mas são construções textuais originais relacionadas com um acontecimento irrepetível de um momento histórico que o produziu. Nesse sentido, apesar dos muitos outros detalhes e fenômenos presentes e identificados nas imagens, o recorte do dado circunscreveu o olhar do pesquisador em torno do evento pelo qual a pesquisa teve interesse (SILVA; SANTOS; RHODES, 2014).

Com base nos textos de Vygotsky, afirma-se que para compreender um processo é preciso retornar à origem do desenvolvimento de uma determinada estrutura – sua gênese. Esse teórico explorou tal diretriz metodológica voltada para a análise minuciosa de um processo. É nesse sentido que as análises neste paradigma são concebidas como microgenéticas. Existem três principais formas de estudo minucioso em processos interativos: a cognitivista, que focaliza o plano intrapessoal nos eventos interativos; a interacionista, que propõe o exame das relações interpessoais e o jogo conversacional como essenciais para a formação do funcionamento intrapessoal; e a enunciativo-discursiva, a qual busca privilegiar a dimensão dialógica e também relacionar interação, discurso e conhecimento (PACHECO, 2016).

Carvalho, Império-Hamburguer e Pedrosa (1996) destacam que, no campo interativo, há interesse de um parceiro pelo outro, orientação da atenção dirigida ao comportamento do outro e derivados do outro. As autoras afirmam ainda que o processo no qual uma informação adquire um significado ocorre quando um comportamento é selecionado do campo interacional e esse comportamento pode ser um simples movimento e a ele é atribuído um significado próprio, determinado pelas interações do grupo, podendo ser de uma díade, de forma que as ações dos integrantes passam a ser ajustadas. Cria-se, assim, a possibilidade de comunicar

ao(s) outro(s) esse(s) significado(s) e de regular a própria ação à ação do(s) outro(s). Um novo código passa a vigorar com significados particulares construídos no processo interativo.

Pedrosa e Carvalho (2005) definem episódio como uma sequência interativa clara e conspícua ou trechos do registro videográfico em que se pode circunscrever um grupo de crianças a partir do arranjo que formam e/ou da atividade que realizam em conjunto. Por vezes não é possível dizer quando um episódio começou ou terminou, sendo decidido arbitrariamente um momento para se iniciar e finalizar a transcrição e a análise. A seleção de episódios decorre dos objetivos particulares de cada estudo e no presente trabalho uma das pistas utilizadas para realizar o recorte dos episódios foi a configuração da brincadeira, pois não havia alterações na composição social do grupo. Apesar disso, quando a configuração da brincadeira se alterava, formava-se uma nova estruturação do grupo de brinquedo.

O procedimento de análise microgenética é orientado aos detalhes e ao recorte de episódios interativos, permitindo maior visibilidade da complexidade das ações socialmente direcionadas. Esse tipo de análise é constituído pela elaboração de uma micro-história, interpretável sob a perspectiva semiótica em que pesam as condições amplas da cultura e da história. Busca-se apreender na análise microgenética, através dos gestos e olhares, as transformações nas relações (COSTA; AMORIM, 2015). De acordo Pacheco (2016) pode-se afirmar que a forma de construção de dados nas pesquisas por meio de videogravação e transcrição dos episódios focaliza a atenção aos detalhes, o recorte de episódios interativos, um exame orientado para o funcionamento dos discursos, para as relações intersubjetivas e condições sociais da situação, resultando em um relato minucioso dos acontecimentos.

A videografia é uma ferramenta muito importante para captura da dinâmica na análise da interação humana. A análise dos fluxos de interação por meio do recurso do registro em vídeo permite a captura de nuances das ações das pessoas, além disso, possibilita o resgate das situações, de modo que se torna possível elaborar um relato minucioso dos acontecimentos. Nesse sentido, entende-se que a videografia se apresenta como uma grande aliada da pesquisa das interações humanas, uma vez que possibilita a observação sistemática de vários elementos coatuantes e interdependentes (SILVA; SANTOS; RHODES, 2014).

Pedrosa (2005) salienta que a exploração de episódios para mapear diversas estratégias usadas por crianças, em situação de interações sociais, tem se revelado um procedimento metodológico eficiente, em que se faz uma descrição detalhada de certas nuances da situação e, assim, é possível detectar aspectos do relacionamento das crianças que atestam uma compreensão das relações sociais, uma apreensão das sugestões sociais. A partir da exploração de episódios de brincadeira, quando a criança atribui papéis a si e aos outros, tenta dirimir conflitos de interesses com seus parceiros, organiza os espaços e as atividades e cria um enredo onde essas atividades e cenários vão se sucedendo, entre vários outros aspectos, o pesquisador encontra um espaço propício para investigar a criança e a hierarquia de papéis, do modo como se apreende o outro e, ainda, da necessidade de certos ajustes que se fazem necessários diante da reação do parceiro, como forma de regulação do comportamento.

Com base no número pequeno de participantes no grupo de brinquedo (apenas quatro meninas por grupo), optou-se pela forma de transcrição que procura informar sobre todos os comportamentos das crianças em cena, em que se pode discutir, por exemplo, a brincadeira solitária ou a diferenciação de crianças em díades distintas. Na transcrição de episódios realizada neste estudo optou-se também pelo acréscimo de impressões provocadas no pesquisador pelas ações das crianças, indicando-se dentro de parênteses, após as falas de cada criança ou pesquisadora, frases do tipo: “é como se...”. Nesse sentido, corroboramos o pensamento de Pedrosa e Carvalho (2005), afirmando que esses comentários acrescentam nuances importantes às situações descritas e podem propiciar uma melhor compreensão do episódio, tanto para leitores externos ao texto científico, como também para a própria pesquisadora na confecção de sua análise.

Nos vídeos, os elementos não verbais desempenham um papel imprescindível na apreensão do que está sendo dito. A entonação da voz, a velocidade da fala, os gestos, as expressões faciais, entre outros elementos, compõem o ato de expressar um pensamento e se relacionam de várias maneiras com o enunciado verbal, enriquecendo o nível de detalhamento na análise do fenômeno. Desse modo, ouvir e assistir repetidas vezes a um mesmo evento é uma ação facilitada pelo recurso da videografia. O pesquisador com essa ferramenta tem a chance de familiarizar-se com o fenômeno estudado. Por outro lado, o pesquisador, ao analisar o mesmo evento várias vezes, acaba por construir

impressões e interpretações a partir do ângulo que ele baseia sua perspectiva (SILVA; SANTOS; RHODES, 2014).

Depois de assistir diversas vezes aos mesmos episódios, todos os indícios, perguntas e suposições foram anotados, indicando-se as ocorrências as quais estavam relacionados. A partir daí, as formulações teóricas subjacentes a cada uma dessas direções eram revistas, de forma a reafirmar ou não as pistas que conduziam a elas. E tudo isso, como afirmam sabiamente Pedrosa; Carvalho (2005), reorientava a observação de outros episódios ainda a serem analisados. Ainda de acordo com as autoras, buscou-se observar cuidadosamente o arranjo da brincadeira, pois estes têm um potencial regulador sobre o comportamento das crianças. O arranjo da brincadeira inclui a percepção de relações entre os componentes de uma situação e a possibilidade de a criança ser motivada pela configuração percebida, ajustando-se a ela e/ou ajustando-a as suas próprias ações.

Neste trabalho também tivemos episódios selecionados e analisados com a finalidade de ilustrar empiricamente argumentos e interpretações teóricas baseados na literatura acerca das relações étnico-raciais no Brasil. Como afirmam Pedrosa;

Carvalho (2005), a descrição e análise dos episódios visam confrontar e examinar conceitos teóricos, oferecendo evidências empíricas que permitam ao leitor avaliar sua pertinência e consistência. O propósito neste trabalho de tese foi produzir informações potencialmente relacionadas à identificação e análise de fragmentos de significações produzidos ou utilizados por meninas negras e brancas, de nove a onze anos, sobre o pertencimento étnico-racial durante episódios de interação social em grupo de brinquedo. Entre outras, serão alçadas pistas acerca do processo de apropriação pelas crianças de estereótipos e valores sociais preconceituosos emergentes nas relações étnico-raciais brasileiras.

Pretendeu-se, portanto, analisar as informações construídas através dos procedimentos de pesquisa propostos com base nos aportes teóricos da Psicologia do Desenvolvimento numa perspectiva sociocultural (VIGOTSKI, 1984; COLE;

COLE, 2004; ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004); nos estudos sobre cultura de pares no grupo brinquedo (CARVALHO; PEDROSA, 2002; CORSARO, 2009); nos estudos sobre expressões do racismo na infância (CAVALLEIRO, 2001;

RODRIGUES; MONTEIRO; RUTLAND, 2012; MOREIRA-PRIMO; FRANÇA, 2020); e nos estudos sobre o preconceito e a ideologia racial no Brasil (ALLPORT, 1954;

CARONE; BENTO, 2002; LIMA; PEREIRA, 2004; ALMEIDA, 2018; KILOMBA, 2019;

LIMA, 2020).