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ANÁLISE MUSICAL E PARTITURAS

No documento Edu Lobo: o terceiro vértice (páginas 140-156)

Villa-Lobos, Tom Jobim, Edu Lobo: uma influência70

1 – Algumas considerações

A partir de pesquisas fonográficas e levantamento de dados publicados procurou-se uma abordagem analítica de algumas das obras de Villa-Lobos, Tom Jobim e Edu Lobo. Tivemos como finalidade estabelecer uma possível influência de Villa-Lobos na maneira de compor de Tom Jobim e de Edu Lobo, sob o ponto de vista de importantes elementos da estética musical.

Sem intenção de aprofundar o assunto sobre a estética estrutural da música, consideramos relevante situar alguns de seus elementos principais e fundamentais para compreensão e embasamento terminológico desta análise. Os princípios adotados foram: tonalidade, modalidade (subdivididos em subcapítulos) e, ainda, o ritmo e a harmonia (discorridos no processo analítico das obras). Tais elementos musicais foram abordados por acreditarmos que nos proporcionem fundamentações necessárias para a análise pretendida. Esclarecemos ainda que os subcapítulos sobre tonalidade e modalidade foram abordados com mais ênfase por apresentarem maior dificuldade de compreensão terminológica.

Inúmeros trabalhos publicados enfocam Villa-Lobos, principalmente, como o compositor erudito. Tarefa árdua e difícil. Contudo, tarefa igualmente difícil e árdua é abordar este compositor sob uma visão popular, já que o estamos correlacionando com Tom Jobim e Edu Lobo. Desse modo, este trabalho inclinou-se para um Villa-Lobos folclorista, modernista e lirismo na temática, por percebermos que, a partir dessa linha composicional, é possível realizar uma “afiliação” musical entre os mencionados compositores, ditos populares.

É fato que a região Nordeste do Brasil é rica em tradições culturais. O folclore, palavra criada por William Thoms (1803-1885), tem sua origem saxônia formada de duas palavras: folk, que significa povo e lore, sabedoria. Pode-se, então, definir folclore: forma de poemas, lendas, contos, provérbios, canções e nas manifestações tradicionais de um povo: danças, cantigas, crendices, superstições.

Villa-Lobos foi o primeiro compositor que soube se utilizar do rico e vasto material folclórico do nosso país. Imaginação ou não, fato que é, em novembro de 1930, na revista

Revue Musicale, de Paris, a sra. Suzana Demarquez escrevera um artigo em que dizia que,

entre 1909 e 1912, Villa-Lobos realizara uma viagem pelas terras ainda habitadas por índios (não diz em que Estado), viagem incorporada a várias missões científicas, principalmente alemã. E, nessa ocasião, o compositor vivenciou as diversas manifestações socioculturais daquele povo indígena. Ali teria colhido temas e testemunhado idéias e comportamentos psicológicos peculiares daquela etnia.

Realmente, existem documentos que comprovam pesquisas realizadas por Villa-Lobos no folclore brasileiro. A maior prova da existência dessas pesquisas encontra- -se nas próprias obras do compositor. Em favor dessa presença indígena de Villa-Lobos, 70 Este estudo partiu de minhas impressões e intuições a partir das obras dos três compositores. Solicitei aos músicos José Moura e Mário Ferraro que explicitassem tecnicamente minhas idéias, para que tivessem validade acadêmica.

Mário de Andrade afirma que o criador das “Bachianas Brasileiras” mistura elementos musicais vivenciados em duas fases: “a européia, aproximadamente impressionista, e a fase brasileira que tirou a sua base de inspiração não apenas do formulário folclórico nacional, mas em grandíssima parte se refez orientada pelos processos musicais ameríndios”. Entretanto, paira hoje uma dúvida sobre a presença desta raiz ameríndia no material folclórico villa-lobiano.

Rico exemplo da criatividade da utilização do folclore, nas obras de Villa-Lobos são certamente suas 16 “Cirandas” compostas para piano: “Terezinha de Jesus”, “A condessa”, “Senhora dona Sancha”, “O cravo brigou com a rosa” (o compositor se utiliza também da cantiga “Sapo Cururu”) “Pobre cega”, “Passa passa gavião”, “Xô xô passarinho” (com incidência da canção “Mês de junho”), “Vamos atrás da serra”, “Calunga”, “Fui no tororó”, “O pintor de Cannahy”, “Nesta rua nesta rua”, “Olha o passarinho”, “Domine”, “À procura de uma agulha”, “A canoa virou”, “Que lindos olhos” e “Co-có-có”. São peças curtas em que o compositor eternizou, visto integrarem o repertório pianístico universal, singelas e expressivas melodias do folclore infantil, revestindo-as de grande técnica composicional, de difícil execução.

Ao utilizar-se de simples e delicada linhas melódicas do folclore brasileiro, como estas presentes nas “Cirandas”, Villa-Lobos transforma essas melodias de maneira extraordinária. Por meio de uma visão modernista e genial, ele utiliza seus conhecimentos adquiridos e compõe peças estruturalmente complexas. Todavia, em meio a essas estruturas complexas, os temas nas “Cirandas” são de fácil identificação. Talvez esteja, nesses fatores, a explicação da sua popularidade eternizada por Villa-Lobos.

O compositor foi revisitado, não só por outros criadores e intérpretes eruditos, bem como por inúmeros músicos populares. Elizeth Cardoso gravou “Melodia Sentimental” e “Cantilena da Bachiana nº 5”. Nana Caymmi cantou o “Prelúdio nº 3”, “A Lenda do Caboclo”, “Canção de Amor” e “Melodia Sentimental”. João Carlos de Assis Brasil e Wagner Tiso fizeram vários espetáculos e discos juntos; como conseqüência, João Carlos se engajou no projeto de Wagner Tiso de tornar Villa-Lobos mais popular e, juntamente com Nana Caymmi e o grupo Uakti, realizaram o trabalho.

A citação a seguir reitera as idéias expostas anteriormente:

O reconhecimento do fenômeno Villa-Lobos é algo que vem ocorrendo de modo crescente na vida musical da cidade. A música de Villa-Lobos quebrou totalmente a barreira até antes inatingível da música erudita e provou que se pode usar e dominar as técnicas mais contemporâneas de composição, sem ter que, para isso, desprezar as nossas raízes folclóricas e populares. Muito pelo contrário, Villa-Lobos, inspirado na mãe natureza, transportou-a com maestria para o surpreendente universo sonoro de sua obra. Suas composições cheiram a rios, cascatas, florestas, pássaros, bumba-meu-boi, maracatus, chorões e cirandas.

As séries de nove obras escritas entre 1930 e 1945, intituladas “Bachianas Brasileiras”, são outros exemplos da experiência musical folclorista vivida por Heitor Villa- -Lobos. O compositor brasileiro buscou uma sínteses entre matrizes musicais brasileiras e a

estética de Johann Sebastian Bach (1685-1750), que ele considerava imaginativamente “um fundo folclórico de todas as nações”. Segundo a pesquisadora Ermelinda Paz, referindo-se ao nome dado a esta série musical, o compositor “acha analogias entre a invenção musical de Bach e a música popular brasileira, e disso derivou o seu título enigmático para as ‘Bachianas’”.

Desta maneira, tanto as “Cirandas”, como as “Bachianas”, se tornam, de certa maneira, referências para Tom Jobim e Edu Lobo, uma vez que, além de essas obras apresentarem uma extraordinária capacidade na harmonização, força temática eminentemente telúrica, utilização de escalas tonais e modais e vasta variedade rítmica, demonstram também as infinitas possibilidades na arte de compor.

Tom Jobim afirma, de maneira humilde e reverenciadora, seu contato com a música de Villa-Lobos ao dizer que:

O Villa é fundamental. É verdade que minha música aproxima-se da dele neste período (final da década de 50). Mas ele é um gênio. O Brasil nunca soube muito bem o que fazer com os gênios. Manuel Bandeira dizia que Villa foi nosso único gênio absoluto. Acho que há outros, o próprio Bandeira, Niemeyer, Portinari, Drummond, mas gênio, mesmo, é o Villa.

Em uma outra ocasião, Tom Jobim afirma a influência do genial Villa-Lobos sobre os músicos populares, afirmando: “Não existe ninguém popular como Villa-Lobos. Todos nós aprendemos com ele e ficamos admirando sua genialidade”. A influência de Villa-Lobos pôde ser também verificada em Edu Lobo. O depoimento a seguir, do próprio Edu Lobo, nos permite essa afirmação.

Vim a gravar a “Bachiana nº 2” (“O trenzinho caipira”), com letra do Ferreira Gullar. Tratei o “Trenzinho” mais popularmente. Todo músico brasileiro, o bom músico, em algum momento vai lembrar o Villa, todo mundo tem seu pezinho ou seu coração no Villa. Ele lembra a alma brasileira. Gostei demais dos “Choros”, “Bachianas”, do “Uirapuru”, que quase não é conhecido, mas que é lindíssimo, e de muitas outras coisas. Tenho por Villa uma paixão enorme e que continua.

E assim parece-nos que tanto Tom Jobim quanto Edu Lobo souberam ouvir, entender e revisitar, como referência ímpar, esse ícone da música brasileira e universal.

É bem verdade que, com Tom Jobim, a música popular brasileira ganhou bases mais sólidas. Sua maneira de criação, pesquisa, ampliação das possibilidades do campo harmônico na música popular, alicerçado pela sua formação acadêmica e com inspiração acentuada em Villa-Lobos, faz de Tom Jobim uma referência universal da música popular brasileira. Assim também Edu Lobo pesquisou, vivenciou, participou e continua participando desse contínuo legado musical deixado por Villa-Lobos e Tom Jobim. Essa “tríplice aliança” e cumplicidade musical é confirmada no seguinte artigo publicado no jornal O Globo:

O olhar modernista villa-lobiano influencia nitidamente a composição de Edu. Em alguns casos, como “Senhora do rio”, canção de Edu inédita em disco, a influência é explícita. Mas como não reconhecer em “Viola fora de moda” e em “Ponteio” algo do Villa-Lobos que buscava no folclore inspiração para sua música tão complexa? Ou no lirismo de “Choro bandido” o Villa das sofisticadas canções? As modulações de “Águas de março”; como Tom modernizou o samba-canção em “Por causa de você”; como aumentou ainda mais o repertório harmônico do choro em “Falando de amor” (que influenciaria diretamente o “Choro bandido”, de Edu); como fez de um samba de estrutura perfeita, “Garota de Ipanema”, o prefixo do Brasil no mundo.

Consideramos oportunas as palavras de Tom Jobim, gravadas, prefaciando o

Songbook de Edu Lobo, não só de maneira poética, como alusiva a uma clara e espontânea

genealogia musical: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai.” Essa “afiliação” deferida por Tom Jobim permite, entre as abordagens feitas anteriormente, estabelecer um parâmetro musical, tendo como “progenitor” Villa-Lobos e o ponto de ligação dessa afiliação entre os “lobos” (Villa e Edu), ele mesmo, Tom Jobim. 2 – Tonalidade

Uma obra musical pode ser, entre outras, construída em pelo menos três estruturas distintas: tonal, modal e atonal, cada uma delas elaborada a partir de ritmos e harmonias distintas. Para cada estrutura escalar, o compositor necessita ter atenção nas particularidades nessas escalas.

Quase tudo que se entende por música baseia-se, eminentemente, nas sete notas musicais. Cada uma dessas notas representa um grau. Entre essas notas há intervalos de tons, distância intervalar formada por dois semitons. Há também semitons, que é a menos distância entre um grau e outro. Para exemplificar, utilizamos a seqüência ascendente de notas musicais, associando as distâncias entre elas (intervalos) com a sua classificação, ou seja: a distância entre notas cujo intervalo é de um tom equivale à soma da distância de dois semitons. Numa escala de sete notas, conhecida como “natural” (pensemos nas teclas brancas e pretas distribuídas por um teclado musical) é esta a ordem intervalar (T = tom, S = semitom):

(I) (II) (III) (IV) (V) (VI) (VII) (I) DÓ RÉ MI FÁ SOL LÁ SI DÓ ... T T S T T T S

Verifica-se, na figura anterior, que entre os graus I-II, II-III, IV-V, V-VI, VI-VII ocorre distância de um tom (t) separado por teclas pretas. Enquanto entre graus III-IV, e entre os VII-VIII, não há essa relação. A distância é menor. A esse tipo de construção

escalar denomina-se de Escala Diatônica (escala formada por tons e semitons). A música, especialmente ocidental é baseada, em quase sua totalidade, nessas escalas diatônicas.

No campo da tonalidade, a música se comporta em tom maior e/ou tom menor, de acordo com a representatividade desses intervalos mencionados anteriormente. Assim, a música pode estar composta, por exemplo, em Dó maior e Dó menor:

Ex:

Observemos que, para a música escrita em tom maior, os intervalos da primeira para a terceira e da primeira para a sexta nota possuem dois tons e quatro tons e meio, respectivamente; enquanto, no modo menor, essa mesma distância intervalar possui um tom e meio e quatro tons, respectivamente.

Esclarecemos que isso é uma regra geral para músicas escritas no campo da tonalidade.

3 – Modalidade

Para as obras compostas numa estrutura escalar modal, a regra é outra. Vale esclarecer, como é de conhecimento, que as formas de escalas modais foram originalmente utilizadas pelos gregos (com base na escala pitagórica), e depois adaptadas por músicos medievais, especialmente para a música eclesiástica. Os modos baseavam-se no que são hoje as notas brancas do piano, com certas diferenças de afinação.

Essas escalas modais caracterizam, sobretudo, as diferentes manifestações culturais de um povo, bem como a evolução histórica de uma época.

Segundo José Miguel Wisnik:

As escalas variam muito de um contexto cultural para outro e mesmo no interior de cada sistema (os árabes e os indianos, por exemplo, têm um sistema escalar intrincado, composto por dezenas de escalas e de centenas de derivados escalares). As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos

étnicos típicos. Ouvindo certos trechos melódicos, dos quais identificamos não conscientemente o modo escalar, reconhecemos freqüentemente um território, uma paisagem sonora, seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana ou outra.

Geralmente a característica marcante das melodias, da região Nordeste, repousa nas escalas modais. Como foi dito no subcapítulo anterior, a música tonal possui a relação maior-menor. No campo modal, esta relação permanece, porém a terminologia passa de “maior” para “real”, e de “menor” para “derivado”.

4 – Análise de algumas obras

As obras que aqui são representadas foram selecionadas por considerarmos haver material suficiente para nossa abordagem, não sendo descartáveis outras referências. De Villa-Lobos citamos como exemplos a sua “Bachiana Brasileira no 1” (I), e o “Choro no 1” (2). De Tom Jobim, as obras: “Canta, canta mais” (3), “Por toda a minha vida” (4), “Canção do amor demais” (5), e “Falando de amor” (6). De Edu Lobo, as composições: “Senhora do Rio” (7), “Viola fora de moda” (8) e “Ponteio” (9).

Dentro de uma visão folclorista, verificou-se que a “Bachiana n° 1”, de Villa-Lobos, elaborada em 3 movimentos, leva influência à canção de autoria de Edu Lobo denominada “Viola fora de moda”. Essa influência reside, basicamente, nas características do estilo folclórico. A canção de Edu Lobo é elaborada em compasso binário simples apresentando duas seções, que denominamos de a e b. A primeira seção é baseada no modo Mi eólio (ou mi menor), enquanto a segunda seção é elaborada na estrutura escalar de Mi mixolídio. Ambas as seções possuem, fundamentalmente, encadeamentos harmônicos semelhantes (de V grau e I grau, ou o que para a música tonal identificamos uma relação harmônica de “Dominante-Tônica”).

Observando a linha melódica, isoladamente ao chegamos a identificar o gênero musical da obra. Todavia, apreciando a música interpretada em gravações, percebemos claramente na elaboração do “arranjo” instrumental, a célula rítmica do gênero baião, representada pelo seguinte fragmento rítmico:

Ex:

Associando essa canção de Edu Lobo com a primeira parte da “Bachiana n° 1” de Villa-Lobos para Orquestra de Violoncelos, verificaremos quatro semelhanças estruturais. Villa-Lobos apresenta na Introdução dessa “Bachiana”, antes de o tema principal surgir nos violoncelos e contrabaixos, um material rítmico semelhante ao baião.

A segunda semelhança entre as peças mencionadas está na estrutura escalar. O início da “Bachiana”, como em “Viola fora de Moda”, também é elaborado no modelo eólio. O que modifica é a tônica, que nesta última se encontra em Dó.

A terceira semelhança está na utilização da relação dos graus V e I, sob o ponto de vista harmônico. Nos seis primeiros compassos da “Bachiana”, bem como basicamente em toda primeira parte de “Viola fora de moda”, essa relação de graus existe.

A última semelhança verificada foi com relação ao compasso. Ambas composições são feitas em compasso binário simples.

Na canção “Ponteio”, de autoria de Edu Lobo, a semelhança com a ambientação folclórica de Villa-Lobos também é explícita. Verifica-se que na primeira parte dessa canção, especificamente nos quatro primeiros compassos, é elaborada sob o modo Mi eólio. A celular rítmica motora dessa canção também é feita, mais evidente na parte do acompanhamento harmônico, o caráter baião. Outra semelhança verificada na fração do compasso, que é igualmente binária.

Nessa contaminação de universos, nem tudo é folclore. Verifique-se a canção “Canta, canta mais”, de Tom Jobim, cuja estrutura melódica possui um lirismo semelhante ao de Villa-Lobos na entrada do tema da “Bachiana nº 1”.

No documento Edu Lobo: o terceiro vértice (páginas 140-156)

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