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2 (RE)ARTICULANDO LEITURAS QUE TRANSITAM ENTRE O “DESEJO” E O “PERIGO”

3.3 Análise das Narrativas

Para analisar as narrativas dos intelectuais surdos recorri a uma estratégia que permitisse romper com os velhos dualismos da educação de surdos. Das narrativas surdas foram surgindo linhas que se entrecruzavam, formando nós e dando sustentação aos enlaçamentos que iam ocorrendo durante a pesquisa. Percebendo essas conexões em trânsito, essas tessituras contingenciais, essas negociações complexas em andamento me aproximei de uma ferramenta de análise, denominada por Bhabha, Hall e outros autores de articulação.

A articulação, como estratégia de análise, produz uma energia capaz de problematizar as relações de poder entre surdos e ouvintes sem se fixar em tipologias binárias. Na articulação o enunciado não se fixa em um dos pólos. Segundo Bhabha (2005), a articulação se dá em espaços que superam as posições fixas de sistemas e critérios de valores antagônicos. Esses espaços são politicamente inovadores por passarem “além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais” e focalizarem “aqueles momentos e processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” (BHABHA, 2005, p. 20). Assim, o que está em debate não é a inversão de posições entre colonizado e colonizador, mas sim local de relacionamentos, de interações, em que o “além” é “um movimento exploratório incessante, que o termo francês au-delà capta tão bem – aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para frente e para trás” (Ibid., p.19). Os espaços de articulação são denominados por Bhabha de “entre-lugares”. Ao contrário de se afirmarem como terrenos fixados de meras absorções através de forças imperativas de uma cultura dominante em relação a outras ditas periféricas, com a clara intenção do alargamento de suas fronteiras de dominação e poder, são na realidade fluxos privilegiados de interações. Assim, os “entre-lugares” se configuraram não como meros espaços de dominação, mas como terrenos de trocas, em que os signos de valores

culturais podem ser negociados.

Para Hall (1996), a articulação assume outros contornos. Por um lado, pode ser pensada como uma estratégia teórica e política que possibilita estabelecer conexões, criar redes que enlaçam narrativas de maneiras diferentes daquelas que seguem a lógica do discurso colonial. As articulações, ao mesmo tempo que podem aproximar termos aparentemente díspares, produzir ligações contingentes também desarticulam e desestabilizam a fixidez das narrativas colonizadoras que foram apreendidas como naturais. Por outro lado, o uso da articulação “é uma união que não é necessária, determinada, absoluta e essencial para sempre jamais. Tem que se perguntar sob que circunstâncias pode ser produzida ou forjada uma relação” (Ibid., p. 135). Wortmann (2005, p. 177), seguindo as trilhas de Hall, nos diz que o “uso da articulação traz um quadro de promessas e de perguntas sem garantias. [...] É preciso sempre perguntar em que circunstância a articulação pode ser forjada ou feita” (grifo no original).

Para Dauder e Bachiler (2002),26 a articulação pode ser pensada como “filtros

ópticos marcadamente situados e conscientemente políticos cujas lentes” nos permitem ver coisas “que escapam à rigidez do olhar dualista”. Entretanto, é no desdobramento da complexidade que transita entre os pólos de uma conexão, como, por exemplo, surdo/ouvinte, que a articulação enfrenta de forma simultânea a sua maior virtude e a sua maior dificuldade. Nas palavras das autoras:

Se por um lado as descentralizações que possibilitam a articulação podem tender a fazer versões rizomáticas de dispersão infinita, por outro, e nesse mesmo exercício de ampliação das conexões, se pode cair em uma certa tentação de totalidade que nos faz esquecer a parcialidade e a situação de que partimos (DAUDER e BACHILER, 2002, p. 18).

26 Segundo as autoras, a noção de articulação surgiu na possibilidade de problematizar algumas questões vinculadas ao discurso marxista e do feminismo no início dos anos setenta do século passado. No “caso de uma certa corrente do pensamento marxista se tratava de um esforço para escapar tanto dos reducionismos economicistas como dos essencialismos de classe”. No caso do feminismo foi justamente a incapacidade do marxismo em abordar questões vinculadas à opressão das mulheres. As feministas “consideravam inaceitável deixar a opressão patriarcal a um segundo plano de luta”. Para elas, era “insuficiente considerar que uma vez derrotado o modo de produção capitalista a opressão patriarcal desapareceria” (DAUDER e BACHILER, 2002, p. 2).

Dauder e Bachiler (2002) também mencionam que a articulação procura estabelecer “geometrias possíveis”, em que falar de pólos – natureza/cultura, texto/contexto, forma/conteúdo, discurso/materialidade – não tenha sentido.

Wortmann (2005) apresenta a noção de articulação a partir de três níveis: o epistemológico, o político e o estratégico. Segundo a autora, no nível epistemológico a articulação está relacionada a uma forma de pensar o conhecimento que temos das coisas “como um jogo de correspondências e contradições, ou como fragmentos constituintes daquilo que nós consideramos serem as suas unidades” (Ibid., p. 178). A articulação no nível político coloca em foco as relações de poder advindas das interações entre colonizado e colonizador. A partir de Dauder e Bachiler, Wortmann (Id.) nos diz que as políticas de articulação “funcionam no sentido de problematizar silenciamentos e essencialismos que têm atuado na configuração de movimentos” sociais, assim como de “etnias, sexo, raças, etc.” (Ibid., p. 179). E, por último, a articulação em um nível estratégico: nele a articulação se configura como intervenção “no interior de uma particular formação, conjuntura ou contexto social” (p.179).

Nesse sentido, procurei realizar a análise, sempre que possível, a partir dos três níveis de articulação proposto por Wortmann (2005), mas priorizando o político, de tal forma que as tessituras textuais entrelaçassem simultaneamente as proposições teóricas da crítica pós- colonial e de suas ramificações com os discursos pós-estruturalistas com os fragmentos das narrativas surdas que defini em três eixos temáticos: o intelectual surdo e sua estrangeiridade, o intelectual surdo e suas intervenções políticas e o intelectual surdo e seus saberes linguísticos.

É importante salientar que a análise das narrativas surdas teve como foco condutor as estratégias políticas que os intelectuais surdos adotam para se posicionarem, a partir de suas diferenças, em determinados loci de enunciações. Sendo assim, as narrativas surdas também são vistas como práticas sociais que constituem sujeitos em determinados espaços e cujas relações de poder, de acordo com Foucault (1985, p. 231), devem servir “para criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos”.

CAPÍTULO II

“FRONTEIRAS DE CONTATO”: UM LUGAR (IM)POSSÍVEL DE SE HABITAR?

Laurent Clerc (1787 - 1851) educador surdo francês responsável pela criação da primeira escola para surdos no continente americano (American School for the Deaf, fundada em 15 de

abril de 1817 em Hartford, Connecticut).

Então teve início o tempo do exílio, a busca infindável de justificativas, a nostalgia difusa, as questões mais dolorosas, mais devastadoras, as questões do coração que pergunta a si próprio: onde poderei sentir-me em casa? Albert Camus

1 ESTEREÓTIPO: UMA ESTRATÉGIA DISCURSIVA DO