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2. Análise comparativa da bruxa nos contos «Hansel e Grettel» e «Rapunzel»

2.2. Análise retórica

Defende Cristina Vieira que qualquer texto, e não apenas o literário se apoia, em maior ou menor grau na retórica e define processo retórico como sendo «todo o desvio linguístico da combinatória habitual, provocado pelo autor com o propósito de que aquele seja percepcionado pelo receptor«198. De acordo com a mesma autora, os processos retóricos

podem ser divididos em três tipos: os argumentativos, os estilísticos e os dispositivos. Os primeiros «abrangem as formas de raciocínio que marcam conflitos e vontades»; os segundos «materializam uma retoricidade de efeitos que anula a literalidade discursiva»; por fim, os processos retórico-dispositivos «estruturam no eixo sintagmático a articulação entre os argumentos e as figuras concebidas pelos processos anteriores»199. Faremos no presente ponto

um levantamento dos processos retórico-argumentativos, retórico-estilísticos e retórico- dispositivos que influenciaram ou determinaram a construção da personagem da bruxa nos contos em análise.

Vejamos desde logo os primeiros acima referidos. No âmbito da argumentação quase lógica200, identificámos na narrativa «Rapunzel» a utilização da argumentação probabilística,

na situação insólita (hoje lida como inverosímil) que é a bruxa subir ao topo da torre agarrando-se às madeixas de sua filha:

[…] desenrolava suas madeixas douradas e deixava-as cair por cima do peitoril da janela, e elas desciam tão baixo que a bruxa podia subir, agarrando-se nelas, até ao alto da torre201.

Ou seja, é pelo facto de esta personagem realizar algo tão invulgar, algo tão improvável na lógica das probabilidades humanas, que o leitor fica consciente de que a Mãe Gretel não é uma personagem vulgar mas dotada de poderes extraordinários. Quanto ao conto «Hansel e Gretel», não identificámos a utilização da argumentação probabilística. Ora, é importante ter em conta o horizonte de expectativa do leitor actual e do leitor da época dos irmãso Grimm, por contraponto ao receptor destes contos na época em que eles apenas circulavam oralmente, na Baixa idade Média e na Idade Moderna. De facto, o que hoje é visto como impossível (probabilidade zero), outrora era visto como possível: quantas mulheres foram queimadas como bruxas sobre acusações improváveis como voar numa vassoura? Logo,

198Cf.Ibidem, p. 130.

199Cf. Ibidem, 132.

200Traduz o raciocínio que aparenta seguir uma lógica formal, estando porém, sujeito a controvérsia.

Cf. Ibidem, p. 139.

este procedimento retórico criou originalmente personagens fantásticas (aceites como possíveis), que, mercê da alteração do «horizonte de expectativa», com a mudança das mentalidades, passaram a ser entendidas como personagens maravilhosos, isto é, completamente inverosímeis.

No que respeita à argumentação fundada sobre a estrutura do real202, encontrámos no

conto «Hansel e Gretel» processos do nexo causal, mais concretamente o procedimento de apreciação de um facto pelas suas consequências203. De facto, a apreciação da personagem da

bruxa enquanto tal depende largamente de acções sobre duas crianças que, levadas às suas consequências últimas, conduziriam as mesmas à morte: Hansel, de uma forma mais explícita, uma vez que estava a ser engordado para ser comido; Gretel estava a ser usada como criada para todo o serviço, estando o leitor no direito de inferir que a mesma teria mais cedo ou mais tarde o mesmo destino do irmão. Por outro lado, Gretel toma a decisão extrema de mandar a bruxa para dentro do forno. E isso merece uma reflexão. Se descontextualizássemos esse acto de Gretel, como a avaliaríamos? De forma negativa. Mas quando procuramos um nexo causal para essa decisão tão radical encontramos na maldade extrema da antagonista a razão para algo que é encarado como legítima defesa, não só sua mas também do irmão:

Então, Gretel empurrou-a com tanta força que ela ficou toda lá metida e depois fechou a porta de ferro e trancou-a. A velha dava urros medonhos, mas Gretel salvou-se e a feiticeira ardeu inteirinha204.

No segundo conto não detectámos processos do nexo causal.

O tópico do desconcerto do mundo205 também constrói a bruxa de ambos os textos,

preparando o leitor para a crueldade desta personagem. Ilustremos esta afirmação com a seguinte passagem de «Hansel e Gretel»:

Mas a gentileza da velha era fingida, pois não passava de uma malvada feiticeira que tinha feito aquela casa de pão para atrair as criancinhas206.

No conto «Rapunzel», a situação repete-se:

Ninguém se arriscaria a entrar lá porque pertencia a uma feiticeira tão poderosa que todos morriam de medo dela207.

202Refere-se deduções assentes em «nexos causais, simbólicos e de co-existência». Cf. Cristina Costa

Vieira, A Construção da Personagem Romanesca, p. 139.

203O nexo causal «traduz relações de causalidade (causa/efeito)». Segundo Perelman a apreciação de

um facto pelas suas consequências é um tipo de nexo causal que se socorre de três estratégias retóricas: a argumentação pragmática; o cálculo exaustivo das consequências; a oposição entre fins e consequências e a argumentação maquiavélica. Cf. Cristina Costa Vieira, A Construção da Personagem

Romanesca, p. 152.

204Cf. Jacob e Wilhelm Grimm, «Rapunzel», p. 264. 205

Cf. Cristina Costa Vieira, A Construção da Personagem Romanesca, p. 172: «Este tópico prepara o

leitor para personagens paradoxais ou extremas na sua crueldade e injustiça, e que nada sofrem pelo facto.»

206Cf. Jacob e Wilhelm Grimm, «Hansel e Gretel», p. 58. 207Cf. Idem, «Rapunzel», p. 261.

Os processos retórico-estilísticos nos contos em análise não são abundantes, característica, de resto, atribuída aos contos populares. Todavia, eles não estão ausentes. Comecemos pelo âmbito fonológico. A rima está presente em ambos os contos, dando-lhes vivacidade e musicalidade. Observemos em «Hansel e Gretel»:

dentada, dentadinha, quem come a minha casinha? As crianças responderam:

É o vento, é o vento, esse menino barulhento208.

Verificamos igualmente uma rima em «Rapunzel»:

Rapunzel, Rapunzel, os cabelos deixa cair para que eu possa por eles subir209.

Estas rimas – as únicas presentes nos dois contos em análise – são proferidas pela bruxa, dando-lhe uma aura especial.

Ao nível morfológico, há a destacar o uso de diminutivos. Estes são frequentes na narrativa «Hansel e Gretel», sendo utilizados pela bruxa quando se dirige às crianças com carinho, no intuito de as atrair: «dentada, dentadinha, quem come a minha casinha?»210. Há

ainda algum sarcasmo em «Hansel, põe os dedos de fora, quero perceber se já estás gordinho»211. A casa da bruxa deverá ter também destaque, tornando-se apelativa e atractiva

para as crianças: «Quando se aproximaram, viram que a casinha era de pão e coberta com um telhado feito de bolo doce; as janelas eram de açúcar cristalizado»212. No conto «Rapunzel»,

a personagem não faz uso de diminutivos. No texto, a bruxa aparenta ser menos sedutora e ardilosa, apresentando-se mais seca e fria.

Outro recurso expressivo identificado em «Hansel e Gretel» é a enumeração verbal: «Quando caía alguma em seu poder, matava-a, cozinhava-a e comia-a»213. Este processo

reforça a malvadez da personagem, por salientar o canibalismo hediondo da bruxa. Já na história «Rapunzel» verifica-se a ausência de enumerações. Aqui, observamos o uso do polissíndeto:

E aquilo a deixou tão empedernida que ela arrastou a pobre Rapunzel para um lugar deserto e selvagem, e ali a deixou miserável e triste214.

Na narrativa «Hansel e Gretel« identificamos igualmente o uso do polissíndeto:

E agarrou os dois pela mão e levou-os para casa. Deu-lhes uma boa refeição, leite e uma omeleta com açúcar, maçãs e nozes215.