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Traços físicos e psicológicos do estereótipo da bruxa

1.3. A construção de personagens maravilhosas

1.3.1. A bruxa enquanto personagem literária

1.3.1.2. Traços físicos e psicológicos do estereótipo da bruxa

Nas recolhas tradicionais existe uma certa confusão entre os termos bruxa e

feiticeira. Importa, assim, antes de traçar a sua caracterização física e psicológica,

distinguirmos estas duas entidades. Com base em recolhas orais, Consiglieri Pedroso separa a bruxaria da feitiçaria. Para o povo, «são duas expressões que não se devem confundir, logo bruxa e feiticeira são expressões também diferentes». Para Pedroso a feiticeira é:

uma mulher, de ordinário velha e hedionda, que tem comunicação e pacto com o Diabo, sem perder contudo a forma humana, e sem possuir poderes ilimitados ou extra - humanos. […]

116 Cf. Garcia Baptista, Wicca, A Velha Religião do Ocidente, pp. 10-11.

117 Cf. Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular: Lendas, Contos, Mitos, col. «Tesouros da Memória»,

Lisboa, Plátano Editora S.A., 2002, p. 22.

Adivinha o futuro e casos omissos das pessoas; resolve situações que afectam pessoas e animais fruto de mau olhado119.

Pedroso indica que as «bruxas começam por ser feiticeiras e, depois de terem comunicado com o Diabo, este as induz com falsas promessas a serem bruxas, exigindo em troca votos e juramentos»120.Alexandre Parafita confirma esta distinção feita por Pedroso ao

reportar-se a um ditado popular que separa as feiticeiras das bruxas: «a bruxa nasce, a feiticeira faz-se»121. Marca dessa diferença, os objectos mágicos associados a uma e a outra:

«segundo a tradição popular, a peneira é o objecto mágico das feiticeiras, tal como a vassoura é o objecto mágico das bruxas e a varinha de condão é o das fadas»122.

Em tempos, a religião Wicca defendia que a Deusa detinha três aspectos: Donzela, Mãe e Anciã. A última (figura que relacionamos com a bruxa) encarna «a sabedoria, os segredos, a adivinhação, a profecia, os finais, a morte e o renascimento»123 e corresponde a

uma mulher de aproximadamente quarenta e cinco anos. As cores que lhe estão associadas são o preto, o cinzento, o roxo, o castanho e o azul escuro. A evocação da Anciã nos rituais prende-se com aspectos relacionados com a sabedoria e a clarividência. A este propósito, e de acordo com Shahrukh Husain, as feiticeiras estão fortemente ligadas à Deusa, em especial na fase da velhice,

[…] sendo frequente terem a mesma idade, permanecerem envolvidas na mesma escuridão e no mesmo mistério e possuírem a mesma relação com a morte. As que matam e devoram crianças, como a feiticeira de «Hansel e de Gretel», cujas origens remontam a deusas como Likele e Kalwadi, da Melanésia, são criações populares – personagens pérfidas unidimensionais, cuja crueldade é destituída de raciocínio124.

Para os Azandes, a diferença essencial entre sorcerer (feiticeira) e witch (bruxa) consiste no facto de a primeira, para realizar malefícios, recorrer à magia, enquanto a segunda age indirectamente por intermédio dos poderes sobrenaturais específicos da sua personalidade125.

Como se pode constatar, há alguma contradição ou falta de clareza em muitos estudos relativamente à definição destas duas figuras, o que talvez esteja associado à contaminação cultural do mito. Vejamos o que diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e

Brasileira a propósito da bruxa «Mulher velha, magra e feia. É considerada ser maléfico,

repelente»126. Umberto Eco deixa-nos alguns traços físicos e psicológicos da bruxa do século

XV:

[…] mulherzinhas de miserável condição que vegetam nos vales comendo castanhas e ervas. Se não tomassem um pouco de leite nem conseguiriam viver. Por isso, são macilentas,

119 Cf. Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e outros Escritos

Etnográficos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, col. «Portugal de Perto», 1998, p. 100.

120 Cf. Ibidem.

121 Cf. Alexandre Parafita, A Comunicação e a Literatura Popular, Lisboa, Plátano Editora, 1999, p. 80. 122 Cf. Idem, O Maravilhoso Popular: Lendas, Contos, Mitos, p. 80.

123 Cf. Garcia Baptista, Wicca: a Velha Religião do Ocidente, pp. 73-74.

124 Cf. Shahrukh Husain, Divindades Femininas, Koln, Edições Taschen, 2001, p. 134. 125 Cf. Enciclopédia Einaudi, s.v. «bruxa», p. 32.

disformes, de cor térrea, com os olhos fora da cabeça e com o olhar mostram que têm um temperamento merencórico e bilioso. […] São tão firmes na sua opinião que, a crer unicamente nos seus discursos, julgar-se-ia que são verdadeiras as coisas que contam com tal convicção, coisas que nunca aconteceram nem nunca acontecerão127.

No que toca à caracterização física da bruxa, Alexandre Parafita define-a como tendo «rosto feio, enrugado, um olho enorme e outro semicerrado, nariz longo e pontiagudo, dentes podres (menos um que sobressai para fora da boca) queixo saliente e aguçado».128 Já Júlio

Baroja defende que a bruxa rural é pobre, velha, nervosa, temida, encontra-se à margem da sociedade, detém poderes limitados de curandeira e pratica a adivinhação. Recorre a plantas como a beladona para produzir estupefacientes que provocam estados de sonho e de visões. Este autor acrescenta ainda que no Mediterrâneo existiu a bruxa citadina que embruxava, encantava, praticava esconjuros e sortilégios o que é interessante para a nossa leitura de A

Vassoura Mágica, de Luísa Ducla Soares . Muitas delas tinham como actividades paralelas o

proxenetismo, a corrupção de menores, entre outras129. Por outro lado, Pires Cabral refere-se

à bruxa como andando «enrodilhada no xaile, vestida de negro da cabeça aos pés, com um lenço pela cabeça que quase lhe cobre a cara toda».130

A respeito do carácter maléfico da bruxa, Consiglieri Pedroso afirma que se trata de «um génio malfazejo, e o mal que faz vai recair sobre os mais inofensivos entes, como acontece com as crianças de mama às quais chupa o sangue»131. A crença de que as bruxas

chupam o sangue às crianças de mama é ainda muito presente em diversos pontos do nosso país.132 Em Espinal (perto de Coimbra), conta-se uma história que apontava ao sítio de

Ferraria como o teatro onde se davam estes infanticídios, com a particularidade de as bruxas terem ido várias noites seguidas, à meia-noite, soltar gargalhadas em cima de um telhado fronteiro à casa de onde tinham roubado a criança. Baroja afirma que, para além dos seus conhecimentos de magia e das suas manhas de alcoviteira, a bruxa detém poderes empíricos que fazem dela envenenadora e perfumista:

Alguns homens do Renascimento falam de unguentos feitos com efeitos estupefacientes, cujo segredo se teria transmitido, de mestre a aluno, através das idades, do mesmo modo que o conhecimento das propriedades das ervas133.

Os conhecimentos sobre as propriedades das plantas nas mãos das mulheres eram considerados heresia. Percebe-se porquê: o conhecimento interliga-se com alguma espécie de poder. Ao conhecer e transformar as ervas, estas mulheres tornavam-se poderosas nas questões ligadas à saúde. Eram as médicas possíveis numa época em que a mortalidade infantil era catastrófica e a esperança de vida não ia além dos quarenta anos. Eram também

127Cf. Humberto Eco, História do Feio, Lisboa, col. «Álbuns Ilustrados», Difel, 2007, p. 209. 128 Cf. Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular: Lendas, Contos, Mitos, p. 25.

129 Cf. Júlio Baroja, As Bruxas e o seu Mundo, pp. 330-331.

130 Cf. António Pires Cabral, O Diabo veio ao Enterro, Lisboa, Editorial Notícias, 1993, p. 14. 131 Cf. Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa, p. 99. 132Cf. Ibidem, p. 105.

elas que dominavam a vida e a morte pois assistiam aos partos, numa época em que os homens não podiam tocar o corpo da mulher.

O senso comum retém a imagem clássica de que as bruxas são personagens que se fazem transportar numa vassoura pela noite dentro, ao encontro da irmandade, talvez para mais um Sabat. Na Normandia são apelidadas de «scobaces» ou «varredoras». Aqui dizia-se que voavam pelo ar num pau de vassoura.134 Alexandre Parafita alude a essa crença popular:

Andam nas encruzilhadas e ao pé dos rios, onde fazem patifarias aos homens que encontram. Aí se juntam à meia-noite, após viajarem pelo ar montadas em vassouras […]135.

A Velha Religião ou Wicca refere-se à vassoura como um símbolo de fertilidade, tendo sido usada em cerimónias de casamento, onde os noivos saltam por cima dela para «assegurar uma prole numerosa»136. É ainda considerada um símbolo de protecção. Para proteger a casa,

existe o hábito de colocar a vassoura atrás da porta.

Por outro lado, as encruzilhadas são referidas em inúmeras obras como sendo o local de encontro das bruxas. Aqui, elas juntam-se e fazem as suas «horríveis danças, acendem luzinhas, que de longe se vêem a tremeluzir»137. Em Celorico da Beira (Beira Alta) quando os

habitantes da terra vêem fogueiras acesas nos montes vizinhos dizem que são bruxas.

O que ressalta do confronto de todos estes autores é que se atribuem sempre à figura da bruxa traços de personalidade que nada têm de natural, o que se poderá explicar desde logo pelo facto de a fronteira entre o real e o imaginário nem sempre ter sido balizada como na actualidade. Em tempos, a bruxa encaixava-se neste mundo. Eram apontadas como personagens insólitas, de mau carácter, com personalidade forte138, mas que verosimilmente

podiam existir enquanto tal, isto é, com todos os poderes que lhe eram atribuídos.

A bruxa permaneceu ao longo da história quer no folclore quer no contexto das superstições, pois a “ida à bruxa” para curar, para provocar ou desfazer mau-olhado, para comunicar com os familiares mortos e prever o futuro manteve-se uma constante até aos nossos dias (e não apenas nas classes populares). Ela é figura indispensável nos contos maravilhosos, onde conserva algumas dessas características e é frequentemente referida como uma velha com conotações misteriosas e odiosas. Vladimir Propp refere que os traços característicos da bruxa nos contos maravilhosos são «perna ossuda ou nariz arrebitado»139.

Assim, não nos surpreende ver nos contos «Hansel e Gretel« e «Rapunzel» bruxas malvadas, capazes de aprisionar crianças e recorrer aos mais maquiavélicos estratagemas para atraírem as suas vítimas e assim conseguirem os seus propósitos.

134 Cf. Júlio Baroja, As Bruxas e o seu Mundo, p. 128.

135 Cf. Alexandre Parafita, A Comunicação e a Literatura Popular, p. 74. 136 Cf. Garcia Baptista, Wicca A Velha Religião do Ocidente, pp. 45-46.

137 Cf. Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa, p. 106. 138 Cf. Ibidem, pp. 37-60.

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