• Nenhum resultado encontrado

III. DO DIREITO 1 Das atribuições e competências da ERS

III.3. Análise da situação concreta

90. Recorde-se que os factos em análise se reportam aos constrangimentos verificados no acesso de vários utentes à realização de cirurgias, para as quais haviam sido propostos pelo CHBV, designadamente para a especialidade de oftalmologia e urologia.

91. Com efeito, cumpre analisar os factos apurados na perspetiva de ser aferido o impacto que os procedimentos de agendamento de cirurgias pelo CHBV possam constituir nas garantias instituídas para salvaguarda da tempestividade do direito de acesso, que à ERS cumpre garantir.

92. Neste âmbito, cumpre destacar a existência de três níveis de constrangimentos, os quais se reconduzem a:

(i) Agendamentos e re-agendamentos irregulares de utentes inscritos em LIC; (ii) Não emissão de notas de transferência ou vales de cirurgia após decurso

do TMRG fixado para o nível de prioridade atribuído;

(iii) Inclusão em LIC de utentes contendo erros de codificação das respetivas propostas cirúrgicas.

93. Assim, quanto à noticiada existência de “[…] agendamentos de cirurgias fictícios […]” pelo CHBV, foi possível apurar que o procedimento instituído, pelo serviço de oftalmologia, passava por agendar o utente, independentemente da prioridade que

lhe estava atribuída no próprio dia da inscrição em LIC, prática que terá decorrido por um período de aproximado de 4 anos, e à qual terá sido posto termo a 16 de janeiro de 2015, conforme elementos constantes da informação da IGAS junta aos autos.

94. Na prática, os procedimentos de agendamento eram os seguintes: “[…] Se os doentes eram prioritários, eram agendados para uma data dentro dos 60 dias. Era utilizada uma calculadora on-line Date end Time e era colocado 60 dias (no caso dos prioritários) e o doente era agendado para o limite do dia indicado. Normalmente, no caso dos prioritários, a cirurgia era antecipada, dando origem a um cancelamento com o código 7 "Outros" […] nos doentes não prioritários (ditos normais) o agendamento era feito também na calculadora on-line Date end time, onde era colocado 270 dias e o doente era marcado para o limite do dia indicado. […].”

95. Assim se evidenciando que os agendamentos eram realizados sem qualquer outro critério que não fosse ocorrerem no término (último dia) do TMRG fixado, o que determinava que depois, se não houvesse capacidade instalada ou razões clínicas ou logísticas o impedisse, os doentes fossem reagendados.

96. Ora, tais procedimentos de agendamento não se compaginam com o determinado pelo Regulamento do SIGIC, que ao estipular nos seus pontos 78 a 81 a antecedência mínima com que os utentes devem ser agendados para cada nível de prioridade, não incorpora na sua teleologia o propósito do agendamento ocorrer no próprio dia da inscrição em LIC e sem atender a qualquer planificação do programa operatório, regendo-se apenas por critérios matemáticos operados por uma calculadora de TMRG.

97. Facto que inequivocamente surge atestado na informação da IGAS junta aos autos, “[…] até 16 de fevereiro [2015], existiam práticas no CHBV relativas ao agendamento para cirurgia em Oftalmologia que não eram conformes os procedimentos estabelecidos no Manual SIGIC, […] verifica-se a existência entre 2013 e 2014 de um número significativo de cancelamentos devidos a "Engano de Agendamento" e "Outros" (de dezenas de casos e por vezes centenas em alguns meses) […] estas práticas foram introduzidas no momento em que fechou o Bloco do Hospital Infante D. Pedro, por motivo de obras, levando a que todas as cirurgias fossem marcadas para data em que não se sabia se poderiam ser realizadas […] de entre as desconformidades detetadas, destacam-se as relacionadas com o rigor na marcação/agendamento das cirurgias, os quais nem sempre foram

devidamente comunicadas aos doentes em devido tempo, nos termos estabelecidos no Manual do SIGLIC, bem como as associadas a alguma falta de rigor na introdução da informação no SIGLIC por parte dos profissionais de saúde da instituição, e ainda, a existência de informação nos aplicativos que não corresponde à realidade.

98. Tanto se torna particularmente gravoso quanto, tais agendamentos/re- agendamentos ocorriam sem que os utentes tivessem conhecimento de que havia sido designada data para a sua cirurgia, conforme inequivocamente concluí a informação da IGAS que “[…] o doente em Oftalmologia não é informado da data do respetivo agendamento, o que constituía uma falha nos procedimentos […].”; 99. O que se apresenta como grave constrangimento do direito à informação, e dos

princípios da equidade no acesso ao tratamento cirúrgico subjacentes ao SIGIC e bem assim ao princípio da equidade que o enforma.

100. Pelo que, tendo em conta os supra aludidos procedimentos, se torna inequívoco o impacto e enviesamento que os mesmos introduzem nas garantias da tempestividade do direito de acesso, quando confrontados com a informação produzida pela auditoria realizada pela URGIC Centro que concluiu que:

(i) “[…] dos 158 agendamentos cirúrgicos objeto de análise, todos para o mês abril de 2014, e maioritariamente distribuídos pelas especialidades de ortopedia e oftalmologia, apenas 77 das cirurgias agendadas (cerca de 48%) se realizaram na data inicialmente prevista, enquanto 61 cirurgias (cerca de 38%) sofreram adiamento/reagendamento e 20 cirurgias (12%) se mantinham LIC, sem terem sido realizadas na data inicialmente prevista (abril de 2014) e sem possuírem qualquer outra data de agendamento […]”, cfr. informação apurada em sede de auditoria realizada pela URGIC Centro; (ii) “[…] comparadas tais percentagens com as apresentadas para outros hospitais do SNS da área de influência da mesma URGIC Centro, constata- se que as restantes unidades listadas apresentam taxas de cumprimento dos TMRG para realização de cirurgias na especialidade de oftalmologia que oscilam entre os 95,2% e os 100% em 2013 e entre os 89% e os 100% em 2014 […]”, cfr. informação apurada em sede de auditoria realizada pela URGIC Centro;

(iii) “[…] no ano de 2013, apenas 6 episódios de oftalmologia foram intervencionados noutros hospitais, e em 2014 apenas 1 utente […]”, cfr. informação apurada em sede de auditoria realizada pela URGIC Centro;

(iv) “[…] [o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E.] teve em 2013, 271 utentes intervencionados noutros hospitais, e 331 utentes em 2014 […]”.

101. O que introduz a segunda perspetiva de análise: não emissão de notas de transferência e vales cirurgia para utentes inscritos pelo CHBV que tenham visto os TMRG fixados para as respetivas prioridades clínicas ultrapassados.

102. Ora, é inequívoca a previsão constante do § 108 do Regulamento do SIGIC de que “[…] Decorridos os prazos para agendamento da cirurgia, tal como previstos nos n.ºs 79 e 80 da Parte V do Regulamento sem que o agendamento no Hospital de Origem tenha ocorrido, “[...] e não existindo HD do SNS disponível nos termos do [...] Regulamento, a UCGIC emite de imediato um vale cirurgia a favor do utente.”;

103. Secundada pelo estatuído no § 3.2.1.4.1.1. do MGIC. “[…] a transferência de utentes através da emissão de NT/VC para outras unidades hospitalares integradas no SNS ou unidades convencionadas é obrigatória sempre que o hospital de origem, com os seus recursos, não possa garantir a realização da cirurgia dentro dos TMRG estabelecidos por prioridade clínica, por patologia ou grupo de patologias, presumindo-se a falta de garantia quando a cirurgia não for agendada até ao limite do prazo estabelecido para cada nível de prioridade, a contar da data de inscrição na LIC. […]”.

104. Pelo que se conclui que o procedimento de agendamento instituído pelo CHBV tinha repercussões diretas na não emissão de notas de transferência/vales cirurgia;

105. Recorde-se “[…] no ano de 2013, apenas 6 episódios de oftalmologia foram intervencionados noutros hospitais, e em 2014 apenas 1 utente […].

106. O que surge também alinhado com as conclusões alcançadas pela auditoria realizada pela URGIC Centro “[…] Se o TMRG tiver sido ultrapassado, o agendamento tem de ser registado com um máximo de 20 dias de antecedência em relação à data da cirurgia, ou seja, o registo do agendamento não deve ser realizado com uma antecedência superior a 20 dias à data da cirurgia agendada. […] No entanto, os SIH não apresentam esta regra implementada. Sempre que um agendamento é realizado e integrado no SIGLIC, o mesmo impede a emissão de NT/VC, pois até ao momento não existe forma automática de eliminar o agendamento incorreto no SIH. Pelo que se confirma que é possível o hospital impedir a emissão de NT/VC, agendando no SIH, irregularmente os utentes.

107. Tanto mais que se constata que após correção de tais procedimentos ocorreu um aumento exponencial de utentes com emissão de NT/V, conforme informado pela IGAS “[…] o procedimento foi normalizado em várias especialidades, designadamente em Urologia, em que optaram por inscrever o doente em LIC e fazer posteriormente o agendamento para a data efetiva da sua realização. Esta alteração teve como consequência um aumento de doentes transferidos para o exterior nesta especialidade, em cerca de 120% […].”

108. Por fim, no que tange, à inclusão em LIC de propostas contendo erro de codificação, e pese embora as conclusões alcançadas pela IGAS de que “[…] quer da parte do CA, quer dos seus profissionais de saúde, não havia interesse em provocar as desconformidades identificadas sobre a ocorrência do erro GDH 470 […]”;

109. Certo é que “[…] a existência deste erro invalida a possibilidade de ser emitido o cheque cirúrgico […]”, porquanto “[…] se a proposta não estiver integrada no SIGLIC ou se integrada apresentar alguns erros (morada incompleta, código postal inválido, data de nascimento incorreta, sexo do utente não correspondente com o procedimento) não é emitido NT/VC. A instituição hospitalar deve regularmente consultar os alarmes no SIGLIC que a informa dos erros que necessitam de correção […].”

110. Assim, se tonando inequívoco o constrangimento que a ocorrência de tais erros de codificação importam no funcionamento dos mecanismos instituídos para garantia da prestação de cuidados de saúde em tempo considerado clinicamente aceitável e em consonância com os TMRG instituídos.

111. Não obstante, de acordo com o informado pela IGAS, tal constrangimento terá sido mitigado porquanto “[…] propostas contendo o erro 470 baixaram de um peso de 14.6% em 1 de abril de 2014 para 4,68% em 31-08-2014, na sequência de um trabalho pedagógico junto dos diretores dos serviços para a completa resolução deste problema […].”

112. Termos em que, da ponderação global dos factos apurados nos presentes autos se evidencia a necessidade de uma intervenção regulatória da ERS, à luz das suas competências, no sentido de serem corrigidas as falhas existentes nos procedimentos adotados pelo CHBV subjacentes ao funcionamento do SIGIC, designada mas não limitadamente, dos procedimentos ínsitos à gestão dos agendamentos em cumprimento dos TMRG fixados;

113. Ora, a ocorrência de tais entropias no processos de gestão de inscrição e realização de cirurgias não se compadece com o desiderato do SIGIC de “minimizar o período que decorre entre o momento em que um doente carece de uma cirurgia e a realização da mesma”, estando por isso alicerçado em mecanismos que permitem obviar a períodos de espera que ultrapassem o TMRG fixado para efetivação da prestação de cuidados de saúde de que o utente necessita;

114. Porquanto, assumindo o SIGIC um papel central na gestão de cirurgias no SNS, qualquer entropia na implementação dos respetivos procedimentos é suscetível de impactar com o direito dos utentes à prestação tempestiva e integrada de cuidados de saúde.

115. Por outro lado, ponderado o facto de: (i) Às UHGIC competir:

b) Controlar e supervisionar o registo dos utentes na LIC do hospital; c) Zelar pelo cumprimento das normas aplicáveis à LIC e respetivo

Regulamento;

g) Prever e identificar os casos dos utentes que deverão ser transferidos para outra unidade prestadora de cuidados de saúde;

(ii) Às URGIC competir:

a) Monitorizar, acompanhar e controlar a produção cirúrgica realizada pelas unidades hospitalares;

d) Monitorizar, avaliar e controlar a evolução de inscritos para cirurgia nas unidades hospitalares, designadamente os tempos de espera;

(iii) À UCGIC competir:

j) Selecionar os utentes a transferir e garantir o cumprimento e monitorização dos protocolos de transferência definidos por parte dos restantes intervenientes;

l) Emitir e enviar vales cirurgia;

y) Realizar auditorias aos hospitais para determinar se o registo de informação, os processos estabelecidos e as demais obrigações decorrentes do SIGIC estão a ser cumpridos.

116. E bem assim a circunstância de que não resulta evidente “[…] a aplicação das penalidades por parte das entidades com competências para o efeito, nos termos do Regulamento SIGIC, Parte VIII - Não Conformidades, anexo à Portaria n.° 45/2008, de 15 de janeiro, na sequência das não conformidades nesta sede apuradas. […].”, cfr. Informação da IGAS junta aos autos;

117. Cumpre constatar que no caso concreto, os mecanismos subjacentes ao funcionamento do SIGIC, exigíveis à atuação da UHGIC, URGIC e UCGIC, não foram cabalmente implementados, de modo a assegurar o controlo pelas diferentes instâncias intervenientes das competências a cada uma adstritas; 118. Prejudicando com isso a garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados

de saúde, à prestação de cuidados de saúde de qualidade, bem como dos demais direitos dos utentes, que à ERS cabe prosseguir.

119. Assim se concluindo pela necessidade de adoção da atuação regulatória infra delineada por forma a garantir o reforço dos procedimentos de controlo existentes para cumprimento dos TMRG fixados.

Documentos relacionados