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Análise temática: um olhar sensível às fontes autobiográficas

4. O percurso metodológico

4.4 Análise temática: um olhar sensível às fontes autobiográficas

Ainda bem pequena a criança é capaz de falar sobre si, de refletir sobre sua história e sobre o mundo ao redor (PASSEGGI, 2014b; PASSEGGI et al., 2014), como bem salienta Bruner (2014) ao afirmar que existe uma predisposição humana para organizar narrativamente a experiência.

As crianças ingressam cedo no universo da narrativa. Elas desenvolvem expectativas sobre como o mundo deveria ser, e suas expectativas revelam inclinações estranhas, tal qual ocorre com os adultos. Assim como eles, elas são altamente sensíveis ao inesperado, e são até mesmo atraídas pelo inusitado. [...] Parece então que temos alguma predisposição, algum conhecimento basal sobre a narrativa, desde que nascemos (BRUNER, 2014, p. 41-42).

É na palavra da criança que consideramos sua história de vida. Independentemente da idade, narrar a própria vida é algo espontâneo e intrínseco a nossa condição humana. Silva, Barbosa e Kramer (2008, p. 86) chamam atenção para dois pontos cruciais na pesquisa com crianças: ver e ouvir.

Ver: observar, construir o olhar, captar e procurar entender, reeducar o olho e a técnica. Ouvir: captar e procurar entender; escutar o que foi dito e o não dito, valorizar a narrativa, entender a história. Ver e ouvir são cruciais para que se possa compreender gestos, discursos e ações. Esse aprender de novo a ver e ouvir (a estar lá e estar afastado; a participar e anotar; a interagir enquanto observa a interação) se alicerça na sensibilidade e na teoria e é produzida na investigação, mas é também um exercício que se enraíza na trajetória vivida no cotidiano.

Ver e ouvir, ações imprescindíveis frente às possibilidades que surgem no tratamento ético às fontes autobiográficas. Porém, para ver e ouvir o outro em sua integralidade, respeitando sua singularidade, se faz necessário uma postura amorosa e acolhedora por parte do entrevistador. Segundo Passeggi (2014a, p. 229), para Bourdieu (1997) “entrevistar, transcrever e publicar tratava-se, portanto, de um exercício espiritual que se desdobrava em amor intelectual”.

Frente às micronarrativas das crianças participantes da pesquisa é preciso uma escuta sensível, com base no respeito e no cuidado diante da pessoa que fala (BARBIER, 1998), e de estarmos atentos aos riscos da violência simbólica, como princípio fundamental na transposição da oralidade para a escrita (BOURDIEU, 1997). “Cabe ao pesquisador praticar a exegese do texto para decodificar a amplitude de seu sentido” (PASSEGGI, 2014b, p. 143). É preciso exercer um posicionamento ético e um aprofundamento teórico

que permita legitimar a criança em sua inteireza de pensamento, “como ser capaz de lembrar, refletir e projetar-se em devir, reconhecimento no qual se sustenta a tese da legitimidade de sua palavra como fonte de investigação para a pesquisa (auto)biográfica com crianças em educação” (Ibid, p. 135).

Ao analisarmos as narrativas infantis, temos que ter cuidado de respeitar a fala das crianças, de não macular sua interpretação e tentarmos, ao máximo, nos aproximarmos de suas experiências. Daí que, para a análise dos dados, encontramos na proposta de Jovchelovitch e Bauer (2002), o suporte que buscávamos para nosso trabalho. Os autores orientam um processo de análise temática dos dados para construir um referencial de codificação. “As unidades do texto são progressivamente reduzidas em duas ou três rodadas de série de paráfrases” (Ibid, p. 107). Primeiramente, recorremos a paráfrases para sintetizar o sentido do texto original. Essas sentenças são condensadas mediante palavras- chave. Essa redução do texto original se realiza por generalização e condensação de sentido. “Na prática, o texto é colocado em três colunas; a primeira contém a transcrição, a segunda contém a primeira redução, e a terceira coluna contém apenas palavras-chave” (Ibid). No quadro abaixo, exemplificamos procedimentos utilizados pelos pesquisadores do GRIFARS (PASSEGGI; NASCIMENTO; RODRIGUES, 2018).

Quadro 9: Procedimentos de análises

TEXTO 1ª REDUÇÃO 2ª REDUÇÃO

Transcrição integral Sentenças sintéticas Palavras-chave

À esquerda, colocamos a transcrição de cada roda de conversa, na íntegra. Na coluna do meio, as sentenças que sintetizam os parágrafos da narrativa. À direita, fazemos uma segunda redução, estabelecendo as palavras-chave, ou unidades de sentido. Esse minucioso e necessário processo torna-se imprescindível para a interpretação das narrativas. Como afirmam Jovchelovitch e Bauer (2002, p. 106), “a transcrição, por mais cansativa que seja, é útil para se ter uma boa apresentação do material, e por mais monótono que o processo de transcrição possa ser, ele possui um fluxo de ideias para interpretar o texto”.

Para identificar os temas recorrentes, colorimos com diferentes cores os temas identificados, na medida em íamos realizando as leituras do texto integral. Os procedimentos de coloração e de adensamento da narrativa já constituem operações

interpretativas do processo de análise (PASSEGGI; NASCIMENTO; RODRIGUES, 2018). As análises das micronarrativas de crianças gravemente enfermas, que transitam entre a classe hospitalar e a escola regular, nos propuseram três temas, intrinsecamente ligados às vivências de cada uma das participantes da pesquisa – “E quando a primeira escola é no hospital?”; “E quando retornar é permanecer na escola?”; “E quando as rupturas são um (re)começo?”.

No quadro a seguir, explicamos melhor a relação das participantes da pesquisa com os eixos temáticos:

Quadro 10: Temas

TEMA NARRATIVAS DAS CRIANÇAS

E quando a primeira escola é no hospital? Rita (5 anos) iniciou o processo de escolarização na classe hospitalar.

E quando retornar é permanecer na escola? Amanda (6 anos) retornou à escola regular. E quando as rupturas são um (re)começo? Maria (6 anos) conta suas experiências

entre o retorno à escola regular e um novo rompimento decorrente de uma recidiva do câncer.

É a partir desses temas e das categorias que deles emergem que dialogaremos a seguir.

5. O que contam as crianças sobre a escola – reflexões acerca da inserção, reinserção,