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VII A ANÁLISE UNITÁRIA DA FILOSOFIA

Ante a multiplicidade dos objetos do conhecimento e das conquistas feitas, é natural que o nosso espírito, por um processo eminentemente racional, deseje dar a

filosofia uma unidade, torná-la, enfim, a Ciência da unidade, a máxima unificação de todo o nosso conhecimento.

A Filosofia que já foi todo o saber teórica, com os gregos, e que a pouco e pouco se separou da Ciência, nunca perdeu seu sentido universalizante e unitário. Assim tudo quanto é, quando existe, tudo o quanto constitui o nosso mundo de formas imutáveis, tudo, enfim, constitui o objeto da Filosofia.

Todos os grandes problemas de todas as disciplinas, todas as grandes e maiores dificuldades, que surgem, cabem à filosofia analisar e resolver. Dessa forma, o filósofo é uma espécie de supervisionador de todo o conhecimento; é quem liga um fato isolado a cadeia dos fatores maiores, procura e relação que prende, que associa uma ideia à outra, um fato a outro. Procura as leis das leis, as constantes das constantes, ou por que tal se dá ou não se dá.

Nas experiências de laboratório, encontra muitas vezes o físico problemas que transcendem a experiência. Ei-lo interrogando o que é a energia, o que é o movimento. Não lhe podem satisfazer sempre as mesmas experiências. Quando interroga assim, apela para o filósofo que está nele ou, então, impossibilitado de seguir o caminho que transcende o seu mister, deixa ao filósofo concluir o que ele não poderia fazer, apenas dispondo de meios de experiência.

Desta forma, a Filosofia é a transcendência de todo o saber fragmentário das disciplinas particulares. Cada uma dessas disciplinas interessa-se por um campo, uma região, que é o seu objeto.

E onde todas as regiões do saber vem lançar seus raios, é na Filosofia, o saber

mater de todos os saberes, a sublime e nunca suficientemente louvada Filosofia, cujo brilho os adversários nunca conseguiram empanar.

Por entre a multiplicidade dos fatos, tem o homem duas funções intelectivas para entendê-los. Uma analítica, a intuição; a outra, sintética, a razão.

Assim, todas as coisas, todos os fatos que sucedem, quer do mundo exterior, quer do mundo interior, revelam o que são em sua singularidade, mas também o que são em sua generalidade.

Para conhecer esse universo de fatos variados e heterogêneos, e para reconhecer o que neles há de homogêneo e invariante, a razão e a intuição trabalham juntas como funções organizadoras.

Um dos problemas mais importantes da Filosofia coloca-se aqui: é o do conhecimento. Quais os limites do nosso conhecimento, como se efetua, qual a sua

natureza, etc., todos esses aspectos, os quais estudamos, são os grandes problemas que permanecem constantes. Não interessam eles apenas à Filosofia, pois são propostos e colocados em toda Ciência particular. Desta forma, a Filosofia é constantemente chamada para examiná-los, e por entre os debates dos cépticos, dogmáticos, racionalistas e idealistas, o problema da verdade está sempre presente. Até onde é verdadeiro o nosso conhecimento?

Esta pergunta impõe-se exigente de respostas. Que é verdade?

Ora todos sentem que a verdade é uma identificação entre a representação que temos de um fato e esse fato. Se o que enunciamos de um fato corresponde ao fato, diremos que esse enunciado é verdadeiro.

O verdadeiro é o que se coaduna com esse conceito de perfeição que formamos como uma meta a ser atingida, cuja exatidão nunca sentimos alcançar, porque é da natureza humana do conhecimento a insatisfação, que anima o homem a procurar sempre.

Não admitimos graus na verdade, porque a perfeição dela não os admite. O conceito dessa perfeição é sempre a negação das gradações. Assim, a verdade é o supremo ideal que a razão busca, e todas as verdades parciais, todas as verdades que não tem esse atributo de perfeição, são apenas empregos falhos desse conceito supremo de valor que damos ao inatingível. Toda ideia de Deus inclui a de verdade. Nenhum crente atribuiria ao seu Deus uma negação da verdade, porque Deus tem como atributo a perfeição infinita.

Se a certeza muitas vezes nos satisfaz e nos parece ser a verdade, é que, no conceito de certeza, damos algumas das mais profundas significações da verdade. A certeza é apenas uma aparência da verdade, é como esta se nos mostra, mas transeunte, passageira.

É como um mensageiro, um arauto que nos anuncia a deusa suprema, que, pela sua magnificência, permite-nos imaginar a majestade da verdade; mas apenas nos sugere o que ela é, e não nos satisfaz.

O problema da verdade é um problema importante, porque da solução dele temos a solução da luta entre o cepticismo e o dogmatismo.

Mas, apliquemos nosso método para analisar tão magno problema.

Em vez de respondermos à pergunta “que é a verdade, que é o verdadeiro?” perguntemos: por que colocamos a pergunta? Empregamos aqui, praticamente, o nosso método dos indícios.

Como se apresenta o conceito de verdade para os filósofos?

Ora como uma identidade entre o cognoscente e o conhecido, ora como a adequação entre o fato e a ideia, ora como a coerência do pensamento consigo mesmo, como o põem os idealistas...

As enunciações são muitas, mas em todas elas está incluído sempre o que ela quer dizer. Identidade ou adequação e a coerência dos idealistas são sempre a mesma identidade. A verdade transparece como o desejo de uma identidade entre o objetivo e o subjetivo, entre o cognoscente e o conhecido. Perguntamos agora: não são essas as intenções mais profundas da razão? Não é esse o conceito de verdade, um conceito puramente racional? E é apenas racional o nosso conhecimento? Não. O nosso conhecimento é também intuitivo, prático, singular. Uma singularidade é indefinível e, portanto, inidentificável.

A verdade do autenticamente singular o é apenas consigo mesmo.

A verdade é ser aqui. A verdade da intuição não é uma adequação, mas apenas o próprio ser ou o próprio sendo. Há, assim, em tudo uma verdade, que é ser ela mesma. Quando captamos a imagem de um fato, captamos parte desse fato. A verdade racional de um fato é a parte de razão que podemos adequar ao fato: então temos uma verdade racional. A verdade intuitiva de um fato nos é dada pela prática, porque não apreendemos intuitivamente tudo quanto o fato é, mas apenas o que é como singularidade, e generalizamos essa singularidade pela razão. Então a verdade, concretamente, que podemos conceber, é a conjugação do conhecimento que temos de um fato, racional e intuitivo em sua reciprocidade. Mas, qual o valor desse conhecimento? como saber que esse conhecimento é verdadeiro?

Se ele não ofende a coerência das normas dialéticas do conhecimento, dentro dessas normas é a imagem verdadeira.

E se é verdadeira, comprova-o a prática, porque o homem também domina a natureza, e nesse domínio está um dos meios de verificação, embora não possamos identificar esse conhecimento com o conhecido, porque estamos reconhecendo que o conhecimento é apenas parcial.

Responderemos assim: o conhecimento racional, como tal, pode ser verdadeiramente racional; como intuitivo é o conhecimento do heterogêneo, do diferente e pode ser verdadeiramente intuitivo, e, reciprocamente, o conhecimento intuitivo e racional se completam e nos dão um conhecimento concreto. Se aumentamos os meios de conhecimento, se aumentamos as possibilidades de penetrar

em outras notas das coisas, esse conhecimento novo não anula os anteriores, mas o completa. Dentro de um campo, temos uma verdade, dentro de outro, temos outra. Assim, como posso ter uma verdade física de um corpo, posso ter a verdade química desse corpo também, sem que uma exclua a outra.

Há, pois um conceito racional e universal de verdade, como uma grande possibilidade ideal, e há a atualização dessa verdade, que é ato, que é, portanto, consequente com o ato, que é sempre o determinado.

Construir com a verdade um conceito de perfeição, um ser-em-si, é uma forma abstrata de compreendê-la; é compreendê-la apenas por um aspecto. Compreender concretamente, é fazê-la descer do mundo das abstrações. Uma verdade sem fundamentos reais, existenciais, seria uma verdade inane, um fantasma a pairar como uma sombra a cobrir o nada. A verdade, como concreção, é a verdade viva, palpitante, criadora30.

* * *

Já estudamos o conceito de absoluto e de relativo e pouco podemos por ora acrescentar. Ambos são conceitos, o primeiro oferecido pela razão, e o segundo pela intuição, como mais adiante veremos.

São antinômicos, distintos, mas inseparáveis. A afirmação do absoluto não exclui o relativo, como a ideia de relativo não se mantém sem seu oposto. Não concebemos o condicionado sem o incondicionado, o determinado sem o indeterminado. Esses conceitos polares refletem no espírito a grande polaridade de todas as coisas: as antinomias que se complementam.

* * *

A Ciência estuda a parte, estuda o particular, é o saber teoricamente organizado do particular. A Ciência sabe, a filosofia quer saber, a religião crê, a arte

cria.

Não há Ciência sem objeto e o objeto da Ciência é o regional, o particular. A Ciência é o conhecimento do finito por suas causas imanentes. Ela não transcende o seu objeto, já vimos.

A religião crê. Uma religião, racionalizada, deixa de ser propriamente uma fé, pois esta exige o pleno assentimento do espírito, independentemente de demonstração

30 Em “Teoria do Conhecimento”, no capítulo de “Criteriologia”, fazemos a análise decadialética da

ou prova. A religião é a aceitação de que podemos penetrar no transobjetivo, no transcendental, no transinteligível, pela fé, pela revelação mediata e imediata.

A arte não quer saber, nem apenas crer, mas criar. A arte é a manifestação do homem como criador. Todos nós temos a ideia de algo que é o supremo dos nossos desejos, o perfeitamente desejado, a beleza suprema. A arte é essa constante aproximação, realizada em obras pelo homem. Todo o verdadeiro artista tem um ideal de beleza que deseja concretizar, atualizar, tornar real.

Esse atualizar, esse passar da potência ao ato, da mera possibilidade à realidade, é criação. O artista é um criador.

Só quando o homem, depois de seu grande drama evolutivo, alcançou a fase de criação estética, sentiu que tudo tinha um criador, um supremo artista, realizador de todas as coisas.

Deus tem sempre, em sua essência, o atributo do artista. Dar vida ao inerte, dar forma ao informe, dar significação ao que nada significa, é criar, é tornar real o que apenas era sonho, desejo. O artista é um criador. E Deus, em quase todas as concepções religiosas que aceitam a criação, é sempre um grande esteta, um grande amante da beleza, da perfeição, porque é o artista supremo.

Mas há, aqui, uma diferença fundamental. Deus, como criador, não cria dando ordens novas ao que já é existente, como o faz o artista.

Ele cria o que recebe a forma, o que não havia antes, como tal.

O artista reúne numa obra o que já existe; Deus cria o que ordenará, que antes não era nada; por isso se diz que cria do, a partir do nada e não de nada, pois a criatura, antes, não era um existente, nem como parte nem como todo. Não há uma antecedência do nada absoluto à criação divina, pois há Deus, que é, para as religiões, o Ser Supremo.

C O S M O V I S Ã O (V I S Ã O G E R A L D O M U N D O)

I - COSMOVISÃO (VISÃO GERAL DO MUNDO) FILOSOFIA DO