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V CONCEITOS DA RAZÃO CONCEITOS DA INTUIÇÃO

Os gêneros supremos são, quanto à hierarquia (conceitual), de graus diferentes. Uns filósofos afirmam que esses gêneros são formas apriorísticas, necessárias ao nosso pensamento. Outros ainda os consideram como formas inatas ao nosso espírito, e quase todos afirmam seres eles dados pela experiência. Esses gêneros supremos vão inevitavelmente estruturar, coordenar as nossas representações. Foi nesse sentido que Aristóteles chamou-os de categorias.

Viu Kant, porém que o tempo e o espaço não eram propriamente conceitos, mas formas puras da nossa sensibilidade.

Para a elaboração dos conceitos, já vimos que são necessárias duas atividades: a sensação e a inteligência, sendo esta dialeticamente disposta em duas funções, que são a intuição e a razão. Há um antagonismo no funcionamento desses dois processos da nossa inteligência. A inteligência é considerada por Claparéde, Klages e Nietzsche, com pequenas variações que podemos por ora desprezar, como um meio de adaptação do homem, um instrumento de adaptação. O instinto, desviado, “desatado” (caso do homem) torna-se inteligência, porque se torna consciência de si mesmo51.

O nosso conhecimento, já vimos, é descontínuo e cinemático. Há em todo conhecimento um desconhecimento; conhecer é separar, selecionar, escolher. A percepção de uma diferença (e também a intensidade dessa diferença) é a base da consciência (era o pensamento de Stuart Mill, como também, semelhantemente, é a concepção de Bergson).

O instinto (instinctus, em latim significa impulso), quando toma conhecimento de si mesmo, é a intuição para Bergson; a razão seria um desabrochamento posterior. O instinto tem um fim, dirige-se para um fim. Mas, revertendo-se sobre si mesmo, interiorizando-se, reflete-se a si mesmo e reflete sobre si mesmo. O instinto é um impulso interessado. Na impossibilidade de atingir os seus fins, reverte-se sobre si mesmo e parece tornar-se desinteressado. (Lembremo-nos da opinião de Nietzsche sobre a interiorização do homem. Por não poder realizar, na sociedade, tudo quanto pelos discípulos. É o que se verifica também na arte: Petrarca é grande apesar do petrarquismo, que atualizou mais defeitos que as virtudes, e as virtudes menores, pelo excessivo, tornaram-se deficientes.

51 Esse objetivar-se da consciência em si mesma é um desdobrar-se in infinitum, pois a consciência

ainda pode ter consciência de que tem consciência. Desta forma, ela pode distanciar-se sempre de si mesma. Este poder atuar da consciência é tema de Noologia, a Ciência do espírito.

lhe impelem os seus instintos, recolhe-se em si mesmo, interioriza-se, adoece em si

mesmo, cria a má consciência ao lado da consciência).

Essa opinião sobre a formação da razão como mera reversão do instinto, que acima expusemos, não pode ser aceita, porque ela não é apenas uma elaboração daqueles. O papel seletivo da própria vida, dos órgãos dos sentidos, a acentuação do dinamismo dos homólogos, que já estudamos, mostram-nos que a razão é de origem múltipla e complexa, e tem raízes muito mais longínquas do que pensam muitos filósofos. O instinto introvertido é um fato da razão, mas um fato cooperante, que atua predisponentemente, e não único e adequado formalmente àquela.

Na razão há a coexistência de muitos outros elementos que ultrapassam ao instinto. Quando a tensão nervosa, antes vertida para o exterior, introverte-se, e com a cooperação de tantos fatores favorece a emergência da razão, esta se revela desinteressada, no sentido do interesse, que é peculiar ao instinto. Outro é o interesse da razão.

Segundo a opinião geral de tais autores, quando a intuição se torna impotente, porque o conhecimento do individual seria um obstáculo à vida, e esta manifesta um dinamismo para o homólogo, como já vimos, a razão surge para melhor compreender. A razão tende para um fim, que é da economia da própria existência. Para tal posição, enquanto os instintos são suficientes, como nos animais inferiores, ela não surge. Quando eles se manifestam incapazes, por si sós, de atenderem a defesa da existência, e a intuição é insuficiente, a razão aparece e se desenvolve concomitantemente com a redução do potencial dos instintos e da intuição, como se dá com o homem, embora só nas obras de Noologia possamos investigar este ponto mais profundamente, pois é preciso saber se a razão surge devido à insuficiência dos instintos ou estes se aminoram devido ao advento da razão.

Ela serve assim à vida; e por ser interessada, tem um fim. Se a Filosofia deu sempre mais valor à razão que à intuição (sobretudo a filosofia ocidental, que é especulativa, como já vimos, teórica, eminentemente racionalista), é que a razão propõe, oferece, dá possibilidades maiores do que se julgava. Ela não oferece todo o conhecimento (e nisto tem razão os místicos e os irracionalistas, porque não dá um conhecimento completo). Mas, munida da razão, e levando-a como instrumento de investigações até às suas últimas conseqüências, poderia a Filosofia penetrar em terrenos seguros, como o pode com a escolástica, que soube usá-la. Esse o motivo por que o impulso racionalista foi tão predominante no Ocidente, onde as condições

sociais e ambientais permitiam o desabrochamento do racional. Se no século passado, e neste, desenvolve-se uma ampla corrente irracionalista na Filosofia, esta não vem para desmerecer a razão, como pensam muitos, mas, ao determinar os seus limites, vem desenvolver a parte da intuição que não deverá ficar esquecida como ficou, depois do malogro (em parte aparente) do movimento místico.

Já estabelecemos a correlação existente entre a razão e o órgão da visão. A razão oferece-nos a nitidez (nitidus, em latim, claro, lustroso, brilhante). As idéias

claras são aquelas que podem ver (a palavra idéia, vem de uma imagem visível, claramente recortada no espaço, como abstraída do resto que a cerca. A razão esquematiza, separa, dá nitidez, clareza à idéia, que ela também abstrai52.

Assim mostramos também quanto tem de espacializante a razão. Para compreendermos o tempo, nos o espacializamos, não por estarmos no espaço, como o pensava Bergson, mas por influencia da razão, que “espacializa” para perceber melhor. A razão é assim interessada e utilitária, porque serve à vida, porque convém à manutenção da vida, e por ser o homem o animal dos instintos mais frágeis, é também o que tem a razão desenvolvida. (Esta é uma tese naturalista, que não deixa de ter certa positividade).

* * *

Depois deste exórdio, em que repisamos muitos dos pontos tratados, podemos entrar, agora nos conceitos da Razão e da Intuição, e analisá-los. A razão, por ser espacializante (já vimos que o espaço é o meio da coexistência, da simultaneidade, da reversibilidade), é eminentemente extensista; é ela, para usarmos uma velha expressão da psicologia clássica, que nos dá a noção da extensidade. Assim os seus conceitos preferidos (conceitos básicos) são:

1) O semelhante. (Já estudamos sobejamente o semelhante e o roteiro que vem do parecido ao semelhante, do semelhante para o mesmo, do mesmo para a identidade, que é a homogeneidade absoluta, abstração máxima da função abstrativa da razão)53.

52 O exame crítico que fazemos da razão dos racionalistas modernos não invalida a rationalitas, que é

particular ao espírito humano. O que desejamos salientar são as características adquiridas (hábitos) por aquela, que a levam a tornar-se eminentemente abstracionista.

53 Os conceitos da razão, tomados abstrativamente, não correspondem à totalidade do real, mas daí não

se pode concluir pela falsidade. São eles esquemas abstratos noéticos, mas podem ser adequados ao que corresponde fundamentalmente nas coisas, como vemos na “Teoria do Conhecimento” e na “Noologia Geral”. O emprego exagerado de tais conceitos racionais, abstrativa e não dialeticamente tomados, deve-se ao racionalismo, que, como ismo, repetimos, é vicioso.

2) A quantidade. A materialidade e a espacialidade nos dão a idéia da quantidade, que é homogênea. Temos daí a grandeza, o número, todos de ordem geneticamente visual.

3) A imutabilidade. Através do que flui, do que muda, do que se transforma, do que é móvel, deve haver algo de imutável, de permanente, que se conserva. Esse conceito surge como um ponto alto da reflexão, e funda o princípio da identidade.

4) A imobilidade. A visão precisa fixar, parar, reduzir o movimento ao mínimo para ver. O conceito da imobilidade liga-se à invariabilidade, ao “invariante”. 5) O Ser. A suma abstração da razão, afirmação da existência (quando tomado

logicamente).

6) A Eternidade. É preciso negar o tempo, o devir. A eternidade torna simultâneo todo o ser, dá-lhe o atributo da imutabilidade. Mas a vivência racional não é suficiente54.

7) A Necessidade.

8) Determinismo (causalidade).

Na verdade são ininteligíveis a contingência e a liberdade para a razão

O princípio de causalidade liga, solda, dá uma continuidade espacial aos fatos, pelo nexo de causa e efeito.

9) A Atualidade. O devir é a passagem da potência (como virtual) para o ato. Para contradizer o devir, tudo é atualizado, porque só “vemos” o que é atualizado. A potência não é visível. Daí a posição do atualismo, que só valoriza o que se realiza, e tudo o mais fica marcado com o nome genérico de possibilidade. Observe-se que quase todas as filosofias racionalistas são atualistas. O que se atualizou, se realizou, era inevitável, tinha uma razão suficiente, ou uma causa, o que permite também uma justificação do que acontece.

10) O Espaço. É o infinito estático. É uma conseqüência da espacialidade. É uma abstração operada sobre a extensão concreta. (A visão é imobilizadora. A razão procede pala negação do dinamismo de diferenciação).

54 Há uma vivência racional também, como há uma vivência sensível e uma páthica (afetiva). A

11) A Substância. A razão elimina da realidade os aspectos individuais, contingentes, para buscar o que está abaixo, o que sub-está, a substância que não varia, o substractum.

12) A Unidade. É a síntese, tomada indivisamente.

Estes são os conceitos supremos da razão, segundo sintetizamos, fundando-nos nas obras dos que bem os estudaram, como Lupasco, Grandjean, etc.

Vejamos agora os conceitos da intuição, para depois tecermos comentários e análises que se impõem.

Assim como os conceitos da razão tendem para a fixação, para um dinamismo de extensidade, de espacialização, os da intuição tendem para um dinamismo de intensidade, de temporalização.

1) Diferente. É o contrário da identidade, da homogeneidade. É o heterogêneo. O que não é comparável, o que não é propriamente visto, mas compreendido por negação (o não-igual, o não-semelhante, o não-parecido).

2) Qualidade. Esta não se vê intrinsecamente. Vemos coisas amarelas, não o amarelo (que é um conceito).

3) Câmbio (mutação). Este nos é dado pela desaparição, pela destruição, que é uma manifestação lenta.

4) O movimento. A visão é cinemática. Apanha uma série de deslocamentos, uma sucessão de repousos, uma sucessão descontínua. A intuição penetra no essencial do movimento.

5) Devir. O devir é invisível. Nos captamos apenas os resultados.

6) Tempo. Colocamos o tempo como oposição da eternidade (que não é tempo, onde acaba todo o tempo). O tempo está fora do visual, e a razão não pode compreendê-lo. A razão nega-o pela eternidade, que, por sua vez, também são pode explicá-la. A eternidade exige uma vivência não apenas racional.

7) Contingência.

8) Liberdade, indeterminismo como intuição interior de incausação. 9) A potencialidade.

10) Força. É o infinito dinâmico; não é visível.

11) O Eu. Não é espacializante. Funda-se na afetividade. Não é visível. Seu desenvolvimento é subjetivo, interiorizado.

Estudemos agora pormenorizadamente esses conceitos em seu antagonismo, para que se nos esclareça ainda mais o que entendemos por Noologia, essa disciplina que estuda o funcionamento do espírito como inteligência, afetividade e também em suas funções transinteligíveis, que já pertencem à Metafísica.

O SEMELHANTE E O DIFERENTE

Já expusemos a contemporaneidade do semelhante e do diferente. São antinômicos o semelhante absoluto e o diferente absoluto. O absoluto é um conceito da razão, enquanto o relativo nasce da intuição. O semelhante absoluto é o idêntico, atributo do Ser; o diferente absoluto seria o indivíduo inefável, único, dos escotistas, dos existencialistas, por exemplo. Ambos formam os dois extremos da inteligibilidade, e um cria restrições ao outro. Como compreender o indivíduo como diferente absoluto ante o idêntico? Note-se aqui a significação da frase de Nietzsche: “Se Deus existe, eu sou Deus.”

São antinomias que se complementarizam ao se oporem, mas sem se excluírem, pois uma necessita da outra para ser inteligível.

São os extremos que se “tocam”. Tudo quanto é diferente revela o semelhante, porque onde há o diferente há o semelhante; onde notamos o diferente, separamos o semelhante e vice-versa. Assim quando Parmênides afirmava na aparência o Ser,

atualizava o semelhante para virtualizar (inibir) o diferente.

Parmênides evidenciava o que a razão tende a atualizar o semelhante. Quando a razão, numa elaboração posterior, cria o conceito de identidade, fá-lo fundada no semelhante, que é contemporâneo em todo o ato inteligível, porque a inteligência elabora dialeticamente a separação ente o semelhante e o diferente55. Inteligir é separar, e dialeticamente complementarizar o racional e o intuitivo. Onde se tornam os racionalistas extremamente abstracionistas e, a nosso ver, erram rotundamente, é quando reduzem o intuitivo, o diferente, ao semelhante, isto é, quando explicam aquele por este, como quando explicam a qualidade pela quantidade. E erram rotundamente os irracionalistas, quando reduzem a razão a apenas uma função da intuição, deformadora da existência. Uma não exclui a outra, embora se oponham.

55 O conceito de identidade tem seu fundamento ontológico. Se mostrarmos como geneticamente a

razão constrói os seus conceitos, não consideramos ficcionais os seus conteúdos. Por considerá-los como tais, os irracionalistas caíram em aporias, decorrentes da posição viciosa que tomaram na obstinação de se contraporem aos excessos do racionalismo.

Assim a visão tem um campo em que fixa e dá nitidez ao objeto; o que fica à margem, o que é marginal, como se diz na Ótica, não é fixável, mas, por ele, se captam melhor os movimentos, enquanto o campo da fixação estatiza. Nossa própria visão funciona dialeticamente.

Tudo quanto fixamos, exclui o que lhe é marginal. Um movimento é melhor apreendido com o “canto dos olhos”, como se diz popularmente.

Qualquer leve movimento que se passa nesse campo marginal é logo perceptível e melhor que no campo central da fixação. Todo o ato de reflexão é uma demora. Para refletir sobre alguma coisa, é preciso pará-la em relação às outras. Os que afirmam que o semelhante não nos é dado pela realidade, como Grandjean, se enganam. Parmênides, e toda a tendência parmenídica, que é a predominante da Filosofia Ocidental, tinha seu fundamento, o ponto fraco estava em excluir o diferente, o heterogêneo, por não poder conciliá-lo com o homogêneo56.

Na multiplicidade das aparências dá-se o semelhante; do contrário, chegaríamos ao diferente absoluto para tudo. Mas o semelhante também exige e implica o seu contrário, o diferente, do contrário cairíamos no exagero parmenídico que tem sua conseqüência na concepção de Zeno de Eléia. A razão é uma função complexa, mas útil à vida, e não nega o instinto. A divisão da intuição e da razão é uma divisão dialética da operação da inteligência. A razão é utilitária também, porque ao preferir o semelhante (mais útil à vida que o diferente) favorece a vida, que é seleção para os homólogos, porque os seres vivos tendem a retornar ao que aprenderam a conhecer e a afastar-se do que ignoram.

Só as quantidades são comparáveis, e a razão da qualidade é o quantitativo da qualidade, o grau de intensidade, o que quantitativamente redutível. Não posso comparar uma qualidade com outra, uma cor com um sabor, mas posso comparar um amarelo com um menos amarelo. Já vimos que, na quantidade, o acrescentamento

aumenta; na qualidade não. Um verde mais um verde não formam duas vezes verdes, enquanto uma medida quantitativa e outra igual formam duas. Só posso comparar qualitativamente, como no caso do amarelo com o amarelo, quando há duas

qualidades especificamente iguais.

Então, o que eu comparo é o quantitativo: um objeto mais ou menos pesado que outro; um amarelo, mais ou menos amarelo que outro.

As qualidades são heterogêneas. Cada uma forma uma ordem, uma ordem própria, e quando se passa de uma qualidade para outra, passa-se de uma ordem para outra. Não comparo o verde com o pesado, a cor com o sabor. As quantidades, como qualidades, são incomparáveis e incomensuráveis. Quando digo que a cor tal é o resultado de tantas vibrações e comparo quantitativamente com outra cor de vibrações luminosas de menor número, eu comparo apenas o quantitativo, o número das vibrações, não a qualidade. Não se deve argumentar com as comparações estéticas, que falam de um som verde, ou de um som azul, porque não são comparações, mas transposições, substituições, metáforas.

Os psicofísicos quiseram comparar as qualidades sob a base das intensidades, reduzindo-as a extensão. A razão prefere a quantidade. E vamos mostrar porque.

O que aparece é a qualidade57. Nós vemos objetos que são amarelos, azuis

encarnados, pesados, leves, velozes, etc. A quantidade revela-se logo. A razão busca o mais firme, o mais sólido; e não o que aparece, o que muda, cambia. Procura a quantidade, porque esta permite a comparação. Posso comparar quantitativamente um livro com uma mesa. Posso dizer que esta mesa tem 150 centímetros de largura, e o livro quinze. Posso comparar o livro com a mesa como quantidade, e dizer que aquela contém 10 destes livros de largura. Mas as qualidades já não o posso do mesmo modo. A razão procura explicar o qualitativo pelo quantitativo. Quando um racionalista expressa as qualidades diversas por meio de uma equação diferencial, sente-se como se tivesse atingido o mistério universal.

Para a razão, o devir é um mero deslocamento, transitividade; o dinamismo é apenas mecanicismo. Reduzindo a qualidade à quantidade, ela reduz o múltiplo à unidade, ela reduz o diferente ao idêntico.

No caso do mecânico, que citamos acima, a razão logo se depara com uma dificuldade. É que o mecânico exige um conceito misterioso para ela, que é a força, sua razão suficiente. Mas a força ultrapassa a razão, já exige a finalidade, outro conceito, que ela não pode facilmente apreender, senão por rodeios que examinaremos58.

57 A figura, estereométrica, dos corpos é uma delimitação qualitativa da quantidade. Esta, em si, não é

captada pelos sentidos, mas sempre no conjunto qualitativo-quantitativo, pois o tato, que é o sentido em que há predominância do quantitativo, nunca exclui a qualidade.

58 Para evitar as deficiências da razão, impõe-se uma super-razão, como a entenderam Aristóteles,

Tomás de Aquino e Scot, que nunca se desligaram da experiência, quer exterior, como os dois primeiros, quer também interior, como sobretudo o último.

A qualidade, por definição, tende para o diferente. Pela quantidade, a razão une, sintetiza. Boutroux (1845-1921) combate o que ele chama de racionalismo

quantitativo, que tende a reduzir a qualidade à quantidade. “...a hipótese de uma quantidade pura de toda qualidade..., mas que idéia se pode fazer de tal objeto? Uma quantidade não pode ser senão uma grandeza ou um grau de qualquer coisa, e essa qualquer coisa é precisamente a qualidade...”

Em suma: a quantidade é incompreensível sem a qualidade. Uma implica a outra. Onde há qualidade há quantidade, onde há quantidade há qualidade, pois são antinomias.

São dois conceitos, um da razão e outro da intuição, que se implicam dialeticamente. A abstração pura da quantidade, como da qualidade, leva a um “impasse” da razão, como se vê no racionalismo. Ambas abstratamente (separadamente) tornam-se ininteligíveis. Concretamente consideradas (dialeticamente), em conjunto consideradas, completam-se. É mais um antagonismo que se complementa, porque é resultado do funcionamento dialético da inteligência, como o vemos na “Psicologia” e na “Noologia Geral”.

IMUTABILIDADE E MUTABILIDADE (CÂMBIO)

Os racionalistas, ante a mutabilidade, procuraram o que não mudava, o imutável. Platão concebia acima deste mundo a esfera imutável das formas. A esfera da mutabilidade é a dos seres que se transformam, sensíveis e perecedouros. O ser é imutável, e é o grau de imutabilidade que dá valor as coisas. O conceito de imutabilidade revela-se na oposição ao de mutabilidade, que nos é dada pela intuição.

Essa imutabilidade, procurada atrás de tudo quanto existe, é o ponto de apoio que buscam os filósofos da incondicionalidade, de que já tratamos. O que muda, o que cambia, é algo que é fixo, no fundo. É um grande desejo vital de conservação de nós mesmos que leva a nossa razão (que em nada nega os nossos instintos), a afirmar a mutabilidade de tudo. Mas, a reação de Parmênides não se fez esperar, e essa reação imprimiu a marca de toda a filosofia ocidental. Só modernamente, com Hegel, Bergson, William James, Nietzsche retorna o tema da mutabilidade para a filosofia. Mas todos eles, no fundo, afirmaram algo de imutável: a lei suprema da Idéia, em Hegel, a “vontade de potência” em Nietzsche, a “matéria” para os materialistas, etc.

O que nos revela a realidade, graças a Ciência, é que há mutabilidade, mas essa mutabilidade não é igual para todos os fatos.

Não podemos compreender uma mutabilidade absoluta das coisas finitas, nem uma imutabilidade absoluta. Ainda aqui não podemos fugir às antinomias, os antagonismos dos dois conceitos que se opõem, que permanecem antinômicos. Não concebemos o ser sem o sendo, este sem aquele. Mas, compreendendo ambos como conceitos dialeticamente antinômicos, como elaborados pela dialética do nosso espírito, podemos também compreender a sua complementaridade. Ante qualquer um dos extremos, encontramo-nos ante um obstáculo, que é a sua “negação”. Podemos compreender o ser como imutável enquanto ser, como forma que é, e não um tornar- se em nada. Mas, essa compreensão não exclui a positividade da mutação dos entes finitos. O ser é sempre ser, mesmo quando é ora isto, ora aquilo.

Não podemos compreender que algo seja mutável sem concebê-lo como pertencente a algo imutável. É que não podemos romper com o concreto, esgrimindo conceitos que são apenas abstratos59.

IMOBILIDADE E MOVIMENTO

Para estes conceitos podem servir os mesmos argumentos já expostos