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OS ANÔNIMOS EXISTEM E UMA CERTA PERCEPÇÃO DE DECADÊNCIA: O PAPEL E A REPRESENTAÇÃO DA ONG AO LONGO DO TEMPO

CAPÍTULO 3 – SUJEITOS DA HISTÓRIA: MEMÓRIAS DA AIDS EM PONTA GROSSA PR

3.9 OS ANÔNIMOS EXISTEM E UMA CERTA PERCEPÇÃO DE DECADÊNCIA: O PAPEL E A REPRESENTAÇÃO DA ONG AO LONGO DO TEMPO

Quando questionados sobre que foi e qual é o papel do Reviver, há certa unanimidade quanto ao passado: Rosa afirmou que o grupo foi crucial – e assim o considera até hoje –, pois ajudou muitas pessoas, reinserindo na sociedade indivíduos excluídos ou severamente adoecidos. Na mesma linha, Lis considera que o Reviver continua sendo necessário e que seu grande papel foi mostrar “que os anônimos existem” (sic). Ricardo também sustentou que a ONG foi muito importante para a região, tendo se tornado uma referência nacional, contribuindo não só diretamente com as pessoas infectadas, mas também no enfrentamento e minimização do preconceito. Florence e Albertina, por sua vez, afirmaram que a principal importância do grupo se deu na função de esclarecimento em um contexto em que o HIV era completamente novo, seja entre profissionais da saúde, seja entre a população de modo geral. No entanto, ambas consideraram que o cenário mudou e a lacuna a que o Reviver respondia não existe mais, já que suas antigas ações hoje são contempladas por políticas públicas.

Florence apontou ainda que, nos dias atuais, a informação está toda disponível na internet – e, mesmo assim, nota um aumento nos casos entre jovens e um certo enfraquecimento no campo preventivo. Para ela, o Reviver foi decisivo à sua época, mas, atualmente, “não faz mais sentido”. Ricardo e Albertina apontaram para um condicionamento da frequência das pessoas no Reviver ao recebimento de cestas básicas – ação assistencialista que permaneceu ao longo de toda a trajetória de ações da entidade, em articulação com população atendida, em geral, empobrecida em condições de risco e vulnerabilidade social. Muito embora Albertina enfatize o valor das estratégias voltadas à geração de renda (algumas das mulheres do Reviver conseguem produzir itens como chinelos bordados, panos de prato, bonecas de pano, entre outros), há, para ela, uma “certa percepção de decadência” do Reviver.

Hoje, apesar de já sair dali faz quatro anos, mantive o contato com os pacientes – e eu já dizia há quatro, cinco anos atrás – “o Reviver ia deixar de existir para os adultos, porque a configuração é outra”. Então o Reviver recebe uma ou outra pessoa hoje, para receber uma cesta básica, caso contrário, não vão [...]. Muito poucos se identificam com o lugar. Tem sim

usuários no Reviver, os mais antigos, que tem uma história. E os novos, só vão aqueles que mais necessitam, que não tem o que comer: vão por aquele almoço, e para conseguir uma cesta. Dentre os mais antigos: (cita quatro nomes) - são os mesmos de 18, 20 anos atrás. Vão para encontrar os amigos, porque sofreram juntos desde o início. Hoje não estão doentes, mas acham legal reencontrar os amigos, bater um papo, se reverem... acho que isso ainda ficou dos antigos. Um espaço de reencontro dos antigos – e os novos pela alimentação, necessidade (ALBERTINA, 2020).

Quando de minha saída da ONG, no início de 2018 – à véspera de iniciar o programa de mestrado em ciência sociais aplicadas –, a população de soropositivos que frequentava o Reviver havia diminuído, mas sempre houve um conjunto de frequentadores cativos: parte significativa deles com uma longa trajetória na instituição. Alguns frequentavam conselhos municipais – seu protagonismo político seguia o protagonismo político da ONG de modo geral, que se exercia principalmente em momentos de fragilidade financeira e/ou atraso de repasse de recursos, reivindicando do município condições financeiras e estruturais para a continuidade do trabalho. As ações da ONG se concentravam internamente: reuniões semanais, acolhida individual e/ou familiar, mobilizar a garantia de direitos para sujeitos em situações de violação, oficinas de música, dança e artesanato, e proporcionar um espaço de convivência. E aqui é importante lembrar que grande parte da equipe atuava nos dois setores da ONG concomitantemente.

No município, o alcance das ações do Reviver se resumia em parcerias com o SAE ou outras ONGs da infância e adolescência e da assistência social, e participação em eventos específicos e pontuais. A incerteza e a fragilidade financeira constituam preocupações centrais irremovíveis: a cada final de ano se aproximava a angústia da dúvida sobre o financiamento e a continuidade da existência da ONG quando do momento de término e renovação de convênios e projetos. Assim, permanecia um senso de preocupação coletiva entre funcionários e usuários.

A despeito das ações de distribuição de cestas básicas, e mesmo das ações informativas, preventivas, assistenciais, as relações constituíam um aspecto importante, daí minha percepção de que o sucesso das oficinas tais como as de artesanato, dança e música não dizia respeito à atividade em si, mas com a qualidade de relação que se estabelecia entre os sujeitos. Minha percepção é a de que o Reviver permanecia ocupando a função de representar um espaço possível para o exercício da troca subjetiva, do exercício da memória e do reconhecimento da população soropositiva.

3.10 SÍNTESE E DISCUSSÃO A PARTIR DA MEMÓRIA DOS SUJEITOS

O Reviver surgiu como a resposta à percepção de alguns atores, em meados da década de 1990, de que a política de AIDS na cidade de Ponta Grossa não era suficiente para dar conta dos desafios e problemas inerentes à epidemia, em especial no que tange à prevenção da doença. Após a formação de uma articulação com atores de ordem religiosa ainda na primeira metade da década, denominada Pastoral da Vida, profissionais do campo da saúde que já haviam participado de treinamentos em diferentes regiões do país decidiram fundar uma organização não-governamental para ampliar o escopo de ações possíveis. O cenário nacional vivia um momento privilegiado no que diz respeito ao financiamento de programas para a AIDS, em razão do acordo firmado pelo país com Banco Mundial para financiamento de ações voltadas à contenção da epidemia no país.

Não levou mais do que dois anos para que a Associação Reviver assumisse um caráter de representatividade na política municipal de HIV/AIDS. Ações assistenciais se articulavam a ações para garantia de direitos dos soropositivos, bem como a ações pontuais voltadas à prevenção. Já nessa época os próprios soropositivos apresentaram um certo tipo de ativismo que não figura nas fontes oficiais: seja realizando contato com outros soropositivos para apresentar o trabalho da instituição, seja apoiando-se mutuamente no enfrentamento da condição que ainda detinha muito de seu caráter agudo, ou mesmo ingressando em disputas judiciais e pleiteando autoridades por acesso à medicação, há uma espécie de ativismo invisibilizado senão pelas memórias dos próprios sujeitos.

Uma vez conseguida uma sede com maior espaço, e a partir de parcerias com outros atores como professoras da UEPG e representantes de outras ONGs AIDS do estado do Paraná (sobretudo o Grupo Dignidade), o Reviver atravessou um período de ampliação do escopo e alcance de suas ações, desenvolvendo projetos distintos ainda demarcados por uma atuação voltada para “grupos de risco” – não obstante, foram projetos com equipe, materiais e objetivos específicos, atuando interna e externamente à sede física com secções populacionais como mulheres, crianças, homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas com potencial risco de contaminação. O financiamento direto do FNS por meio do AIDS II possibilitou que uma organização da sociedade civil fosse o principal ator da política municipal de