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ANA VILELA, 1895 – 1930

No documento Mil vezes te amarei (páginas 40-57)

Vitório colocou a coroa de flores e convidou Álvaro para rezarem um Pai Nosso e uma Ave Maria, e assim fizeram. As lágrimas em ambos foram inevitáveis.

– Vinte anos passaram-se e ainda lembro dela como se fosse ontem. – admitiu Vitório.

– Também. Certo dia, até sonhei com ela, acredita?

– Sério? E como foi o sonho, gostaria de saber. – indagou Vitório, curioso.

– Foi tão real, parecia que ela ainda estava aqui, conosco.

Eu a vi lá em casa, da janela do meu quarto, me convidando

para um passeio...quando eu fui pegar na mão dela, de repente, me vi num quarto escuro, e uma mulher em chamas tentava me agarrar...- relatou Álvaro.

– Está repreendido em nome do Senhor Jesus! – benzeu-se Vitório rapidamente. – sonho estranho... – continuou ele. – Tenho certeza que Ana descansa em paz em algum bom lugar, ela era uma pessoa boa que sempre ajudava os outros.

– Claro, foi só um sonho! Fruto da minha imaginação motivada pela saudade.

***

Em casa, Rita pensava consigo mesma. Tramava com seus botões... Precisava fazer a filha se aproximar e se casar com o filho do prefeito de São Paulo, Ian Jordan, um rapaz cortejado por quase todas as damas da cidade, mas que, no fundo, não sabiam bem se realmente era de mulheres que ele gostava, pois não o viam nos eventos promovidos pela prefeitura, tampouco nas festas da alta sociedade paulistana. Podia ser apenas timidez.

Até carta e convite Rita enviara pelos correios para o endereço do rapaz, nunca obtendo resposta ou retorno, é claro.

No dia 1º de dezembro daquele ano, Maria teve uma piora que a deixara de cama por semanas. Estava mais pálida, apática do que nunca, não sentia fome e quase não ia ao banheiro fazer suas necessidades fisiológicas. Eduardo conseguira vender as telas e o colar de esmeraldas por uma mixaria. Um homem estranho, de sobretudo marrom, comprara os itens, alegando não serem verdadeiros. Dera por tudo, apenas cem mil cruzeiros, o que na época, não era nada comparado ao valor de mercado das telas e do colar. Anos mais tarde foi descoberto que esse mesmo homem vendeu as telas e o colar em um leilão, faturando milhões de cruzeiros e doando parte do dinheiro para o pai de Ian, sob forte ameaça e pressão, ajudando o mesmo a eleger-se governador de São Paulo por um partido tradicional na política brasileira nos dias atuais.

Em 1951, numa manhã ensolarada de terça-feira do mês de março, Maria, ainda abalada e frágil, caminhava no que mais tarde viria a ser o parque do Ibirapuera, acompanhada de Eduardo. O carinho que eles sentiam um pelo outro só aumentava. Com o dinheiro da venda dos itens de valor de Álvaro, pode-se pagar uma consulta com um dos melhores médicos da cidade, inclusive, comprar os medicamentos.

Maria sofria de um mal que a ciência da época nem sonhava que existia, e o diagnóstico não era eficaz, tampouco a medicação, que aliviava as dores por horas, mas quando voltavam, estavam duas vezes mais intensas.

O percurso que fizeram era longo, caminharam por cerca de duas horas. O sol estava tinindo, o suor escorria pelos rostos da bela moça e do lindo rapaz. Maria usava um vestido rosa, com bolinhas brancas e Eduardo vestia um blazer cinza e com uma calça de linho preta. Eram só risos e afagos.

– Que lindas essas rosas! – admirou Maria, quando passavam próximo a um canteiro de flores, na estradinha que dava acesso a sua residência. – Você pode me dar uma? – pediu ela sem jeito, para Eduardo.

Estavam de braços entrelaçados.

– Claro! – disse ele. – Vou pegá-la. – Eduardo foi até o canteiro, que estava coberto por outras plantas e, quando tocou na rosa, foi espetado por um espinho causando um ferimento no seu dedo. – Aiiiiiii! – gemeu ele, cortando o caule da rosa.

– Aqui está, meu amor! – entregou a rosa para Maria, com seu dedo indicador direito escorrendo sangue. – Ah, isso...foi apenas um espinho, vou ficar bem.

– Cuidado! Não queria que se machucasse.

– Não foi nada.

Maria olhou com ternura para Eduardo e em seguida para a rosa, sentiu o delicioso aroma que ela exalava e, ficando novamente de braços entrelaçados, voltou a caminhar. Não andaram cem metros, Maria de repente sentiu-se mal e desmaiou. Eduardo entrou em desespero.

***

Com a ajuda de um homem de meia idade, que passava naquele momento no seu carro, conseguiram levar Maria para a mansão. Ao chegarem, colocaram-na diretamente na cama, Rita tentando reanima-la com álcool no nariz dela. Nada da moça acordar. Ficou inconsciente por horas, abrindo os claros olhos apenas no final da noite e trazendo alegria para aqueles quatro.

– Minha filha, que susto você nos deu! – disse Rita, chorando. – O que sente? Quer ir para o hospital?

– Não, mãe, estou bem...- respondeu Maria, a voz baixa quase num sussurro, a pele gélida. A linda moça sabia que a vida é só uma breve passagem. – Por favor, nos deixem a sós, queria conversar com o Eduardo.

Álvaro olhou de relance para Rita e Vitório, e saíram do quarto em seguida. Eduardo, que estava o tempo todo impaciente e preocupado, sentou-se na beirada da cama, ao lado dela, pegou nas suas mãos e disse:

– O que foi, meu amor?

– Quero te pedir uma coisa, Eduardo. – falou ela, a voz doce e angelical. – Sinto que estou partindo. Dessa vez não passa. A dor de cabeça agora percorre meu cérebro inteiro e não cessa. Por favor, nunca se esqueça de mim e me prometa que serás muito feliz. – as lágrimas de ambos escorriam feito cachoeiras.

– Não fale uma besteira dessas, meu amor, você vai ficar bem, vai se curar, e logo logo ficaremos juntos, constituiremos uma linda família...

– Eu te amo...- Eduardo curvou-se e lhe deu um beijo demorado na boca, exprimindo todo seu amor. – Te amo, Eduardo, te amo... – Maria, de olhos abertos, vidrados, seu corpo ficou sem pulsação e sua pele estava tão fria quanto gelo.

– NÃOOOOOOOOOOO - berrou ele, pondo a mão suavemente no rosto dela e fechando seus olhos. – Não vá, Maria, não vá!

Álvaro, Rita e Vitório romperam no quarto e encontraram Maria dormindo eternamente e Eduardo descontrolado. O rapaz foi consolado pelo pai. Rita e Álvaro se abraçaram e também começaram a soluçar de tanto chorar.

Após Rita chamar a funerária, o corpo de Maria era velado em um caixão marrom escuro na sala de estar, com o vestido rosa de bolinhas brancas que ela usava horas atrás.

Poucas pessoas compareceram na cerimônia fúnebre, incluindo alguns ex-funcionários da fazenda, e o então prefeito da cidade, acompanhado do seu filho Ian Jordan e da primeira dama.

Algumas amigas de Rita também se fizeram presentes, mas não demoraram, apenas deram as condolências ao casal Lacerda e foram embora. Rosa soube através do rádio do falecimento da filha da ex-patroa, o que a motivou a levar uma coroa de flores brancas e entregar para Álvaro.

– Lamento, senhor Lacerda. Ela era tão jovem, tinha um futuro inteiro pela frente. – disse Rosa.

– Obrigado, Rosa. – agradeceu ele, entre soluços.

Eduardo estava sentado ao lado do caixão e chorava muito, hora por outra tocando e beijando as faces do defunto.

Não tinha mais pulmões e seu pranto já secara.

***

Acordei de repente. Vi algumas pessoas ao meu redor, algumas tocando no caixão, outras consolando meus pais e o Eduardo. Era tudo muito estranho. Eu podia me ver saindo e abandonando meu corpo físico, que continuava no caixão, inerte, sem pulsação. Fiquei parada no meio da sala por instantes, não sei ao certo por quanto tempo, as pessoas esbarravam em mim, atravessavam meu corpo translúcido e não me viam! Era desesperador.

O que estava acontecendo? Fui até Eduardo dizer que eu estava ali, com ele, dizer que estava tudo bem, mas parecia que ele não me via nem me ouvia, continuava chorando como se eu não fosse mais voltar. Será que não ia mesmo?

De repente, senti meu corpo flutuando centímetros, metros do chão, pude ver meu corpo carnal de um ângulo alto, estirado num caixão... Eu havia morrido?

Subi, subi cada vez mais alto, vi a cidade de São Paulo inteira de cima e apaguei...

Quando retomei meus sentidos, estava no lugar mais lindo do mundo. Não sabia onde era, mas tinha uma energia

magnífica. Um campo verdejante, com flores de todas as cores, formas e tamanhos, a perder de vista no horizonte. Uma forte luz vinha ao norte. Ouvi uma voz conhecida, quando dei por mim, braços me abraçaram...

Era Ana, a mulher que vi em vida nas minhas visões, se bem que não sei se era visão.

– Seja bem-vinda, Maria. Como te disse uma vez, sua missão chegou. – disse ela.

– Onde eu estou? Eu morri? – perguntei, assustada.

Estava vestida com um manto branco enrolado no meu corpo, idêntico ao de Ana.

– Você não está mais na terra, estamos no Paraíso, onde viveremos na eternidade, minha querida.

– Ahhh! – exclamei, assustada. Eu era tão jovem para já ter partido tão cedo, não pude desfrutar de nada na terra. – Então...aqui onde estamos não tem mais volta? Quer dizer, e o tal do purgatório citado na bíblia?

– Seus pecados foram pagos na terra, Maria. Aqui não existe dor.

Começamos a caminhar na direção da luz. Ela segurava minha mão. A medida que avançávamos na contraluz, pude notar vultos indistintos ao longe, mas que iam ganhando forma

quando nos aproximávamos. Muitos espíritos estavam lá conosco. Não consegui identificar ninguém conhecido. Será que nem todo mundo vinha para cá?

– Para onde estamos indo? Essa luz está me cegando...- observei.

– Quero te mostrar uma coisa...

A luz ficava cada vez mais forte, as pessoas que eu vi olhavam para mim sorridentes, dando-me as boas-vindas. Não sentia fome nem sede, nem desejos carnais nem quaisquer sentimentos que provariam que estava viva. Era simplesmente mágico, inexplicável. De onde vinha a luz, ouvimos uma voz masculina. Era a voz mais terna e doce que já ouvi, uma mansidão que dava gosto de ouvir.

– Seja bem-vinda, minha filha.

– Obrigada! – agradeci com um sorriso.

– Sabe quem é? – perguntou-me Ana, aguardando uma resposta imediata.

– Hum...Deus? Nosso pai, criador de tudo? – respondi prontamente.

– Exatamente. Sou Deus, vosso pai e criador de tudo.

Você foi uma filha exemplar, Maria, desculpe trazê-la tão cedo...

– Se foi seu entendimento, Pai, eu aceito. – disse. Percebi que Ana deu um sorrisinho em concordância a minha resposta.

– Tens a missão de proteger os que te amam lá, na terra, e prepara-los para chegarem aqui.

– Meus pais e meu namorado também vão morrer? Não é justo, pai...- lamentei. Não aceitava aquilo com eles.

– Todos vão morrer, minha filha, ninguém na terra é eterno além de mim, que criei tudo, ninguém. Ainda não chegou o momento deles, mas um dia, quando você não notar a passagem do tempo e do espaço, eles chegarão aqui e é preciso que você os receba.

– E o que garante que eles virão parar aqui? – quis saber.

– O arrependimento de vossos pecados.

Um silêncio repentino. Ana continuou a me puxar para mais longe, aonde não pude mais ver aquelas pessoas que outrora vi. De repente, nas margens do horizonte além da forte luz, vi uma fenda soturna, um abismo sem fim que mais parecia tragar o infinito. Quem quer que caísse ali, não voltaria pelo resto da eternidade. O abismo parecia ter vida própria, aparentemente tragando pessoas para seu interior malevolente.

Ouvi vozes clamando por ajuda, milhares, milhões delas, ao

mesmo tempo. Lavas de vulcão explodiam de dentro expelindo fumaça e odor de enxofre na superfície onde estávamos. Pude notar de longe que haviam muitas pessoas que conheci na terra, incluindo uma antiga empregada da minha casa. Todos que estavam lá se debatiam de dor e imploravam para sair daquele agouro.

– Aqui é a entrada do inferno. – disse-me Ana. – Quem entra aqui não volta mais.

– Lá é mais bonito. – apontei para trás, onde estávamos há pouco.

– Sim, Maria.

Nos afastamos daquele abismo sepulcral. Percebi que no Paraíso também tinha animais: aves voando para todos os lados, cavalos correndo, leões brincando com veados, coelhos, era uma variedade gigantesca.

– Ana, Deus nos disse que eu tinha que receber os que me amam quando chegarem aqui.., mas, e se por acaso, eles não vieram para cá? – indaguei, sentindo certa preocupação.

– Não tenha que se preocupar com quem vem para cá ou quem não se arrepende e vai para lá, - apontou ela para o abismo. – Você fez sua parte, Maria, a salvação é individual.

Exatamente, minhas filhas. – a voz Dele interveio. – Não importa a gravidade do pecado, o que importa é a sinceridade do arrependimento.

Porque não consigo vê-lo? – perguntei. – O Senhor é invisível?

– Minha voz basta para orientar meus filhos, não importa a minha forma. E ela ecoa em todos os lugares ao mesmo tempo.

Um homem vestido de branco estava caído na grama alguns metros de onde estávamos. Deitado, ainda desorientado, tentava se levantar, ficou em choque quando percebeu onde estava e eu mais ainda quando o reconheci: era o meu pai, Álvaro. Tinha a aparência de um idoso, o que percebi que muitos anos haviam se passado na terra após minha partida.

Seja bem-vindo, pai. – falei, abraçando-o afetuosamente. Ele olhou para mim e Ana, incrédulo.

– Obrigado. Estou...morto? É isso? – perguntou ele. – Ana?

– Estamos no Paraíso, Álvaro.

Eles se olharam estranhamente, como se houvesse algo mal resolvido em vida.

– Rita me matou. – falou Ana.

– Sofri muito com sua ausência, Ana. Eu e o Vitório.

A voz divina voltou a ecoar em nossos ouvidos:

– Maria, não sou de conceder isso a muitas pessoas, nem mesmo aos mais puros, mas, assim como concedi a Ana uma aparição a você em vida, na terra, concedo a você uma ida rápida e visitar uma pessoa. Ele precisa de um consolo e você pode acalentá-lo.

***

Fechei os olhos e, quando abri, estava no quarto de Eduardo. Ele estava muito magro, quase cadavérico, muitas garrafas de cerveja espalhadas pelo quarto. Estava sentado na cama, orando. Seus olhos profundos e úmidos revelaram que não se conformava com minha partida e a de Álvaro. Pela sua aparência, uns quinze ou vinte anos se passaram, agora estava rabugento, depressivo.

Aproximei-me dele e sentei-me ao seu lado, na cama.

– Senhor, porque fizeste isso comigo? Porque tiraste o grande amor da minha vida e daquele que ajudou minha família? – orava como se o próprio Deus estivesse ali no quarto. E na verdade, estava.

– Eduardo, meu amor, não chore. Tudo ficará bem. – falei, pegando nas suas mãos.

– Não pode ser? – ele se assustou de tal forma, que quase gritou. – Maria? É você mesma ou estou tendo alucinações devido a bebida?

– Sim, sou eu. Pelo visto, você não aceitou minha partida.

Estou bem, Eduardo, você também ficará.

– Porque Deus te levou tão cedo? – ele chorava feito criança mimada. – Depois que você se foi, nunca mais fui o mesmo, nunca mais soube o que é alegria.

– Por favor, não diga isso. Entristece-me ouvir que você contesta os planos de Deus.

– Mas é verdade. – continuou ele. – Fiquei aqui, nessa casa, sozinho. Meu pai fugiu com a desgraçada da sua mãe sei lá para onde, o que ocasionou a morte do seu pai.

Espero que não cause a sua também. Não está na sua hora ainda. Lembra o que te pedi quando eu estava viva?

– Para que eu seja feliz. – respondeu ele de pronto. – Mas como serei feliz sem você, como? – Eduardo levantou-se da cama, foi até o guarda-roupa e pegou um revólver escondido entre suas roupas. Apontou para si próprio, na direção da testa, e

disparou. Fechei os olhos novamente e me desesperei quando os abri.

***

– Eduardo? Eduardo? – eu gritava a plenos pulmões a procura dele no gigantesco e infinito jardim. – Cadê você, meu amor?

Infelizmente, Maria, meu filho não veio para cá. – respondeu Ana.

– Não me diga que ele foi para o... – apontei na direção do abismo adiante.

– Não. Ele vai vagar na terra pela eternidade. – disse Álvaro. Muitas pessoas se aproximavam de nós, solidárias. – A não ser que... ele ganhe uma segunda chance de fazer diferente.

– Como assim? É possível ele ainda vir para cá passar a eternidade no Paraíso? – eu estava incrédula com o que Eduardo fez consigo mesmo.

Sim, minha filha, eu posso dar outra chance a ele. E acho que você será imprescindível para que isso aconteça.

– Como, meu pai? Está falando de reencarnação? – indaguei.

– Isso. – respondeu a voz. – Ele renascerá em outro corpo e se encontrará com você. Terão que vir juntos.

***

Um clarão riscou o céu igual uma estrela cadente numa noite escura, e sabe-se lá como, aquela luz caiu em algum lugar na terra. Foi vista por centenas de pessoas, mas só Janice, que estava grávida de nove meses, ficou tão impressionada.

No documento Mil vezes te amarei (páginas 40-57)

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