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Mil vezes te amarei

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Academic year: 2022

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Mil vezes te amarei

Patrick Sousa

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Impossível não agradecer a quem me concedeu todos os dons essenciais, nosso Deus. E, claro, aos nossos leitores.

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Dedico esta obra, em especial, a minha avó materna, Teresa Romana da Rocha – In memoriam, uma das pessoas mais doces, sábias e bondosas que já conheci. Estendo minha dedicatória a minha mãe Remédio, minhas irmãs, meus sobrinhos, primos, tios, avôs, avós, amigos e leitores. Sem o apoio e carinho de vocês, seria impossível eu continuar escrevendo.

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Apresentação

Vivemos em um país arredio, que não valoriza nossa cultura e nossa arte, de forma geral. Mas não é por isso que baixo a cabeça. Insisto e persisto em continuar a escrever o que gosto e levar alguma mensagem a quem necessita através das minhas histórias. Esse livro é especial por trazer uma nova faceta que ainda não conhecia e não sabia existir em mim.

Adoro contar histórias de amor, recheadas de suspense, encontros e desencontros, mas essa, quando terminei de escrevê- la, surpreendi-me com tamanha sensibilidade e leveza. Faço, aqui, algumas reflexões acerca da nossa existência, dos nossos valores intrínsecos, do que realmente é importante e dos sentimentos por vezes silenciados por circunstâncias da vida. No mais, só resta-me desejar uma excelente leitura.

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Eduardo e Maria, janeiro de 1930, São Paulo - SP

Nos idos de 1930, numa São Paulo pouco industrial e com forte apreço à atividade agrícola, numa vila ainda em desenvolvimento, viviam um casal de camponeses. Seu Vitório Aquino e sua esposa, Dona Ana Vilela, trabalhavam nas lavouras de café de sol a sol, tentando algum sustento e meio de sobreviver, tendo em vista a grave crise econômica que o país enfrentava. Era um período difícil tanto na economia quanto na política.

– Cuidado, amor, você não pode pegar muito peso. – disse Vitório, um homem alto, de aproximadamente 30 anos, pele branca e forte. – Não quero que perda mais esse bebê.

– Pode deixar, meu bem. – respondeu Ana. Ela estava grávida de seis meses, provavelmente um menino, não sabia-se ao certo, pois naqueles tempos não existia ultrassonografia. Já havia tido dois abortos espontâneos e não conseguia segurar uma gravidez por mais de seis meses.

Estavam no campo, num enorme cafezal, colhendo e selecionando os melhores grãos. Trabalhavam para um rico fazendeiro, chamado Álvaro Lacerda. Ele era casado com uma

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sinhá, chamada Rita Velasques e também seriam pais. Rita estava grávida de seis meses.

Nas suas visitas cotidianas ao cafezal, para observar a produção e colheita do café, de longe, Álvaro avistou a pobre mulher carregando um cesto enorme e pesado de madeira na cabeça, lotado de grãos de café.

– Meu Deus, quanta loucura, senhora? Quer perder o bebê? A senhora não pode trabalhar mais aqui, no pesado. - disse-lhe Álvaro, ao se aproximar do casal. – Por favor, vá para a fazenda e descanse lá até seu filho nascer. Minhas empregadas cuidarão da senhora e do seu filho até que possa voltar ao trabalho.

– O senhor está falando sério? – indagou Vitório, desconfiado. – Um nobre dono de fazenda nunca foi generoso com seus súditos...

– Eu sou diferente, meu caro. Sou humano e me solidarizo com os mais pobres.

– Então, senhor, se for verdade, aceito. Já sinto as dores do parto. – falou Ana. Vestia um vestido branco muito sujo e rasgado, suas feições sofridas e de quem labutava na roça realçavam sua beleza rústica.

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– Venha, é por aqui. – Ana seguiu o formoso dono da fazenda e sumiram no horizonte. Vitório permaneceu colhendo café entre as espessas folhagens das plantas. A cada grão colhido aumentava sua desconfiança. Seu Álvaro Lacerda era um quarentão que despertava a libido de qualquer mulher, forte, alto, boa pinta e rico. Muito rico.

Ana chegou à sede da fazenda acompanhada do patrão, ainda meio cambaleante. Fora recebida por duas empregadas negras, que a levaram-na para um quarto de hóspedes grande e espaçoso. Claro que elas estranharam tal atitude do patrão, pois não era do seu feitio fazer isso por súditos. Estava claro que havia algum interesse sexual e amoroso no caso. Álvaro sempre fora um homem raparigueiro e namorador mesmo após casar-se com Rita. O incomum nesse fato é que ele antes nunca havia se envolvido com empregadas.

– Pobre moça. – comentou tristemente uma das empregadas negras ao sair do quarto de hóspedes. – Mal sabe ela com quem está se metendo.

– Você não tem nada a ver com isso, Amparo. - sussurrou a outra mulher. – Se o patrão, ou pior, a patroa ouvir algum comentário seu, estaremos na rua! – disse ela rangendo os

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dentes de raiva. Não gostava da maneira intrometida da amiga e colega de trabalho. Presava muito por o seu posto na mansão do Senhor Álvaro.

– Tá bom, juro que não faço mais!

Prepararam um banho quente e levaram uma sopa de abóbora para a mulher hospedada na mansão. Quando Amparo ia para o quarto de hóspedes com o prato de sopa quente nas mãos, foi interceptada por Rita, que estranhou o nervosismo da empregada.

– Para onde pensa que vai levar essa sopa, Amparo? – perguntou Rita, os olhos faiscantes.

– Para a empregada que o Senhor Álvaro trouxe para hospedar-se aqui, senhora. – respondeu ela.

– Que história é essa? – Rita estava ainda mais encabulada.

Ambas entraram no quarto de hóspedes. Ana estava deitada na confortável cama de casal, vestida com um pijama que outrora pertenceu a Rita.

– Quem é você? Quem te trouxe aqui, serva? – Rita não escondia seu ódio na voz.

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– O patrão...Seu Álvaro. Ele disse que eu podia ficar aqui até ganhar meu filho. A senhora deve ser a esposa dele, se não estou enganada...

– Certíssima, sou a esposa dele. E ele não me pediu permissão para abrigar empregados na nossa fazenda!

– Desculpe se incomodo, se desejar, vou embora agora mesmo. – Os olhos de Ana lacrimejavam. Nunca fora tão humilhada.

– Não precisa!

Uma voz masculina ecoou ao fundo. Era Álvaro entrando no quarto.

– Ela vai ficar, sim, até ganhar neném. – enfatizou ele. – Desculpe-me não ter te comunicado, amor, é que a vi carregando um cesto pesadíssimo de café e não me contive. Ela é um ser humano e precisa de um mínimo de dignidade.

– Não sabia que agora você fazia caridade aos seus empregados. Mas...se insiste, ela fica, então. – Rita fulminou Álvaro com seu olhar de desprezo e retirou-se.

Estava nítido sua antipatia e raiva por a empregada, pois Ana era mais bela, mais doce e meiga que Rita, ou melhor, tinha todas as qualidades que a sinhá não possuía e, obviamente, despertara a ira da rival.

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– Como você está no seu novo aposento? – perguntou Álvaro, curioso. – Desculpe-me pela minha esposa, ela não está acostumada com a presença de empregados na casa...

– Muitíssimo grata. Aqui é bastante confortável, nem nos meus melhores sonhos imaginaria estar num local assim. – disse Ana. A moça não imaginava os problemas que aquela estadia repentina pudesse provocar.

– O que precisar, basta comunicar a mim ou a qualquer uma das empregadas da casa. – Álvaro não evitou um sorrisinho malicioso e retirou-se do quarto, desejando boa noite e um bom descanso.

Ana retribuiu o sorriso. Amava por demais o marido, nunca discutiu com Vitório, mas percebeu que seu patrão, Álvaro, estava demasiado interessado nela. Sabia que era uma mulher jovem e atraente e que era capaz de envolver-se com qualquer nobre da alta sociedade paulistana. Seu filho estava prestes a nascer e, por alguns instantes, cogitou tirar proveito daquela situação, sendo recíproca com o sentimento interesseiro de Álvaro.

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***

– Eu também estou grávida e, mesmo assim, você nunca me tratou tão bem o quanto vi tratando aquela sirigaita suburbana. – bradou Rita, a plenos pulmões, quando Álvaro entrou no quarto. Estava tensa e nervosa. – Porque você fez isso, porque?

– Por que eu quis, sou o dono dessa fazenda, dessa casa, de tudo. Eu mando aqui e você não tem nada a ver com isso, entendeu?

– Está apaixonado por ela, não é? Seus olhos de peixe morto não me enganam, eu vi um brilho neles quando você olhava para ela. – Rita soltou seu triunfo. – Mas... eu logo te aviso: VOCÊ VAI PAGAR CARO POR ESSA ATITUDE, MUITO CARO! É um constrangimento para a alta sociedade.

Álvaro deu uma risada irônica.

– Deixa de ser ridícula, Rita! Nunca nem me passou pela cabeça envolver-me com ela. Tá bom, admito...ela bonita e atraente, sim, mas sou casado com você, e, apesar de nossas brigas, eu te amo e serei pai de uma filha sua.

– Ah, então você confessa que sente atração por essa pobretona infeliz? – As lágrimas que brotaram dos olhos de Rita

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eram de puro ódio. Não suportava perder ou ser contrariada por ninguém. – EU TE ODEIO! – esbravejou, pegando um abajur de cristais e jogando contra Álvaro, no entanto, ele desviou e a peça atingiu a porta, estilhaçando em milhares de cacos.

– Quer saber, vou dormir na sala. – disse Álvaro nitidamente nervoso. – Você surtou, saiu de si, enlouqueceu. – pegou um travesseiro e um edredom e foi para a sala, dormir no sofá.

– Amparo, você ouviu esse barraco? Acho que os patrões brigaram por causa daquela empregada do cafezal que instalou-se aqui. – comentou Rosa, a outra empregada da casa.

Dormiam num cômodo ao lado do quarto do casal dono da mansão

– Ouvi sim, e parece que a coisa foi feia. – respondeu Amparo. – Vou tomar um gole d’água ´na cozinha, você quer?

– Sim, por favor.

Amparo foi à cozinha e, no caminho, deparou-se com Álvaro deitado desconfortavelmente no grande sofá da sala.

Roncava muito e estava num sono profundo. Foi sensata em não fazer barulho e acordar o patrão. Passava das dez da noite, naquela época, era comum as pessoas dormirem cedo. Ela

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apenas continuou seu trajeto até a cozinha, bebeu sua água e retornou a seu quarto.

– Meu Deus, o patrão está dormindo no sofá da sala! – exclamou Amparo ao voltar para o quarto. – Em vinte anos que trabalho aqui, essa é a primeira vez que presencio essa situação deplorável.

– Certamente foi por causa da tal da Ana. – afirmou Rosa.

– Não tenho dúvidas.

O dia amanheceu ensolarado. Às seis horas, o café da manhã estava posto à mesa. Álvaro tivera uma noite maltratada e mal dormida, mas já encontrava-se sentado, tomando seu rotineiro café com leite e comendo tapioca com carne seca e ovos mexidos. Ana apareceu na sala, sentou-se à mesa e fez companhia a Álvaro.

– Bom dia. Dormiu bem? – indagou Álvaro.

– Sim, obrigada. E o senhor? – Ana reparou que uma cara de cansaço e olheiras surgiam das faces do patrão.

– Mais ou menos... – respondeu ele.

– Ora, ora, ora...acordaram deveras cedo, né?! – provocou Rita, sentando-se e servindo-se de café. – Dormiram bem? – debochou ela.

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Ana fez menção de retirar-se, mas foi impedida por Álvaro.

– Fique, por favor, faço questão. Você precisa alimentar- se bem, senão seu filho não nascerá saudável. – interpôs ele.

– O.k. Se ela não sai, saio eu. – Rita escancarava cada vez mais seu ódio. Já não escondia sua antipatia por Ana e precisava agir imediatamente, antes que fosse tarde demais.

Naquele dia, as horas passaram voando, talvez num ritmo mais rápido que o normal. Nada de extraordinário aconteceu... No fim da tarde, quando o sol quase se punha, Vitório bateu na porta da mansão. Não tardou muito e Amparo foi abrir.

– Pois não? – disse a empregada com seu uniforme xadrez.

– Gostaria de ver minha esposa que está reclusa nessa casa, senhora.

– Ah, então o senhor é o marido de Ana? Hum... Vou chamá-la...mas, quer um conselho? – a malícia percorreu o olhar da empregada. – Sua mulher talvez não queira mais voltar para sua casa... ela está sendo muito bem tratada pelo patrão, até melhor que a mulher dele. Ontem mesmo eles tiveram uma

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briga feia motivada por ciúmes...sua esposa está despertando algum sentimento no Seu Álvaro.

– Não fale sandices, negra. – Vitório não disfarçava sua raiva ao ouvir aqueles comentários de Amparo. – Minha esposa me ama e jamais me deixaria por quem quer que seja. Serei pai de um filho dela.

– Fico feliz em saber que você tem tanta segurança de si.

– o olhar de Amparo demonstrava satisfação, diante de tal comentário, e saiu para comunicar a vinda do marido de Ana.

Em menos de cinco minutos, Rita foi quem apareceu.

– Hummm...prazer em conhecê-lo, empregadinho. – a mulher trajava um longo vestido vermelho de tecido nobre. – Então você é o marido da sirigaita que meu marido colocou na minha casa?

– Sim, sou o marido de Ana, mas ela não é nenhuma sirigaita. É uma mulher trabalhadora e guerreira. – a paciência de Vitório estava por triz. – Cadê Ana, vim vê-la, saber como está? Não vim ver você.

– Desaforado com seus patrões, hein! Isso pode custar seu emprego, sabia? – Rita estava se divertindo em humilhar Vitório.

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– CADÊ MINHA ESPOSA? – Vitório aumentou o tom, quase berrando. – Vou invadir essa casa e levá-la comigo imediatamente!

– Que escândalo é esse? – Álvaro apareceu, com uma voz dominadora.

– Esse empregadinho, marido da suburbana, está quase me insultando, amor.

– Eu? Insultando a senhora? Ela é que chamou minha esposa de sirigaita e suburbana e ainda ameaçou-me de demissão. – justificou Vitório.

– Que vergonha, Rita. Ando te desconhecendo. Aprenda a se portar como uma dama da alta sociedade paulistana. – falou Álvaro. – Vou chamar sua esposa, rapaz, só um momento. – e saiu puxando Rita violentamente pelo braço, quando estava a certa distância da porta, jogou-a com força no sofá e disse:

– Nunca mais maltrate algum empregado ou faça qualquer coisa que me desagrade, entendeu?

Rita apenas o encarou, tramava um plano diabólico e foi para seu quarto.

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– Oi, amor, que bom vê-lo, já estava com saudades! – disse Ana quando avistou Vitório. Ia dando um abraço quando Vitório despejou tudo que estava preso na garganta.

– Mentirosa! A empregada e a esposa do patrão contaram- me que ele está apaixonado por você, e, pelo visto, você também está!

– Do que você está falando? Pirou, foi? – Ana começou a chorar. – Apenas aceitei vir para cá para dar um parto digno ao nosso filho e porque você não fez nenhuma objeção a isso.

– Olhe nos meus olhos e diga que não sente nada por Seu Álvaro.

– Não vou me submeter a esse papel ridículo por que você sabe que não sinto nada por ele nem por ninguém a não ser por você.

– Eu não vou suportar te perder, meu amor, vocês são tudo que tenho. – Vitório acariciava a enorme barriga de Ana. – Me perdoe por meu ciúme infundado.

– Tudo bem, esquece. Podia não perdoá-lo porque você duvidou de mim e preferiu acreditar nas baboseiras de gente mal amada e desocupada. – Ana foi sincera na resposta. – Agora, se me permite, vou me recolher, essa conversa me deixou tensa. Te

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amo. – e beijou-o suavemente na boca, entrando em seguida na casa.

Vitório permaneceu ali, no hall de entrada, por uns cinco minutos, refletindo sobre aquela visita vexatória. Causou-lhe arrependimento de ter ido visita-la e ter deixado sua esposa hospedar-se na casa de um estranho. Confiava na esposa, mas sabia que as mulheres sonhavam alto e com deslumbres que um pobre colhedor de café não podia ofertar, e com Ana não seria diferente. A partir daquele dia, nunca mais voltou a visitar a esposa, apenas mandava cartas que nunca eram entregues a Ana;

Amparo ou Rosa faziam questão de queimá-las.

Três meses passaram-se, numa tarde anormalmente nublada de março, coincidentemente Ana e Rita sentiram fortes dores. Já estavam em trabalho de parto. Amparo era conhecida na região como uma excelente parteira e foi convocada por Álvaro para trazer ao mundo o filho dele e o de Ana. As duas mulheres foram colocadas num quarto ocioso, que não era o de hóspedes, e tanto o fazendeiro, quanto Rosa, a outra empregada, levaram várias bacias com água e lençóis brancos e deixaram as duas mulheres sentirem as contrações do parto deitadas em duas camas.

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Ambas urravam de dor. Primeiro, nasceu o filho de Ana.

O bebê não demorou para sair do útero dela, estava todo ensanguentado e chorava muito, a procura do peito da mãe para mamar. Em seguida, nasceu a filha de Rita, também muito ensanguentada, mas pouco suja de sangue. Foram logo lavados com água e postos em lençóis limpos, macios e quentinhos. Rita também amamentou sua filhinha. Parecia uma bonequinha.

Graças a Deus, nasceram fortes e saudáveis, sem complicações para cortar o cordão umbilical.

Álvaro pediu para Rosa avisar a Vitório sobre o nascimento do seu filho e ela foi imediatamente, retornando acompanhada do colhedor de grãos de café. Ele estava emocionado ao ver o filho recém-nascido, pegou-o nos braços e afagava carinhosamente.

– Vai se chamar Eduardo! – anunciou Vitório.

– E a minha filha vai se chamar Maria. – disse Álvaro, também segurando nos braços sua filha.

As mulheres que acabaram de parir as crianças estavam deitadas nas camas, exaustas e conscientes. Os partos, apesar de serem normais, não foram utilizados anestesia, coisa que naquela época não existia ainda Amparo e Rosa preparavam as mulheres para darem banho...

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***

Uma semana após o parto, Vitório e Ana continuavam na mansão de Álvaro.

– Meu caro, sua esposa não está em condições de voltar a trabalhar ainda. Aconselho a permanecer sobre minha tutela por, pelo menos, mais três semanas até a criança completar um mês, mas você...já pode e deve voltar a trabalhar! – a conversa entre Álvaro e Vitório aconteceu na biblioteca, na presença de Rita e Ana.

– Não sei se aceito... mas acho que é o certo! – disse Vitório.

– Claro que é o certo, rapaz! – interpôs Álvaro. – Não se preocupem, darei uma quantia extra além da produtividade que você fez nesses últimos meses. Será o suficiente para viverem bem por pelo menos dez anos!

Rita deu um grunhido indiscreto. Álvaro arregalou os olhos e mirou imediatamente para Ana.

– Não, não! Não posso aceitar! – reagiu Ana.

– Relaxa, senhora, darei por achar que vocês merecem, mas não se preocupem, vocês não me deverão nenhum favor futuro. – argumentou Álvaro.

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Ele foi até um quadro, na parede, de uma paisagem bucólica, certamente de Picasso, onde havia um cofre escondido. Rodou a engrenagem da combinação secreta e destravou a pequena porta maciça de aço, revelando uma fortuna em dinheiro e joias.

Todos arregalaram os olhos diante de tanto dinheiro, nem Rita escondeu seu deslumbre. Retirou de dentro do cofre uma generosa quantia em dinheiro, colocou numa maleta de couro e entregou a Vitório.

– Quinhentos mil réis. Não gastem à toa. – disse o patrão, generosamente. – São suficientes para darem um bom estudo ao garotão de vocês.

Vitório pegou a maleta, ora desconfiado, ora feliz, e agradeceu:

– Muito obrigado, senhor. Realmente, tem sido muito generoso conosco, até mais do que merecemos. – uma lágrima indiscreta escapou dos olhos de Vitório.

– Não há o que agradecer, meu caro. Você e sua esposa são muito competentes e trabalhadores. – Álvaro disse, gesticulando. Pegou um charuto cubano na gaveta da mesinha, ascendeu e sentou-se frente a todos. – Sabem, aprendi com meus pais que, quando se tem alguma coisa mais que os outros, – deu

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uma longa baforada no ar – é bom compartilhar com quem não tem. Deus sempre abençoa corações bondosos. E é isso... Faço de coração. Agora, se me derem licença, preciso ir ver minha filha. – e saiu da biblioteca seguido por Rita nos seus calcanhares.

Dias depois, quando jantavam na sala de estar, Álvaro passou a mão por debaixo da mesa e apalpou as cochas de Ana.

Comiam uma deliciosa sopa de legumes. Entretida com seu prato e um tanto sem apetite, Rita não percebeu o gesto ousado do marido. Ana não pode defender-se nem reclamar, esse seria o preço de tanta consideração.

– Terminei. Estou exausta, vou amamentar Maria. – Por mais contrariada que estivesse Rita em deixar os dois a sós, realmente sentia-se cansada. Não imaginava que ser mãe requisitava dela muita atenção e cuidados. Retirou-se olhando para trás até chegar ao final do corredor que dava acesso a seu quarto.

– Enfim, a sós! – festejou Álvaro, terminando de degustar sua sopa. – Não preciso mais esconder que te desejo, né? Acho que você já sabe.

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– Olha, senhor Lacerda, agradeço profundamente tudo que vem fazendo por minha família, mas, se por acaso, achares que vou retribuir traindo meu marido, estás perdidamente enganado. – o tom de Ana era grave e sério.

– Só um beijo e mais nada. Por favor... – implorou ele com voz manhosa. – Juro que a deixarei em paz.

Por um momento, Ana pareceu pensar na possibilidade de sair da zona de perseguição de Álvaro e Rita. Segundos depois, ela respondeu:

– Tudo bem, só um beijo.

– Mas não pode ser aqui, tem que ser no seu quarto, as empregadas ou Rita podem nos flagrar. – ele levantou-se da cadeira, puxou a dela e foram para o quarto de hóspedes silenciosamente. Trêmulos e afoitos, entraram no amplo quarto e começaram a se beijar.

Era para ser só um beijo libertador e descompromissado, mas transformou-se numa noite inteira de muito sexo e juras intensas de amor no pé do ouvido, tendo como testemunha choros intermitentes do pequeno e inocente Eduardo. Quando, por fim, Álvaro foi para seu quarto, após um gozo proeminente, o dia já estava quase amanhecendo.

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Entrou discretamente e, por pura sorte, encontrou Rita e Maria, sua filha recém-nascida, dormindo. Bateu um certo remorso momentâneo, mas sabia que seu casamento há tempos estava abalado. Deu um beijo terno nas têmporas da esposa e da filha e deitou-se ao lado delas, na cama de casal.

***

A vida ia seguindo seu curso normal, conforme o roteiro escrito por Deus. Rita desconfiava, embora não tivesse certeza, que, naquela noite que deixou seu marido a sós com sua arquirrival, eles haviam transado. Fingia demência, pois percebeu que o melhor era atacar na surdina.

Já havia quase completado o período de Ana deixar a mansão e voltar para sua casa. Na tarde às vésperas de sua partida, era quase que um refúgio contemplar a vista da sacada do segundo andar da mansão, de uma São Paulo que crescia rapidamente ao redor, revelando o poder do império do café e do desenvolvimento industrial.

Ela tomava uma xícara de café, deixou Eduardo aos cuidados de Rosa após tê-lo amamentado. Se encantava

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facilmente com qualquer coisa que passasse na rua, seja os automóveis ou o zunido do bonde. Debruçou-se no corrimão para olhar o trem, que passava ao fundo, bem longe dali, e foi surpreendida com a presença quase mágica de Rita. Esta a empurrou sem nenhum pudor, causando a queda de Ana do segundo andar, mais de 5 metros de altura, ocasionando fatalmente sua morte. O corpo dela jazia no chão, lá embaixo, envolto numa poça enorme de sangue. Provavelmente quebrou o pescoço.

Rita não conteve sua felicidade, e voltou rapidamente para seu quarto, pegou Maria e começou amamentá-la mesmo sem a criança sentir fome, precisava de um álibi.

Não demorou quase nada, quando ouviu gritos de desespero vindos de fora. Eram Rosa e Amparo anunciando encontrar Ana morta no chão no hall de entrada. Tudo apontava para um acidente, uma fatalidade...

***

Vitório foi comunicado do estranho falecimento da esposa e não tirava da cabeça que pudesse ter havido o envolvimento de Rita. Estava arrasado, agora criaria o filho

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sozinho na sua residência, reformada com o dinheiro doado por Álvaro. Ele e Álvaro fizeram uma cerimônia no velório, celebrada por um padre, seguido de um enterro modesto, no cemitério mais próximo da fazenda, com muitas flores brancas naturais destinadas à mulher que mais amaram na vida. Rita compareceu usando um vestido púrpura, contrariando o preto do luto, e não conseguia esconder seu sorriso triunfal.

– Não sei como viverei sem minha esposa. Tudo perdeu o sentido. – desabafou Vitório abraçado a Álvaro, ambos chorando. – Agora, só me restam as lembranças e nosso filho para eu criar sozinho...

– Não se desespere, rapaz, foi uma terrível fatalidade.

Deus há de confortarmo-nos. Também estou sem acreditar. – tentou consolar Álvaro.

– Não tenho mais forças para trabalhar, se não se importa, peço demissão.

– Como quiser. Mas, se precisar de qualquer coisa, estou às ordens.

– Irei morar no interior do estado por uns tempos, com meu filho. Quem sabe um dia eu volto para cá. – Vitório estava decidido.

– Quando pretendes ir? – indagou Álvaro.

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– Amanhã mesmo. Vou pegar o primeiro ônibus que vai para a Serra.

– Boa sorte. Que Deus vos abençoe. – desejou Álvaro com sinceridade e deu outro afetuoso abraço em Vitório e um beijo terno no pequeno Eduardo, que acabara de completar um mês de vida.

Rita, o tempo todo, sempre perto do marido, ouvindo a conversa entre os homens. Precisava dar continuidade a seu plano maquiavélico.

Na manhã seguinte, como havia prometido, Vitório partiu para a Serra com seu filho, Eduardo. Entraram num ônibus amarelo fosco, que seguiu viagem sem paradas, num trajeto exaustivo de cinco horas. Morar na Serra seria bom para eles, precisavam respirar novos ares e mudar suas vidas. E assim aconteceu...

***

O ano de 1950 chegou, após longos vinte anos de acontecimentos diversos, alguns bons, outros nem tantos.

Eduardo, filho de Vitório, agora era um rapaz cheio de vitalidade, alegre e extrovertido, encantava facilmente por sua

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simplicidade e era muito bonito: alto, corpo atlético (adorava nadar no rio Tietê e praticar corrida), cabelos pretos e curtos em um corte militar, pele branca porém bronzeada do sol.

Certamente herdara belezas de seus pais. Terminou o primário e ensino médio numa escola particular, mas o dinheiro acabou e viu-se obrigado a desistir de prosseguir nos estudos, ajudando, a partir de então, seu pai a descarregar mercadorias de uma transportadora – o que justificava também seu corpo avantajado para quem não malhava naquela época.

A vida humilde que levavam não desanuviava o sorriso contagiante e alinhado. Eduardo sempre ouvia seu pai elogiar sua mãe, relatando a quão batalhadora ela foi e revelou, certa vez, sua desconfiança do suposto assassinato. Sim, pois ele acreditava com veemência que Ana morreu atirada da sacada por alguém, provavelmente por Rita ou alguma das empregadas da mansão.

– Como Deus foi injusto comigo. – resmungou Eduardo com sua voz grave e máscula. – Não merecia ter perdido minha mãe de uma forma tão trágica.

– Não ponha a culpa em Deus, meu filho. Nosso pai celestial é maravilhoso.

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– Maravilhoso? – os olhos castanhos de Eduardo ameaçaram lacrimejar. – Vivemos nessa miséria, nesse barraco que você chama de casa, - olhou em volta para o casebre que moravam. - enquanto muitos estão ricos por aí, tendo vida fácil...

– Vida fácil é para bandido, para moleque que não quer trabalhar. – Vitório começava a perder a paciência com aquela discussão, já era um homem idoso de mais de 50 anos.

– Não quero mais morar aqui, nesse fim de mundo.

Quero morar na capital, arrumar um bom emprego, quem sabe até voltar para a fazenda de café.

– Você tem certeza disso, meu filho? Não achas que essa é uma decisão precipitada? – encararam-se seriamente por segundos, ambos decididos. – Se realmente quiser voltar para São Paulo, a gente volta.

– Quero sim. – finalizou Eduardo.

Estavam decididos, voltariam para São Paulo ainda aquela tarde, de trem. Pegaram a Maria Fumaça na estação principal que levava para a capital paulistana, um trajeto de quatro horas de viagem. Chegaram à noite, por volta das 22h. Hospedaram-se numa pousada modesta perto da antiga fazenda. São Paulo não

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era mais a mesma de vinte anos atrás, deixou de ser uma cidade provinciana, a população aumentou desordeiramente, de 60 mil habitantes em 1930, para quase 2 milhões em 1950. A economia não se baseava mais na agricultura e pecuária, a indústria se intensificou e o comércio estava cada vez mais competitivo.

Muitos automóveis da época circulavam nas ruas, o velho bonde ainda passava pelas manhãs e no fim da tarde. Era, de fato, outra cidade...

No dia seguinte, pela manhã, após pagarem a pernoitada na pousada, Vitório e Eduardo seguiram para a casa de Álvaro.

Vitório estava impressionado com as modificações que afetaram a cidade, o grande número de edifícios altos e enormes, avenidas, viadutos, praças... a iluminação pública, que duas décadas antes era feito por óleo de peixe vindo do Rio de Janeiro, agora era feita por eletricidade.

Onde era o plantio de café de Álvaro Lacerda, agora era um enorme edifício ladeado por uma avenida de mão dupla. A antiga mansão permanecia, porém não era mais um imóvel de requinte, que exaltava o poder do império do café de outrora.

Lembrava agora um prédio obsoleto, quase mal assombrado.

Vitório bateu na grande porta de carvalho. Uma mulher que ele conhecia bem as feições abriu.

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– Você? – o espanto foi de ambos. – O que faz aqui? Já não basta a fortuna que lhe demos para refazer sua vida e ainda veio pedir mais? Saiba que não temos como dar. – Rita envelhecera um pouco, não era mais aquela mulher bonita de antes e suas vestes demonstravam que não estava em boa situação financeira: sujas, surradas e velhas.

– Não tenho nada a conversar com você. – disse Vitório friamente. – Meu papo é com Seu Álvaro.

– Certo, vou chamá-lo... hum...suponho que esse é o Eduardo, seu filho. Cresceu, hein? Está formoso.

– Sim, porque?

– Mãe, quem está aí na porta? – a voz de uma moça ressonou de dentro da casa, despontando a dona da voz angelical. Era uma mulher linda, cabelos cacheados e loiros, corpo cheia de curvas e pele branca. Seus olhos e seu sorriso deixavam qualquer um hipnotizado.

– Não se intrometa, minha filha, não é assunto do seu interesse. – resmungou Rita. – Melhor ir para seu quarto.

– Hum...quem são? – Maria mirou certeiramente em Eduardo e este retribuiu o olhar. Um palpite reluziu no coração dos jovens.

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– Prazer, Eduardo. – apresentou-se ele, estendendo a mão direita. Ela pegou e apertou firme.

– Maria. – sorrisos meigos e bobos enfeitavam suas faces.

– Vá para seu quarto, Maria... – insistiu Rita.

– Vocês nasceram no mesmo dia, meu filho. Sua mãe morou durante um tempo aqui na mansão dos Lacerda. – explicou Vitório. – Portanto, ela tem a mesma idade de você.

– Ah, Vitório, quanto tempo, por favor, entrem! – Álvaro apareceu na porta e fez um gesto para que entrassem. Acenou para sentarem-se no sofá de couro.

– Obrigado. – agradeceu Vitório, sentando-se. – Tudo aqui mudou, hein?

– Sim, não soube lidar com a chegada da tecnologia e o desenvolvimento derrubou os negócios do café...como vê, Vitório, estou falido. – uma voz triste denunciava tristeza no senhor que outrora fora um homem belo. Álvaro não engolia o fato de Rita ter gasto quase toda a fortuna da família. – Só nos restou a casa. Demiti todos os funcionários sem pagar nenhum direito extra, até os empregados mais próximos, Amparo, que morreu de enfarto, e Rosa.

– Que triste notícia. – disse Vitório. – O dinheiro que o senhor nos deu só serviu para pagar alguns anos de aluguel num

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barraco e o ensino básico do meu filho, que graças a Deus, hoje é um homem de bem. Só queria abrigo aqui até arrumar outro emprego.

– Temos um quarto vazio, o que pertencia as empregadas.

Vocês podem ficar aqui quanto tempo quiserem, serão nossos agregados. – pontuou Álvaro.

– Mais uma vez, não sei como agradecer, senhor. – disse Vitório, emocionado.

Eduardo não parava de fitar Maria. Contemplava descaradamente a beleza da moça e ela retribuía os olhares com risadinhas tímidas e discretas. Formavam um casal lindo.

– Seu filho está muito bonito, hein! – elogiou Álvaro. – Um verdadeiro lorde.

– Obrigado, senhor. – disse Eduardo, tímido.

Conversaram por um bom tempo. Álvaro atualizou Vitório sobre como o mercado de café afetou a vida de produtores da bebida. Quem não soube investir, ficou paralisado no tempo.

Rita foi pegar um bule com chá de limão e os serviu, acompanhado de biscoitos de polvilho e pães de queijo quentinhos.

Por um momento, parecia que Eduardo convivera uma vida inteira na presença de Maria, mesmo vendo-a somente

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naquele instante. Não parou um segundo de encarar e cortejar a moça. O clima de descontração estava ótimo, até quando Maria queixou-se novamente de uma pontada na cabeça.

– Mãe, aquela dor de cabeça está voltando. – vou para o quarto descansar. – disse Maria, retirando-se. Foi para seu quarto.

– Ando muito preocupado com minha filha, de uns tempos para cá, ela vem reclamando de fortes dores na cabeça.

Tenho medo de ser uma doença grave. – comentou Álvaro num sussurro discreto.

– Leve-a ao médico, homem! – Eduardo não se conteve.

– Como? Não temos dinheiro para pagar consulta. – Rita foi quem falou, demonstrando preocupação. – Sou muito temerosa com essas coisas...meu pai morreu de uma dor intensa na cabeça.

– Posso ir ao quarto saber como ela está? – perguntou Eduardo sem esconder seu interesse nela.

– Não. Você é homem e não é médico. – respondeu Rita prontamente.

– Pode ir, fica no segundo andar, no final do corredor. – disse Álvaro, sorridente. Eduardo retirou-se. – Ah, qual é, Rita,

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o rapaz é tão bonito quanto nossa filha, se ela quiser, porque não?

– Porque ela vai se casar com o filho do prefeito, não com outro pobre igual a nós. Quero voltar a ter uma vida luxuosa.

– Você não mudou nada mesmo, Rita, continua sendo a mesma mulher fútil e vazia de sempre. – falou Vitório sem medo do constrangimento. – Amor é mais importante que qualquer bem material...eu amei de verdade a Ana. Falando nela, gostaria de levar flores ao seu túmulo.

– Vamos amanhã, ok. – concordou Vitório. “Ah, se ele soubesse como também amei a Ana...”, pensou ele.

***

Maria estava deitada na sua confortável cama, ainda sentindo uma forte dor de cabeça. A janela estava aberta expondo uma vista exuberante de uma cidade em crescimento acelerado e constante.

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“Ele te ama, sabia? É amor de almas.” Uma voz feminina ecoou nos pensamentos de Maria, por um momento, ela acreditou ser fruto de sua imaginação ou devaneio causado por a dor de cabeça.

Maria se remexeu na cama, fitando o teto, quando, de repente, avistou, pela janela, uma luz incandescente clarear todo o quarto, deixando-lhe momentaneamente cega. Fez sinal que ia fechar a janela, quando viu uma linda mulher envolta na luz, era muito bonita, tinha uma áurea de ouro na cabeça e asas de anjo.

Maria não sabia, mas aquela mulher que aparecera no seu quarto era Ana.

“Você também o ama, está escrito nas estrelas, minha querida. Mas, infelizmente, sua missão é outra.”, anunciou Ana, em forma de anjo, para Maria.

Ela não sabia o que dizer e como reagir à aquela revelação. Frequentava muito as missas ao domingo, era católica praticante e muito devota de Nossa Senhora Aparecida.

– Quem é você? Eu devo estar delirando, é isso... – disse Maria.

“Sou sua guardiã, sua protetora. Vivi aqui por muito tempo, inclusive morei nessa casa. E esse rapaz que você ama é

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meu filho”, respondeu Ana, sentando-se ao lado de Maria na cama.

– Como assim? Você está morta? Eduardo é seu filho?

“Não, não, minha querida, estou mais viva que nunca, fui vítima de ódio aqui na terra, mas entendi que esse era o plano.

Sim, Eduardo é meu filho e ele também te ama, mas não poderão ficar juntos porque não é a vontade dele”, e apontou o dedo indicador para cima.

– Porque eu estou te vendo? Você aparece para todo mundo? – Maria estava perplexa.

Ana pegou no rosto de Maria e deu um alegre sorriso.

“Não, apenas os escolhidos podem sentir minha presença. Sabe, depois de hoje, você saberá como agir, minha bela jovem...” e sumiu da mesma forma misteriosa que apareceu.

Batidas na porta a tiraram do transe que a aparição lhe causara. Era Eduardo.

– Você está bem? Fiquei preocupado com você. – confessou o rapaz, quando Maria abriu a porta do quarto e o convidou a entrar.

– Estou sim. Obrigada por se preocupar comigo, és um verdadeiro cavalheiro. – suas bochechas coraram levemente.

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– Quer que eu traga um chá, alguma coisa para comer? – perguntou ele.

– Não. Acho que eu preciso apenas descansar mesmo...

– Tudo bem, não vou mais incomodá-la... – Eduardo ia se retirando, quando olhou para trás, pegou nas mãos de Maria e disse-lhe, olhando nos olhos dela:

– Você é muito bonita, jovem, não consigo mais disfarçar meu interesse em você! Será que é paixão à primeira vista?

Ela sorriu. Agradeceu os elogios.

– Você também é lindo. Um homem muito interessante, que aposto que qualquer mulher daria tudo para tê-lo ao seu lado. Paixão não sei, mas pode ser encontro de almas!

– Nossa, essa foi profundo! – ambos riram. Eduardo beijou os nós dos dedos dela, fitou-a por um instante e não resistiu, aquela boca carnuda e naturalmente vermelha era um convite a beijá-la. O beijo foi de língua, demorado, molhado e gostoso com sabor de quem quer mais e mais.

– Desculpe, dama, não resisti. – e saiu do quarto, sorrindo escondido aprovando a melhor sensação que já tivera. Maria também gostou do beijo, era o primeiro homem que se apaixonara na vida. Não parava de colocar as mãos nos lábios, recordando do beijo.

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Ficaram lembrando daquele momento por horas, dias, semanas, meses... eternizando-o em vossos corações. Maria deu uma melhorada no seu estado de saúde, mas ainda assim, vez por outra, queixava-se de dores de cabeça em graus menos elevados. Álvaro não escondia sua preocupação e resolveu pedir a Eduardo para ir ao centro vender suas últimas obras de arte e uma joia. Tinha guardado duas telas de Picasso que valeria uma pequena fortuna e um colar de esmeraldas, que, inclusive, pretendia dar para Ana quando ela estava viva.

– Por favor, Eduardo, negocie com quem for... consiga o maior valor possível com essas telas e esse colar. – implorou Álvaro. – Sinto que minha filha não está bem...coisas de pai.

– Claro, Seu Álvaro, pode deixar comigo!

– Boa sorte, meu filho! – desejou Vitório, quando Eduardo saia pela porta e sumia pelas ruas de São Paulo.

Estavam reunidos na sala, tomando café. Rita, apesar de não gostar nem um pouco da presença indesejada dos dois homens, também desejou mentalmente que o rapaz conseguisse um bom dinheiro.

– Então... eu comprei uma coroa de flores brancas, quer ir ao túmulo de Ana? – perguntou Álvaro a Vitório, repentinamente, após tomarem chá de erva doce.

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– Claro!

O cemitério também mudara bastante, haviam muito mais túmulos que da última vez que Vitório estivera lá. Milhares de pessoas descansavam eternamente naquele lugar agorento.

Túmulos e mausoléus de várias formas, de cimento, mármore, madeira...

O túmulo de Ana era simples, de mármore escuro, e não estava coberto por mausoléu. Havia apenas uma cruz de aço dourada e uma lápide, com uma foto dela em preto e branco, e os seguintes dizeres: AQUI JAZ UMA SERVA DE DEUS.

ANA VILELA, 1895 – 1930.

Vitório colocou a coroa de flores e convidou Álvaro para rezarem um Pai Nosso e uma Ave Maria, e assim fizeram. As lágrimas em ambos foram inevitáveis.

– Vinte anos passaram-se e ainda lembro dela como se fosse ontem. – admitiu Vitório.

– Também. Certo dia, até sonhei com ela, acredita?

– Sério? E como foi o sonho, gostaria de saber. – indagou Vitório, curioso.

– Foi tão real, parecia que ela ainda estava aqui, conosco.

Eu a vi lá em casa, da janela do meu quarto, me convidando

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para um passeio...quando eu fui pegar na mão dela, de repente, me vi num quarto escuro, e uma mulher em chamas tentava me agarrar...- relatou Álvaro.

– Está repreendido em nome do Senhor Jesus! – benzeu- se Vitório rapidamente. – sonho estranho... – continuou ele. – Tenho certeza que Ana descansa em paz em algum bom lugar, ela era uma pessoa boa que sempre ajudava os outros.

– Claro, foi só um sonho! Fruto da minha imaginação motivada pela saudade.

***

Em casa, Rita pensava consigo mesma. Tramava com seus botões... Precisava fazer a filha se aproximar e se casar com o filho do prefeito de São Paulo, Ian Jordan, um rapaz cortejado por quase todas as damas da cidade, mas que, no fundo, não sabiam bem se realmente era de mulheres que ele gostava, pois não o viam nos eventos promovidos pela prefeitura, tampouco nas festas da alta sociedade paulistana. Podia ser apenas timidez.

Até carta e convite Rita enviara pelos correios para o endereço do rapaz, nunca obtendo resposta ou retorno, é claro.

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No dia 1º de dezembro daquele ano, Maria teve uma piora que a deixara de cama por semanas. Estava mais pálida, apática do que nunca, não sentia fome e quase não ia ao banheiro fazer suas necessidades fisiológicas. Eduardo conseguira vender as telas e o colar de esmeraldas por uma mixaria. Um homem estranho, de sobretudo marrom, comprara os itens, alegando não serem verdadeiros. Dera por tudo, apenas cem mil cruzeiros, o que na época, não era nada comparado ao valor de mercado das telas e do colar. Anos mais tarde foi descoberto que esse mesmo homem vendeu as telas e o colar em um leilão, faturando milhões de cruzeiros e doando parte do dinheiro para o pai de Ian, sob forte ameaça e pressão, ajudando o mesmo a eleger-se governador de São Paulo por um partido tradicional na política brasileira nos dias atuais.

Em 1951, numa manhã ensolarada de terça-feira do mês de março, Maria, ainda abalada e frágil, caminhava no que mais tarde viria a ser o parque do Ibirapuera, acompanhada de Eduardo. O carinho que eles sentiam um pelo outro só aumentava. Com o dinheiro da venda dos itens de valor de Álvaro, pode-se pagar uma consulta com um dos melhores médicos da cidade, inclusive, comprar os medicamentos.

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Maria sofria de um mal que a ciência da época nem sonhava que existia, e o diagnóstico não era eficaz, tampouco a medicação, que aliviava as dores por horas, mas quando voltavam, estavam duas vezes mais intensas.

O percurso que fizeram era longo, caminharam por cerca de duas horas. O sol estava tinindo, o suor escorria pelos rostos da bela moça e do lindo rapaz. Maria usava um vestido rosa, com bolinhas brancas e Eduardo vestia um blazer cinza e com uma calça de linho preta. Eram só risos e afagos.

– Que lindas essas rosas! – admirou Maria, quando passavam próximo a um canteiro de flores, na estradinha que dava acesso a sua residência. – Você pode me dar uma? – pediu ela sem jeito, para Eduardo.

Estavam de braços entrelaçados.

– Claro! – disse ele. – Vou pegá-la. – Eduardo foi até o canteiro, que estava coberto por outras plantas e, quando tocou na rosa, foi espetado por um espinho causando um ferimento no seu dedo. – Aiiiiiii! – gemeu ele, cortando o caule da rosa.

– Aqui está, meu amor! – entregou a rosa para Maria, com seu dedo indicador direito escorrendo sangue. – Ah, isso...foi apenas um espinho, vou ficar bem.

– Cuidado! Não queria que se machucasse.

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– Não foi nada.

Maria olhou com ternura para Eduardo e em seguida para a rosa, sentiu o delicioso aroma que ela exalava e, ficando novamente de braços entrelaçados, voltou a caminhar. Não andaram cem metros, Maria de repente sentiu-se mal e desmaiou. Eduardo entrou em desespero.

***

Com a ajuda de um homem de meia idade, que passava naquele momento no seu carro, conseguiram levar Maria para a mansão. Ao chegarem, colocaram-na diretamente na cama, Rita tentando reanima-la com álcool no nariz dela. Nada da moça acordar. Ficou inconsciente por horas, abrindo os claros olhos apenas no final da noite e trazendo alegria para aqueles quatro.

– Minha filha, que susto você nos deu! – disse Rita, chorando. – O que sente? Quer ir para o hospital?

– Não, mãe, estou bem...- respondeu Maria, a voz baixa quase num sussurro, a pele gélida. A linda moça sabia que a vida é só uma breve passagem. – Por favor, nos deixem a sós, queria conversar com o Eduardo.

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Álvaro olhou de relance para Rita e Vitório, e saíram do quarto em seguida. Eduardo, que estava o tempo todo impaciente e preocupado, sentou-se na beirada da cama, ao lado dela, pegou nas suas mãos e disse:

– O que foi, meu amor?

– Quero te pedir uma coisa, Eduardo. – falou ela, a voz doce e angelical. – Sinto que estou partindo. Dessa vez não passa. A dor de cabeça agora percorre meu cérebro inteiro e não cessa. Por favor, nunca se esqueça de mim e me prometa que serás muito feliz. – as lágrimas de ambos escorriam feito cachoeiras.

– Não fale uma besteira dessas, meu amor, você vai ficar bem, vai se curar, e logo logo ficaremos juntos, constituiremos uma linda família...

– Eu te amo...- Eduardo curvou-se e lhe deu um beijo demorado na boca, exprimindo todo seu amor. – Te amo, Eduardo, te amo... – Maria, de olhos abertos, vidrados, seu corpo ficou sem pulsação e sua pele estava tão fria quanto gelo.

– NÃOOOOOOOOOOO - berrou ele, pondo a mão suavemente no rosto dela e fechando seus olhos. – Não vá, Maria, não vá!

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Álvaro, Rita e Vitório romperam no quarto e encontraram Maria dormindo eternamente e Eduardo descontrolado. O rapaz foi consolado pelo pai. Rita e Álvaro se abraçaram e também começaram a soluçar de tanto chorar.

Após Rita chamar a funerária, o corpo de Maria era velado em um caixão marrom escuro na sala de estar, com o vestido rosa de bolinhas brancas que ela usava horas atrás.

Poucas pessoas compareceram na cerimônia fúnebre, incluindo alguns ex-funcionários da fazenda, e o então prefeito da cidade, acompanhado do seu filho Ian Jordan e da primeira dama.

Algumas amigas de Rita também se fizeram presentes, mas não demoraram, apenas deram as condolências ao casal Lacerda e foram embora. Rosa soube através do rádio do falecimento da filha da ex-patroa, o que a motivou a levar uma coroa de flores brancas e entregar para Álvaro.

– Lamento, senhor Lacerda. Ela era tão jovem, tinha um futuro inteiro pela frente. – disse Rosa.

– Obrigado, Rosa. – agradeceu ele, entre soluços.

Eduardo estava sentado ao lado do caixão e chorava muito, hora por outra tocando e beijando as faces do defunto.

Não tinha mais pulmões e seu pranto já secara.

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***

Acordei de repente. Vi algumas pessoas ao meu redor, algumas tocando no caixão, outras consolando meus pais e o Eduardo. Era tudo muito estranho. Eu podia me ver saindo e abandonando meu corpo físico, que continuava no caixão, inerte, sem pulsação. Fiquei parada no meio da sala por instantes, não sei ao certo por quanto tempo, as pessoas esbarravam em mim, atravessavam meu corpo translúcido e não me viam! Era desesperador.

O que estava acontecendo? Fui até Eduardo dizer que eu estava ali, com ele, dizer que estava tudo bem, mas parecia que ele não me via nem me ouvia, continuava chorando como se eu não fosse mais voltar. Será que não ia mesmo?

De repente, senti meu corpo flutuando centímetros, metros do chão, pude ver meu corpo carnal de um ângulo alto, estirado num caixão... Eu havia morrido?

Subi, subi cada vez mais alto, vi a cidade de São Paulo inteira de cima e apaguei...

Quando retomei meus sentidos, estava no lugar mais lindo do mundo. Não sabia onde era, mas tinha uma energia

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magnífica. Um campo verdejante, com flores de todas as cores, formas e tamanhos, a perder de vista no horizonte. Uma forte luz vinha ao norte. Ouvi uma voz conhecida, quando dei por mim, braços me abraçaram...

Era Ana, a mulher que vi em vida nas minhas visões, se bem que não sei se era visão.

– Seja bem-vinda, Maria. Como te disse uma vez, sua missão chegou. – disse ela.

– Onde eu estou? Eu morri? – perguntei, assustada.

Estava vestida com um manto branco enrolado no meu corpo, idêntico ao de Ana.

– Você não está mais na terra, estamos no Paraíso, onde viveremos na eternidade, minha querida.

– Ahhh! – exclamei, assustada. Eu era tão jovem para já ter partido tão cedo, não pude desfrutar de nada na terra. – Então...aqui onde estamos não tem mais volta? Quer dizer, e o tal do purgatório citado na bíblia?

– Seus pecados foram pagos na terra, Maria. Aqui não existe dor.

Começamos a caminhar na direção da luz. Ela segurava minha mão. A medida que avançávamos na contraluz, pude notar vultos indistintos ao longe, mas que iam ganhando forma

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quando nos aproximávamos. Muitos espíritos estavam lá conosco. Não consegui identificar ninguém conhecido. Será que nem todo mundo vinha para cá?

– Para onde estamos indo? Essa luz está me cegando...- observei.

– Quero te mostrar uma coisa...

A luz ficava cada vez mais forte, as pessoas que eu vi olhavam para mim sorridentes, dando-me as boas-vindas. Não sentia fome nem sede, nem desejos carnais nem quaisquer sentimentos que provariam que estava viva. Era simplesmente mágico, inexplicável. De onde vinha a luz, ouvimos uma voz masculina. Era a voz mais terna e doce que já ouvi, uma mansidão que dava gosto de ouvir.

– Seja bem-vinda, minha filha.

– Obrigada! – agradeci com um sorriso.

– Sabe quem é? – perguntou-me Ana, aguardando uma resposta imediata.

– Hum...Deus? Nosso pai, criador de tudo? – respondi prontamente.

– Exatamente. Sou Deus, vosso pai e criador de tudo.

Você foi uma filha exemplar, Maria, desculpe trazê-la tão cedo...

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– Se foi seu entendimento, Pai, eu aceito. – disse. Percebi que Ana deu um sorrisinho em concordância a minha resposta.

– Tens a missão de proteger os que te amam lá, na terra, e prepara-los para chegarem aqui.

– Meus pais e meu namorado também vão morrer? Não é justo, pai...- lamentei. Não aceitava aquilo com eles.

– Todos vão morrer, minha filha, ninguém na terra é eterno além de mim, que criei tudo, ninguém. Ainda não chegou o momento deles, mas um dia, quando você não notar a passagem do tempo e do espaço, eles chegarão aqui e é preciso que você os receba.

– E o que garante que eles virão parar aqui? – quis saber.

– O arrependimento de vossos pecados.

Um silêncio repentino. Ana continuou a me puxar para mais longe, aonde não pude mais ver aquelas pessoas que outrora vi. De repente, nas margens do horizonte além da forte luz, vi uma fenda soturna, um abismo sem fim que mais parecia tragar o infinito. Quem quer que caísse ali, não voltaria pelo resto da eternidade. O abismo parecia ter vida própria, aparentemente tragando pessoas para seu interior malevolente.

Ouvi vozes clamando por ajuda, milhares, milhões delas, ao

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mesmo tempo. Lavas de vulcão explodiam de dentro expelindo fumaça e odor de enxofre na superfície onde estávamos. Pude notar de longe que haviam muitas pessoas que conheci na terra, incluindo uma antiga empregada da minha casa. Todos que estavam lá se debatiam de dor e imploravam para sair daquele agouro.

– Aqui é a entrada do inferno. – disse-me Ana. – Quem entra aqui não volta mais.

– Lá é mais bonito. – apontei para trás, onde estávamos há pouco.

– Sim, Maria.

Nos afastamos daquele abismo sepulcral. Percebi que no Paraíso também tinha animais: aves voando para todos os lados, cavalos correndo, leões brincando com veados, coelhos, era uma variedade gigantesca.

– Ana, Deus nos disse que eu tinha que receber os que me amam quando chegarem aqui.., mas, e se por acaso, eles não vieram para cá? – indaguei, sentindo certa preocupação.

– Não tenha que se preocupar com quem vem para cá ou quem não se arrepende e vai para lá, - apontou ela para o abismo. – Você fez sua parte, Maria, a salvação é individual.

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Exatamente, minhas filhas. – a voz Dele interveio. – Não importa a gravidade do pecado, o que importa é a sinceridade do arrependimento.

Porque não consigo vê-lo? – perguntei. – O Senhor é invisível?

– Minha voz basta para orientar meus filhos, não importa a minha forma. E ela ecoa em todos os lugares ao mesmo tempo.

Um homem vestido de branco estava caído na grama alguns metros de onde estávamos. Deitado, ainda desorientado, tentava se levantar, ficou em choque quando percebeu onde estava e eu mais ainda quando o reconheci: era o meu pai, Álvaro. Tinha a aparência de um idoso, o que percebi que muitos anos haviam se passado na terra após minha partida.

Seja bem-vindo, pai. – falei, abraçando-o afetuosamente. Ele olhou para mim e Ana, incrédulo.

– Obrigado. Estou...morto? É isso? – perguntou ele. – Ana?

– Estamos no Paraíso, Álvaro.

Eles se olharam estranhamente, como se houvesse algo mal resolvido em vida.

– Rita me matou. – falou Ana.

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– Sofri muito com sua ausência, Ana. Eu e o Vitório.

A voz divina voltou a ecoar em nossos ouvidos:

– Maria, não sou de conceder isso a muitas pessoas, nem mesmo aos mais puros, mas, assim como concedi a Ana uma aparição a você em vida, na terra, concedo a você uma ida rápida e visitar uma pessoa. Ele precisa de um consolo e você pode acalentá-lo.

***

Fechei os olhos e, quando abri, estava no quarto de Eduardo. Ele estava muito magro, quase cadavérico, muitas garrafas de cerveja espalhadas pelo quarto. Estava sentado na cama, orando. Seus olhos profundos e úmidos revelaram que não se conformava com minha partida e a de Álvaro. Pela sua aparência, uns quinze ou vinte anos se passaram, agora estava rabugento, depressivo.

Aproximei-me dele e sentei-me ao seu lado, na cama.

– Senhor, porque fizeste isso comigo? Porque tiraste o grande amor da minha vida e daquele que ajudou minha família? – orava como se o próprio Deus estivesse ali no quarto. E na verdade, estava.

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– Eduardo, meu amor, não chore. Tudo ficará bem. – falei, pegando nas suas mãos.

– Não pode ser? – ele se assustou de tal forma, que quase gritou. – Maria? É você mesma ou estou tendo alucinações devido a bebida?

– Sim, sou eu. Pelo visto, você não aceitou minha partida.

Estou bem, Eduardo, você também ficará.

– Porque Deus te levou tão cedo? – ele chorava feito criança mimada. – Depois que você se foi, nunca mais fui o mesmo, nunca mais soube o que é alegria.

– Por favor, não diga isso. Entristece-me ouvir que você contesta os planos de Deus.

– Mas é verdade. – continuou ele. – Fiquei aqui, nessa casa, sozinho. Meu pai fugiu com a desgraçada da sua mãe sei lá para onde, o que ocasionou a morte do seu pai.

Espero que não cause a sua também. Não está na sua hora ainda. Lembra o que te pedi quando eu estava viva?

– Para que eu seja feliz. – respondeu ele de pronto. – Mas como serei feliz sem você, como? – Eduardo levantou-se da cama, foi até o guarda-roupa e pegou um revólver escondido entre suas roupas. Apontou para si próprio, na direção da testa, e

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disparou. Fechei os olhos novamente e me desesperei quando os abri.

***

– Eduardo? Eduardo? – eu gritava a plenos pulmões a procura dele no gigantesco e infinito jardim. – Cadê você, meu amor?

Infelizmente, Maria, meu filho não veio para cá. – respondeu Ana.

– Não me diga que ele foi para o... – apontei na direção do abismo adiante.

– Não. Ele vai vagar na terra pela eternidade. – disse Álvaro. Muitas pessoas se aproximavam de nós, solidárias. – A não ser que... ele ganhe uma segunda chance de fazer diferente.

– Como assim? É possível ele ainda vir para cá passar a eternidade no Paraíso? – eu estava incrédula com o que Eduardo fez consigo mesmo.

Sim, minha filha, eu posso dar outra chance a ele. E acho que você será imprescindível para que isso aconteça.

– Como, meu pai? Está falando de reencarnação? – indaguei.

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– Isso. – respondeu a voz. – Ele renascerá em outro corpo e se encontrará com você. Terão que vir juntos.

***

Um clarão riscou o céu igual uma estrela cadente numa noite escura, e sabe-se lá como, aquela luz caiu em algum lugar na terra. Foi vista por centenas de pessoas, mas só Janice, que estava grávida de nove meses, ficou tão impressionada.

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