• Nenhum resultado encontrado

Os andaimes da ciência moderna

Introdução

A partir do século XIX, qualquer temática, seja ela de ciência de cultura ou da tecnologia começa a ser pensada a partir do ponto de vista histórico porque a história era o grande motor, trave mestra do crescimento que beneficiava teorias e práticas posteriores. Daí que se pensasse que a altura do templo da ciência se ergue pedra a pedra, tendo como base o legado do passado, ideia que recolhemos de Santos (1988), e segundo a qual era preciso recorrer ao passado em busca dessas pedras. Contudo, a nossa perspectiva situa-se na linha das descontinuidades históricas, pelo que faremos referência aos dois grandes deslocamentos na história do pensamento, Renascimento e Iluminismo, que transformaram os homens em protagonistas que buscam antídotos contra o dogma medieval para configurarmos o sujeito essencialista da modernidade, imbuído da concepção cartesiana que vem a constituir matéria de interrogação e estará na origem da constituição da ciência psicológica. As correntes filosóficas que mais influenciaram a Psicologia, na era moderna, serão abordadas de forma breve. Faremos referência ao modo de indagação positivista que sustenta os conhecimentos disciplinares da modernidade, entre os quais a Psicologia, e finalizaremos problematizado a objectividade e neutralidade da ciência sustentada pelo Velho Paradigma na Psicologia; enunciaremos apenas a evidência da mudança que virá a preconizar a emergência de um novo paradigma, tema que continuará presente nos capítulos seguintes.

Os andaimes da ciência moderna

Até que o homem tomasse a centralidade do universo, e se visse a si próprio como causa e impulso do progresso e da ciência precisou distanciar-se, perder crenças, fazer deslocamentos e abater os medos que o sujeitaram, nos tempos medievos. Ao descobrir o "seu poder criador", no Renascimento, torna-se tópico de reflexão "o ponto nuclear da viragem de uma metafísica do ser (medieval) para uma

metafísica do sujeito (moderna) (André, 1987, p. 17). Não obstante os impedimentos

censórios desses obscuros tempos, a marcha para a intelegibilidade, intuída pelo génio, foi sendo construída pela centelha criativa que tem guiado o desenvolvimento e progresso humanos. Galileu (1564-1642) e Descartes (1596- 1650) constituíram os alicerces da era moderna, elegendo o pensamento indutivo ou o cogito como fundamento do conhecimento e verdade, ponto alto na redescoberta do mundo Renascentista. A maneira como se espera que o mundo deva funcionar é condicionada pelas atitudes científicas geradas por diferentes fases do pensamento científico e critérios de pesquisa. Se nos debruçarmos sobre o fio da história veremos que ciência já foi dominada pelo pensamento goecêntrico e, posteriormente, pelo heliocêntrico, sofreu outro grande progresso com a física newtoniana, cuja teoria da gravitação universal deu aos homens um universo estático invariante com o tempo. Perspectiva que se manteve até inícios do século XX quando Einstein formulou a teoria da relatividade que implicava um universo em expansão.

Quando Newton (1642-1727) interroga o cosmos e as leis físicas e mecânicas que o governam desloca o seu conhecimento para a Razão humana (Young 1992). O

homo racionalis, constituído como sujeito da razão, dominador e transformador

da natureza, desafia a explicação divina para os fenómenos e assume-se como o único protagonista da história (Santos, 1995). Racionalismo e Empirismo reforçaram nos homens a certeza do domínio e controlabilidade dos fenómenos e, a Natureza, torna-se a matéria-prima onde o homem "inscreve o sentido histórico

do processo de desenvolvimento" (Santos, 1995, p. 73). Delineada na Renascença, a

era moderna, da revolução científica do século XVII, agiganta-se no movimento Iluminista que se desenvolve entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789) cujo projecto visava, essencialmente, erguer o conhecimento em bases científicas e dar aos indivíduos instrumentos conceptuais que permitissem a construção de sociedades utópicas, pela adopção de atitudes demolidoras do passado pré-moderno carregado de medos, superstição e paternalismo (Padovani & Castagnola, 1995). Os andaimes das disciplinas científicas da era moderna sustentam-se na concepção Iluminista de Ciência, do paradigma newtoniano-cartesiano, que constituiu uma actividade voltada sobre si mesma, exercida por homens nobres que buscavam romper com o mundo da ignorância e do senso comum. Esta concepção está ultrapassada, concebendo-se hoje como assinala Lyotard (1989), como meio de produção, que organiza e acumula certo tipo de informação, conforme as políticas definidas pelos Estados e os interesses comerciais de empresas que mantêm os seus próprios laboratórios. Desta forma perde uma dimensão humanística e especulativa voltada para o progresso da

humanidade, e torna-se uma actividade operacional. Actividade tão operacional que no discurso científico do nosso século, pode ser ressaltada a predominância da tecnologia intelectual dos investigadores com as suas próprias regras de produção - como escrever, como redigir, como citar, como estruturar um texto científico, como escolher um tema de pesquisa. O conhecimento então adquire um valor de troca e legitima-se pelo desempenho, perde valor intrínseco, questão que retomaremos adiante.

O sujeito essencialista da modernidade

"O sujeito unitário e racional", da pós-Renascença (Venn, 1984, p. 121) instaurado

na cultura ocidental a partir do século XVII combina o cogito cartesiano e a concepção Iluminista de indivíduo, comprometido no contrato social que o

transforma no "herói do saber que trabalha para uma boa finalidade ético-política, a paz

universal" o qual procura compreender a verdadeira natureza do mundo fazendo

julgamentos baseados apenas em evidências objectivas e científicas, acerca da realidade (Lyotard, 1989, p. 12). Esta procura da verdade baseava-se na ideia de que existem regras ou estruturas, essências, que estão na base das características superficiais do mundo, e que podiam ser descobertas. A ciência constituiu-se como antídoto contra o dogma medieval e a pessoa torna-se o foco para as questões da verdade e da moralidade (Burr, 1995). É este sujeito "universal", fundamentalmente androcêntrico, investido de poder, que na modernidade

define, classifica e categoriza a realidade, um sujeito influenciado pela sua personalidade, muitas vezes identificada com temperamento, uma essência definível ou passível de ser descoberta.

São as essências ou estruturas a preocupação da procura e identificação de qualquer coisa que se esconde dentro das pessoas ou dentro das coisas e que as torne o que são, isto é, que as identifica. Se tomarmos como referência uma concepção essencialista da pessoa, não pode ser tido em conta o argumento da especificidade histórica e cultural, e da influência do meio social em detrimento do argumento biológico. O essencialismo torna-se uma justificação racionalista para o comportamento humano e a experiência. Se o essencialismo é rejeitado onde devemos procurar então as nossas explicações para o comportamento humano e para a experiência? Os construcionistas sociais fazem radicar na linguagem o sentido pessoal e o da experiência. Esta linha de pensamento sublinha a construção social dos fenómenos sociais, enraizados na linguagem, o que possibilita diferentes alternativas para o comportamento humano, dada a variedade dos discursos que podem ser produzidos.

O sujeito cartesiano, patriarcal, assente numa forma única de racionalidade, veio a constituir tópico de crítica feminista, no âmbito do pensamento pós-moderno, a abordar adiante. O pensamento feminista resiste a noções que presumem um sujeito unitário, estático, coerente e racional, porque essas noções incorporaram, ao longo dos tempos, formas de opressão androcêntrica que contribuíram para a estruturação da certeza científica e defende o pressuposto da construção discursiva tanto do sujeito como do conhecimento (Henriques et ai. 1984).

O emergir da Psicologia como ciência

A noção cartesiana de sujeito com processos mentais e físicos, passíveis de ser descritos e estudados racionalmente, reforçada ainda pela perspectiva evolucionista, desenvolvida por Darwin, que reduziu a mente "ao mesmo estatuto

material do corpo" (Venn, 1984, p. 135), tornam o homem matéria de interrogação.

Interrogação que se estende a todas as áreas da experiência à qual a Razão acede, facultando novas leituras sobre o Universo e os seres, dos quais se destaca o indivíduo, desta feita já separado dos outros seres (astros, plantas e animais: a natureza) e até dos outros humanos (Joaquim, 1997). Nascida no contexto positivista do século XIX, a Psicologia afirma-se inicialmente como uma descrição matematizada dos fenómenos psíquicos, mensuráveis sob condições controladas, e que Wundt (1832-1920) definiu como a ciência da consciência, à qual se poderia aceder pela introspecção. Desde logo, as objecções de Watson tematizam apenas o controlo do comportamento como objecto de estudo científico. A corrente behaviorista suportada pela filosofia e métodos do paradigma dominante, na tradição empirista, tornou-se grande factor de controle e regulação. "Watson acreditava que o controle social era a área de maior

sucesso de aplicação da psicologia. Os psicólogos não devem limitar-se a prever o comportamento, eles devem formular leis para levar a sociedade a controlar o comportamento. " (Goldstein «Sc Krasner, 1987, p. 3). E, mais, explicitava que o seu

método de educação da criança tinha como objectivo "producing disciplined and

partir dos trabalhos de Wundt, William James (1842-1910) e Max Wertheimer (1880-1943), a emergente ciência psicológica tenta consolidar o seu posicionamento, frente às outras ciências, pela adopção de parâmetros das ciências exactas, designadamente, da Física. Estribada na metodologia positivista de investigação, utilizada nas ciências naturais, a Psicologia começa a "observar", "contar" e "medir" o comportamento adquirindo, assim, legitimidade como corpo de conhecimento.

As fragilidades do behaviorismo, o epitome da psicologia positivista, são acentuadas por Harré e Secord (1972), quando assinalam ser ilusória a objectividade dos experimentos, obtidos em contextos controlados de laboratório, tendo em conta que as capacidades perceptivas dos sujeitos são influenciadas por múltiplas variáveis quando inseridos no seu contexto de vida real. Também Freud e seguidores, que se ativeram ao modelo positivista, próprio das ciências biomédicas do século XIX, conceberam a Psicanálise como um modelo simultaneamente mecaniscista e, por isso, ligado ao paradigma da física clássica e também não mecanicista por se basear em termos de uma nova estrutura explicativa do comportamento: o inconsciente. Em suma, o modo de indagação corrente no modelo positivista postula a existência de um método seguro, fiável e isento de valores, sobre a realidade o qual permite aceder à verdade (Morrow & Brown, 1994) e cujos fundamentos são: i) a experimentação e ii) verificação; iii) pressupõe sempre que investigador e objecto da pesquisa constituem uma dualidade com independência temporal e contextual das observações o que permite fazer generalizações uma vez que a causalidade,

nesta perspectiva, é linear (Lincoln & Guba, 1985). Os investigadores convencionais tornam-se guardiões de uma neutralidade suposta, e olham para a sua tarefa como uma descrição isenta, factual e objectiva da realidade (Gergen, 1992). Desta forma, os factos passam a ser reificados como discretos, fixos e objectivos e, chegar às verdadeiras propriedades do objecto em estudo, pertence já ao domínio das certezas absolutas (Broughton, 1980).

Tendo como fundo o modelo das ciências naturais, a Psicologia do chamado "Velho Paradigma", (Harré & Gillett, 1994), elege e privilegia a pesquisa conduzida em laboratório, cujo valor heurístico é contestado, por estes autores, bem como a alegada isenção do investigador, pois como sustentam, a componente interpretativa está sempre presente mesmo que o modelo seja experimentalista. Este modelo tem subjacente uma lógica hipotético - dedutiva a qual pressupõe que as proposições transportam consigo "conhecimento objectivo" e, quando aplicada ao comportamento, transformá-lo-ia, apenas, em meras consequências de antecedentes, radicadas em condições do mundo real. Deste pressuposto decorre a asserção que, ao investigador, basta empregar a dedução, para testar a validade do conjunto das proposições iniciais. O papel da linguagem, nesta concepção, tem a função representativa, como espelho fiel da realidade, porque a razão é dogmática, no sentido em que acredita atingir a verdade. Então, a tarefa suprema do investigador será a de desenvolver teoria que identifique factos com precisão o mais elevada possível para que possam ser distribuídos em curvas de Gauss, espelho da normalização onde se reflecte o indivíduo médio. A quantificação continua a exercer um fascínio inusitado nos

investigadores das ciências sociais e humanas e, por esse motivo, continuam a perseguir as medidas puras de coisas como a memória, percepção e traços de personalidade que supõem poder obter.

Estão assim identificados os andaimes em que, na era moderna, os conhecimentos disciplinares apoiaram a sua base científica e, entre eles a Psicologia, que podem enumerar-se de forma sistematizada: a) ter um objecto; b) utilizar a metodologia experimental; c) produzir leis universais; d) usar a pesquisa sistemática como forma de obter mais conhecimento para a sua área científica (Gergen, 1992). Em suma, a ciência, como afirma Caraça (1997) "é

dotada de identidade processual e de um objecto global único, aparece aos nossos dias de hoje como um vastíssimo corpo de várias disciplinas e especialidades" (p. 54) em que

uns se armaram "até aos dentes tentando manter os velhos previlégios" e outros desejam "continuar o seu curso com um mínimo de perturbação" (p. 59). Cresce a evidência que a ciência já não se pensa objectiva e isenta de valores, e embora destinada ao progresso, tantas vezes, conduziu a humanidade a riscos insuperáveis. Da brevíssima incursão histórica às vicissitudes temporais da produção de conhecimento, sublinham-se os tópicos seguintes, como síntese organizadora deste capítulo:

i) o homem pré-moderno regeu-se por estratégias de acção guiadas por um saber revelado que fugia à compreensão humana e entrava no domínio do mistério; ii) o homem da era moderna comprometido com a acção guiada pela Razão, sempre associada à experimentação e à observação, como formas de explicação da realidade objectiva, indexou a controlabilidade dos fenómenos, e

estabelecimento de leis universais, à razão humana, única via da acesso ao conhecimento científico e prossecução de sociedades utópicas.