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O construcionismo social: principais pressupostos

Introdução

Alguns desenvolvimentos pós-modernos são referências importantes para as ciências sociais e humanas, nomeadamente na crítica da ideologia, na ciência, assim como na crítica social, abordagens que contribuíram para a emergência do construcionismo social. O propósito deste capítulo é abordar, ainda que de forma breve, os principais pressupostos do construcionismo social, escola que, na Psicologia, se integra no amplo chapéu disciplinar constituído pela Psicologia Social Crítica (Burr, 1995). O construcionismo social pode caracterizar-se como uma posição crítica face ao conhecimento e, fundamentalmente, uma oposição ao positivismo e ao empiricismo das ciências sociais tradicionais. Neste capítulo acentuar-se-á que todo o conhecimento, incluindo o conhecimento psicológico é específico de um momento histórico e de uma cultura particular, e que a pesquisa deve ir além do domínio individual para se centrar no social e politico com vista a uma compreensão apropriada da evolução da psicologia contemporânea e da vida social. Serão referidos os desenvolvimentos decisivos ao impulso deste movimento, designadamente os interaccionistas que descrevem a vida social como anti-essencialista e sustentam que os seres humanos em conjunto constroem os fenómenos sociais através das práticas sociais. Finalmente salientar-se-á o papel da linguagem como uma forma de acção construtora das nossas interacções e das nossas versões do mundo, o que nos permite encarar este movimento como uma alternativa optimista e optimizadora de todas as vozes na pesquisa social, uma vez que as novas formas de inquirir que se perspectivam no movimento construcionista, para as ciências sociais, se podem alargar à Psicologia.

O construcionismo social: principais pressupostos

A orientação teórica que mais contrasta com a epistemologia convencional é o movimento construcionista de tonalidade multidisciplinar que recebe influências de disciplinas como a filosofia (reacção ao representadonismo), a sociologia (desconstrução da retórica da verdade), a política (busca de lugar de visibilidade para grupos marginalizados) e a linguística e que Gergen (1985) denomina de consciência partilhada. Pode dizer-se que o seu pano de fundo é o pós- modernismo, mas as suas raízes intelectuais estão nos primeiros trabalhos sociológicos e nas preocupações com a crise na psicologia social. Num espaço de menos de 30 anos o construcionismo social adquiriu uma presença substancial na ciência e nos estudos feministas. Para isso muito contribuiu a Escola de Chicago que iniciou estudos qualitativos nos contextos naturais. O crescimento de publicações tem vindo a concorrer para o estabelecimento do construcionismo social como uma importante alternativa no campo da Sociologia, como relatam Sarbin e Kitsuse (1994).

Neste âmbito, outros contributos podem ser nomeados, por exemplo, as formulações etnometodológicas de Garfinkel (1967) que desafiaram a teoria funcionalista dominante; Berger e Luckman (1973) e Goffman (1959) influenciaram decisivamente a perspectiva construcionista na Sociologia. No início dos anos 70 o tão citado artigo de Gergen (1973) "Social psychology as

history" foi decisivo para a inclusão da perspectiva construcionista na Psicologia

O construcionismo social assume o conhecimento psicológico como um conhecimento socialmente construído e tenta a sua desconstrução pela clarificação dos seus fundamentos políticos e culturais (Augous tinos & Walker, 1995). Nesta perspectiva sujeito e objecto são construções sócio-históricas e os objectos só são apreendidos a partir de categorias, convenções práticas e linguagem, ou seja, através de processos de objectivação, de acordo com Spink e Frezza (1999) Os processos psicológicos são explicados na sua ligação às concepções culturais organizadas num amplo espectro produzido por instituições sociais, políticas e económicas. Na interpretação de Sarbin e Kitsuse (1994), as formas do conhecimento psicológico não estão directamente dependentes da natureza das coisas mas das contingências dos processos sociais, tais como, a comunicação, a negociação e o conflito; eles são formas de entendimento negociado, onde não fazem sentido descrições estáticas acerca das pessoas ou da sociedade, uma vez que a única característica permanente da vida social é um estado de permanente mudança. Ao acentuar a componente social do conhecimento científico, o posicionamento dos contruáonistas sociais (Gergen, 1985; Shotter, 1984, 1991) desafia a suposta verdade, objectividade e universalidade do conhecimento e é sensível ao conhecimento que é produzido, designadamente, pelos estudos etnográficos e pela Psicologia cultural. Nesta perspectiva também a noção de representação é distinta da do paradigma dominante. O significado é construído pela linguagem, que o construcionismo social aborda sob a perspectiva discursiva, que referiremos adiante. A linguagem, porque produto de interdependência social, construtora das nossas

interacções e das nossas versões do mundo, é crucial ao construcionismo social. O esbater das certezas do conhecimento iluminista dá à linguagem um estatuto de realidade sempre aberta a infinitas construções e desconstruções "a própria

noção de sujeito é suspeita, por não possuir substância centro ou profundidade"

(Hargreaves, 1998, p. 78). A pessoa transforma-se em texto a ser construído ou desconstruído conforme a contingência histórica, o que dá à individualidade uma nuance interpretativa.

Concebendo a produção de sentido como unia construção dialógica situar-nos- emos, adiante, na noção de linguagem que suporta a nossa proposta de trabalho no que diz respeito às práticas discursivas. Por agora tomaremos os pressupostos recolhidos do interaccionismo simbólico, basilar ao construcionismo social, que sublinham a capacidade interpretativa dos actores sociais para a construção de realidades nas quais a linguagem tem um papel central (Berger & Luckman, 1973; Queiroz & Ziotkowski, 1994; Sarbin & Kitsuse, 1994). As categorias e conceitos utilizados para a compreensão do mundo, artefactos sociais, produzidos na interacção das pessoas, são remetidos, por esta perspectiva, ao tempo social e histórico, à interacção, ou seja para os processo de produção de sentido da vida quotidiana. Os seres humanos, em interacção simbólica, pela linguagem, criam e sustentam os fenómenos sociais na realização de práticas sociais. A acção das pessoas objectiva-se na criação de artefactos ou de práticas sociais, adquire vida própria e entra na esfera social. Uma ideia, ao tornar-se um "objecto" de consciência para as pessoas de uma dada sociedade, desenvolve um estatuto de verdade, de molde a parecer uma característica

objectiva e natural do mundo em si mesmo, não dependente do trabalho construtivo das interacções dos humanos.

Berger e Luckmann (1973) sociólogos interaccionistas, subvertem a ordem instituída na Sociologia do Conhecimento que era a de centrar as questões epistemológicas na história das ciências, reorientando a reflexão para o estudo do senso comum, da vida quotidiana. Os autores partem do princípio que a realidade é socialmente construída e que a sociologia, pela indagação, deve analisar como isso ocorre. Os mesmos autores identificam os processos implicados na compreensão do mundo: i) pela acção no mundo (externalização), ii) as pessoas partilham uma existência factual (objectivação) que iii) incorporam na consciência como parte da sua compreensão do mundo (internalização). Ao mesmo tempo que o mundo é construído nas práticas sociais das pessoas é também experienciado por elas como se a natureza do seu mundo fosse pré- definida e fixa, o que induz os actores a considerarem que o conhecimento é descoberto e não o efeito de processos sociais. A perspectiva construcionista assume que o conhecimento é cultural e historicamente construído e sustentado pelas pessoas, que não é objectivo numa realidade neutral. Segundo Ibánez

(1994) os critérios de verdade são estabelecidos socialmente, a partir de critérios pautados por coerência, intelegibilidade e de relevância colectiva. Um dos modos de fazer pesquisa construcionista é usar estratégias interpretativas para a descrição das pessoas, com óbvias implicações ao nível da compreensão convencional da orientação do conhecimento e até do carácter dos constructos psicológicos. Os dados sociais são construídos, negociados, reformados, moldados e organizados pelos seres humanos em interacção simbólica, nas

práticas sociais, num esforço de retirar sentido do mundo, ou seja, a comunicação é o processo social primário que cria o mundo social.

A postura construcionista, relativamente à concepção de verdade, reivindica a necessidade de pontuar a sua importância não como uma verdade em si mesma, mas como relativa aos sujeitos. A linguagem passa, então, a constituir o lugar onde as identidades são construídas mantidas e mudadas e o lugar onde se pode operar a mudança, quer social quer pessoal e neste sentido, ser mulher, mãe, criança ou negro pode ser, transformado e reconstruído pela linguagem (Michael, 1996).

Sabendo-se que os consensos acerca de qualquer significado emergem das relações de interdependência, se não houver uma força conjunta que possibilite a criação de discurso significativo - não existirão "objectos" ou "acções" ou até a possibilidade de se duvidar deles (Burr, 1995). Em Psicologia, a abordagem construcionista, formaliza-se no estudo do discurso, uma importante característica da vida humana, e que recolhe influências dos estudos da narratologia de Bruner (1990) e dos desenvolvimentos da Psicologia Discursiva de Harré e Gillett (1994), Potter e Wetherell (1987), Shotter (1993) Wetherell e Potter (1992), Edwards e Potter (1992), Parker (1992,1999).

Esta nova abordagem toma os seres humanos como criaturas activas que usam símbolos de forma intencional e que se empenham em projectos comuns. Poder- se-á concluir, à laia de síntese, que o construcionismo social, ao problematizar as concepções tradicionais acerca dos processo mentais internos, os desloca para o contexto social, cujos processos de comunicação dão à individualidade uma

discursos e cujas concepções serão focalizadas no capítulo seguinte. Por agora tentaremos dar uma visão genérica da linguagem, no pensamento contemporâneo, tomada na sua dimensão discursiva, enquanto lugar de construção da realidade.

A linguagem como prática social

Concepções ingénuas sobre a linguagem supõem existir uma relação simples entre a pessoa e a linguagem, isto é, uma expressa a outra. Estas concepções são defendidas por teorias: i) que sustentam ser a linguagem apenas uma combinação de "som e significado" (desta maneira mais gramática descritiva); ii) ou que a linguagem pode ser definida como um conjunto de sentenças correctas (e desta forma mais um pensamento generativo-transformacional) na linha de Chomsky (1975). Para este autor, a linguagem torna-se uma abstracção mental, conhecimento de regras de sintaxe, não uma prática social, não a fala da vida diária. Foi em pleno desafio cognitivista lançado na década de sessenta, à hegemonia do behaviorismo que a teoria da linguagem de Chomsky começou a chamar a atenção dos psicólogos. Pensava-se que o estudo da linguagem poderia dar acesso à quinta-essênáa humana, as propriedades do espírito, o campo já familiar das ideias inatas. Em contraste com este posicionamento, os teóricos interaccionista estão mais interessados nas formas como as pessoas realmente usam a linguagem, umas com as outras, no decurso das interacções sociais. É

Buhler (1979) quem faz a distinção entre dois aspectos da actividade linguística: o acto linguístico {speech acts) e a acção linguística (discurso).

Enquanto acto, a linguagem cumpre a sua função de significar, de outorgar sentido. O discurso corresponde à função instrumental da linguagem que através das suas operações serve como meio para certos fins: persuadir, cooperar, induzir comportamentos. Esta distinção justifica a própria função do acto ligada inerentemente à linguagem sem ter em consideração os propósitos extradiscursivos que são as funções da acção que ultrapassam o campo linguístico para se ligarem a âmbitos comportamentais. Austin (1962) ao definir os speech-acts atribui às palavras a possibilidade de fazer coisas (speech-acts - a linguagem age) o que envolve uma concepção de performatividade da linguagem, na qual a acção de enunciar se confunde com o acto da enunciação. Para este autor o que importa é o que os discursos fazem a sua performatividade. Quando as pessoas falam realizam três tipos de actos: i) actos locutivos, ou o acto de dizer algo (o que a frase quer dizer, o seu sentido, a sua referência); ii) os actos elocutivos que se referem ao dizer algo (afirmações, fazer promessas, dar ordens, formular perguntas); iii) os actos perlocutivos que se referem ao que produzimos por aquilo que dizemos (actos por dizer algo). Segundo esta tipologia, quando realizamos a interpretação de um discurso temos de fixar-nos na força elocutiva e nas consequências perlocutivas.

Uma das contribuições mais importantes dos trabalhos de Austin foi a de introduzir a noção pragmática que a linguagem pode afectar a realidade social, no sentido em que se "podem fazer coisas com as palavras", uma vez que a teoria

resultado dos estudos do uso linguístico têm sido importantes para repensar a natureza da agência humana em termos não positivistas. A distinção feita por Austin entre proposições constativas (usadas para descrever o mundo) e as

performativas (formações linguísticas que não descrevem, não podem ser

consideradas verdadeiras ou falsas, mas são, elas próprias, acções no mundo) é importante porque muda a atenção das capacidades descritivas da linguagem para a sua função pragmática, para a acção na relação.

A função pragmática da linguagem

Nos seus trabalhos, sobre a pragmática, Grice (1975, in Mey, 1993) propôs que as pessoas, quando interagem linguisticamente, concordam de forma tácita em cooperar, significando isto que é desejável: i) que as coisas que digam uma à outra possam ser relevantes para a interacção, e, especialmente para o que se disse; ii) que aquilo que se disse seja informativo e não redundante; iii) que o que se disse seja apropriado. Se estas regras são respeitadas então a conversação pode ocorrer. É o princípio introduzido por Grice e a que chamou "Princípio Cooperativo": Make your contribuition such is required, at the stage at which it occurs,

by the accepted purpose of the talk exchange in which you are engaged (Grice, 1975, p.

47 in Mey, 1993, p. 66). Não é necessário anunciar cada passo do que se diz; é legítimo esperar que a outra pessoa preencha cenas óbvias no argumento. Se faço uma pergunta, devo receber uma resposta, de forma que qualquer coisa que se diga é ainda tomado como resposta ou como um comentário na ausência de

resposta. Se pergunto: "limpaste o pó?", a resposta pode ser "sim", ou "não" ou "ainda não"; até se a resposta tenha sido "hoje choveu muito" indicará uma posição sobre o tema. Dizer "hoje choveu muito" tenta mudar o papel da pergunta original sobre a limpeza do pó. "Está bem, limpo já" converterá a pergunta num pedido; "não é a minha vez" convertê-la-á numa acusação. Uma verdadeira abordagem pragmática da linguagem deverá concentrar-se no que os utentes fazem; mas não parar aqui, porque os falantes nunca estão sozinhos na linguagem que reflecte ela própria as condições da comunidade mais vasta.

Os jogos de linguagem

Conforme referem Ifiiguez e Anataki (1994), Wittgenstein toma a linguagem como um processo, como acção, como actividade, os chamados "jogos de linguagem", e não indaga da significação frásica dos enunciados mas tão só do sentido da interacção sócio-verbal que se produz nos distintos textos comunicativos: diálogos, disputas, narrativas, cerimónias. Os jogos de linguagem designam todo um conjunto formado pela linguagem e as acções que a acompanham. Os actores que usam a linguagem organizam, com ela, situações para fins práticos, que podem incluir pedidos, contar histórias, dar ordens e descrever objectos. A metáfora do jogo vem suscitar a ideia de que essa actividade é sustentada por vários sujeitos e segundo certas regras. É possível então discriminar na linguagem de uso, tipos de actividade discursiva. Por

resposta; contar anedotas, associa-se a riso; a descrição de objectos a questões acerca deles. Iniguez e Antaki (1994) clarificam que é pelo uso concreto das palavras, significados e condições de produção do discurso, os actores sociais constroem contextos sociais para deles retirar significados para os outros e para si próprios pela associação dos jogos de linguagem a outras actividades. Esta perspectiva desafia as teorias individualistas e mentalistas de abordagem da linguagem como produto de intenção individual. A análise etnometodológica desenvolvida por Garfinkel (1967) sustenta que as práticas interpretativas dos actores se encontram implicadas reflexivamente e são aspectos constitutivos das situações em que ocorrem.

Estas noções revestem-se de importância crucial quando se pretende relacionar estruturas de linguagem com as estruturas sociais, noção que entronca na tradição etnometodológica, no interaccionismo simbólico, já referido, e que tiveram outra abordagem, a da constituição do poder, com Foucault.

Iniguez (1996) tenta uma posição de síntese, admitindo que só a análise da enunciação (discurso) permite estabelecer a relação entre estruturas sociais e linguagem. Este autor sugere que a posição, pós-estruturalista, de que partiram os trabalhos de Derrida, Lacan, Kristeva, Althusser e Foucault sublinha a dimensão social da linguagem como resultado de processos colectivos e não somatório de subjectividades isoladas, o que nos conduz a uma nova concepção sobre a realidade social. Na argumentação pós-estruturalista, a linguagem constrói a realidade e não é um reflexo dela; o significado é constituído por meio da linguagem e não inerente às coisas em si mesmas ou criado pelo sujeito que

fala dele. Por conseguinte a subjectividade é o lugar de mudança e conflito, oposto a uma identidade estável e unificada.

Poderemos sintetizar este ponto salientando as principais linhas em que trabalha o construcionismo social: i) questiona a concepção representacionista do conhecimento, a ii) dicotomia cartesiana entre sujeito e objecto; iii) a verdade absoluta, porque os critérios de verdade são estabelecidos socialmente; iv) uma concepção da mente como a instância produtora de conhecimento. Não é sustentável defender que o conhecimento se gera apenas numa base social. Para pensarmos existe uma estrutura neuronal de suporte, contudo não funciona de forma solitária, precisa e utiliza os artefactos disponíveis, tais como os recursos linguísticos que são produções sociais.